domingo, 28 de junho de 2020

Cavalo Preto (2008 - 2020)

Quando o vi subir para cima do carro fúnebre foi quase como se de uma pessoa se tratasse. Como se me tivessem arrancado um bocado de mim.
Disse-me uma das pessoas que melhor me conhece, há cinco anos, que eu não me deveria ligar tanto às pessoas, porque depois, mais à frente, isso acabaria sempre por me causar sofrimento. Tem razão. Eu ligo-me demasiado às pessoas e acabo muitas vezes com um sentimento de perda. Mas eu teria que deixar de ser Eu e passar a ser uma outra coisa qualquer para deixar de me ligar tanto às pessoas que deixo aproximarem-se demais. 

https://www.carthrottle.com/
Estes tempos de pandemia não têm sido propriamente fáceis. E o vírus, coitado, não tem culpa nenhuma. Estou em crer que tudo que me tem acontecido teria acontecido na mesma, ainda que noutro cenário. E no mesmo dia que eu disse que, provavelmente ficaria com o meu cavalo preto por muito tempo e não o substituiria tão cedo por outro, eis que aparece o karmurphy para me trocar as voltas e, no meio de não sei quantos azares, o raio do bicho acabar com uma doença terminal. 

Mas há que perceber quando já é tempo de deixar as coisas ir... e eu tinha mesmo que deixá-lo ir. Desta estava decido, não voltaria atrás, e nem sequer autorizei que o ligassem às máquinas ou quis entrar para uma lista de espera para um transplante motor. Autorizei simplesmente que os seus órgãos pudessem salvar outros cavalos da sua raça.

Isto não tem necessariamente que ver com o dinheiro, apesar deste nunca ser de menosprezar e logicamente que isso também me aborrece. Mas tem essencialmente que ver com as memórias que aquele carro carregava. Todos os sítios para onde me levou: da Galiza ao Algarve, de Aveiro a Cidade Rodrigo, de Bragança a Castelo Branco, de Lisboa a Sintra. E as memórias de todas pessoas que se sentaram naquele lugar do pendura... e todas as histórias que passamos juntos. 

Eu ligo-me demasiado às pessoas mas às coisas também. Mas, quem sabe, talvez também os carros um dia reencarnem noutra coisa qualquer e ganhem vida, e, um dia, quando eu também voltar ao que era antes de ser o que sou hoje, quem sabe, ainda nos possamos reencontrar por aí. Até sempre Cavalo Preto.


A Vida é Como uma Caixa de Chocolates...

"Morreste num sábado de manhã e eu trouxe-te para debaixo da nossa árvore. 
Não sei quem tinha razão, se a minha mãe, se o Tenente Dan. Não sei se cada um de nós tem um destino ou se andamos apenas à deriva, ao sabor do vento. Acho que talvez ambas se dêem... talvez aconteçam ambas ao mesmo tempo. Tenho saudades tuas, Jenny. Se precisares de alguma coisa, eu não estarei longe."




"A vida é como uma caixa de chocolates... nunca sabemos o que nos vai calhar"


Forrest Gump (Robert Zemeckis) / 1994



sexta-feira, 26 de junho de 2020

Obrigado Brasil pela Eleição de Bolsonaro (6)

Por vezes a realidade é muito mais divertida que qualquer ficção. Nenhum humorista conseguiria imaginar uma coisa assim, tão boa!

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Só Nesta Caverna Encontro Abrigo


"Aquele, a quem mil bens outorga o Fado,
Desejo com razão da vida amigo
Nos anos igualar Nestor, o antigo,
De trezentos invernos carregado:

Porém eu sempre triste, eu desgraçado,
Que só nesta caverna encontro abrigo,
Porque não busco as sombras do jazigo,
Refúgio perdurável, e sagrado?

Ah! bebe o sangue meu, tosca morada;
Alma, quebra as prisões da humanidade,
Despe o vil manto, que pertence ao nada!

Mas eu tremo!...Que escuto?...É a Verdade,
É ela, é ela que do céu me brada:
Oh terrível pregão da eternidade!"


segunda-feira, 22 de junho de 2020

Cristianismo Cultural

Hoje fui vítima de Cristianismo Cultural. Não é para todos. Quando passava de bicicleta por um pequeno grupo de miúdos, um deles (claro que o ser humano desde cedo tem comportamentos em matilha que sozinho nunca teria) e diz bem alto: "Cristo desceu à Terra". 

Bom, acho que vou já criar uma petição para que a Igreja Católica pinte o seu Cristo de acordo com a sua etnia, da região onde terá nascido e não todo higienizado, de pele clara, cabelos compridos claros e olhos claros.

A Ponte Despiu-se de Pessoas


Esta imagem terá duas horas. Poderia dizer que a ponte Dom Luís despiu-se de pessoas. Só para mim. Os miúdos que se penduram no tabuleiro para se mandarem lá para baixo, quinze metros até ao rio, também ficaram sem audiência. Mas quando passei junto ao rio a pé e com a bicicleta pela mão na Ribeira, por um passeio muito estreito, entre as mesas encostadas ao muro de granito e os restaurantes, cafés ou lojas de recordações, senti a dificuldade que aquelas pessoas podem estar a viver. Um senhor mais velho abordou-me em inglês e eu estava a levá-lo a sério antes de ter visto o emblema do FC Porto no casaco e antes dele me dizer que precisa de dinheiro para comer. Não dei nem darei mais. Conheço bem alguns pedintes profissionais. Há uns vinte anos conheci umas crianças que andavam a pedir em Santa Catarina e percebi que eram os pais que, quais proxenetas exploravam as crianças, porque qualquer pessoa sente mais pena das crianças do que dos adultos. Ganhamos resistência a este tipo de coisa e podemos estar a dizer não a quem até precisa mesmo, mas ninguém gosta de ser enganado e paga o justo pelo pecador. 

Está tudo errado nesta sociedade mas não se culpe a pandemia, até porque a pandemia só apareceu graças aos hábitos absurdos que levamos a sociedade global e consumista. 

sábado, 20 de junho de 2020

Qual é o Orgulho em Mostrar-se Bêbado?

https://www.timesnownews.com/
Vou ser um bocadinho chato. Vai ter que ser. 
Desde que recentemente cheguei às redes sociais tenho-me vindo a aperceber de alguns comportamentos que me deixam boquiaberto. 
Estivemos e temos estado, uns mais que outros, em quarentena, isolamento, layoff , baixa medica, teletrabalho ou teledesemprego e o diabo a sete. 

A vida tem regressado mais ou menos a um normal mascarado, mas durante este tempo apercebo-mo de como, gente da minha idade, ou mais velha, faz mesmo questão de mostrar para todo o mundo ver, que passaram a vida bêbedos durante a pandemia. E a minha pergunta é: acham que isso é muito fixe? A sério, não é fixe. É uma valente merda e mostra o quão infelizes vocês são. 
Se na adolescência beber até cair não era nada fixe (apesar de acharem que sim) mostrarem que continuam a beber até cair, vinte ou trinta anos depois é ridículo, mas é ainda pior para pessoas que  até são figuras públicas e estão a legitimar este tipo de comporto execrável junto dos mais jovens, como sabemos, tão influenciáveis.

Parem para pensar um bocadinho e deixem-se de merdas. O álcool é, cientificamente comprovado, a pior droga de todas! Não, não é fixe tirarem fotos a injetar heroína; não, não é fixe mostrarem-se a snifar cocaína, mas pior ainda é dizerem para toda a gente saber, que passam os dias bêbados. Se passam os dias bêbados então guardem a informação, ninguém precisa de saber. 

E não é só na internet e nas redes sociais. Eu ouço todos os dias "As Manhãs da Três" na Antena 3 porque gosto bastante do programa e das pessoas que o fazem, mas alguém devia dizer aqueles pós adolescentes Ana Markl, Inês Lopes Gonçalves, Hugo Van Der Ding e o Tiago Ribeiro, que deveriam conter-se um pouco porque ainda por cima estão numa estação de rádio pública. Estamos a falar de um programa matinal em que os pais levam os miúdos para a escola (ainda por cima as senhoras até têm filhos pequenos) e acho que deveriam ser um bocadinho mais responsáveis no trabalho que exercem. Sim, eu sei que chato. E ainda não sou pai. 

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Que Diferença Fez a Minha Vida Seja a Quem For?

"E fez-me refletir...
Pensar em toda essa história, nos feitos daquela gente de há tanto tempo ajuda a pôr as coisas em perspectiva. A minha ida a Denver, por exemplo, é tão insignificante se comparada com viagens empreendidas por outros... A coragem que demonstraram, as dificuldades que enfrentavam. Sei que somos todos minúsculos no grande esquema das coisas e que o máximo a esperar é termos feito alguma diferença, mas que diferença fiz eu? É o mundo um lugar melhor devido a mim? 
Lá em Denver tentei fazer o que devia, convencer a Jeannie que cometia um enorme disparate, mas não consegui. Agora ela está casada com aquele imbecil e já não há nada a fazer. Sou um fraco, um falhado... Não há outra maneira de ver a coisa. Dentro de pouco tempo morrerei. Talvez daqui a vinte anos, ou amanhã... Pouco importa. Mas uma vez morto, e mortos todos os que me conheceram, será como se nunca tivesse existido. Que diferença fez a minha vida seja a quem for? Nenhuma, que eu me lembre. Mesmo nenhuma...
Espero que esteja tudo bem contigo.
Cumprimentos, Warren Schmidt
About Schmidt (2002)

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Quem Foram os Responsáveis pela Ditadura em Portugal?



Antecedentes do 28 de Maio

"A República, com a generosidade que caracteriza todos os regimes democráticos, consentiu aos vencidos de 1910 (os monárquicos e a igreja reaccionária), as mesmas liberdades que aos vencedores, e agravando o erro, descurando a vigilância de tais elementos, politicamente retrógrados, socialmente parasitários - mas economicamente dominantes.
Ressentidos da derrota mas não convencidos, os monárquicos dão aguerridamente a face Tentam a ação revoluionária. Estimulam e provocam atos reivindicativos. Usam a Imprensa como arma que acutila, fere, penetra o campo adversário e aí aumenta a divisão que foi nota dominante, mal extinta ainda a madrugada festiva que viu elevar aos mastros a bandeira verde-rubra.

O Golpe Final e... Salazar!

O governo dominado de facto por uma maioria reaccionária não responde nem às interogaçoes nem às solicitações do Povo. Sente que o Exército ganhou, e apronta-se para desferir o derradeiro golpe nas esperanças dos democratas. O obstáculo maior e imediato é Mendes Cabeçadas. A um homem de tal envergadura, e que conta com o apoio popular, há que opor outro outro homem de envergadura idêntica e que conte com o apoio do Exército. Estas condições não as reúne Carmona, a carta oculta na manga dos reaccionários - mas que não pode ainda ser jogada. Faltam-lhe todas as estaturas. O seu valor está em se ter prestado a ser joguete nas mãos dos mentores da Revolução - a Igreja reaccionária e os monárquicos. Opta-se por isso por Gomes da Costa. O general presta-se a ser ator... e o cenário começa a preparar-se (...)

É este ambiente com que Salazar se depara quando chega ao comando Geral da GNR. Pede a Mendes Cabeçadas para conversarem em particular e este acede. Não se sabe o que foi dito no curto diálogo que marcou a entrevista, mas no termo dela, o capitão-de-mar-e-guerra José Mendes Cabeçadas Júnior anunciava a sua demissão. Eram 16 horas e 20 minutos do dia 17 de Junho (...)

A 18, o jornal A BATALHA retoma a ideia da greve geral anteriormente exposta num suplemento apreendido, e a União Anarquista Portuguesa solidariza-se com a CGT afirmando:

Há 15 dias que se vem enganando audaciosamente o Povo Português. Porém, agora, a máscara que escondia a face hedionda da ditadura acaba de cair por terra. Quais são os seus propósitos? Ei-los!
Liberdade religiosa e capacidade jurídica da Igreja - ou seja: a livre expansão das manifestações do catolicismo intolerante, com a mordaça para que os que possuam ideais contrários. 

... E nasce a PIDE

O golpe de Estado que conduziu Carmona à chefia da Ditadura deu origem a que aumentassem as manifestações de desagrado popular, às quais o Governo respondeu com o aumento da violência, que estimulou com a criação das medalhas de Segurança Pública destinadas a premiar os serviços prestados em defesa da vida, dos haveres ou da propriedade dos cidadãos. 
Não se sentindo ainda suficientemente forte para decretar a censura à Imprensa, mas necessitando impô-la, a Ditadura faz publicar o Decreto nº 12 008, de 29 de Julho de 1926 o qual, começando por aceitar que é lícito manifestar livremente o pensamento por meio da Imprensa (artigo 1.º), acaba por limitar esse mesmo direito, ao sujeitar a prisão correccional e multa aos autores dos escritos e desenhos que contenham injúria, difamação ou ameaça contra o presidente da República, (...) ou que aconselhem, instiguem ou provoquem os cidadãos portugueses a faltarem ao cumprimento dos seus deveres militares, ou ao cometimento de atos atentatórios da integridade e independência da Pátria, ou contenha boato ou informações capazes de alarmar o espírito público ou de causar prejuízo ao Estado, ou que contenham afirmação ofensiva da dignidade ou do decoro nacional (artigo 10.º).

(...) Fosse porque tomasse conhecimento desta aliança, ou fosse pela sensação de insegurança que é comum a todos os regimes usurpadores, o certo é que o Governo criou uma polícia política que mais tarde viria a denominar-se PIDE, mas que no seu primeiro batismo recebeu o nome de Polícia Especial. Dependia esta Polícia do Governo Civil de Lisboa, e o seu quadro era composto por um diretor; dois adjuntos; um secretário; dois amanuenses e um chefe - além dos agentes efetivos e auxiliares que fossem considerados necessários. 

Aos Olhos de Deus é a Aparência que Importa ou é o Carácter?

Tiesta do Agreste que já no início dos anos noventa educava sexualidade para abrir as cabeças portuguesas mais conservadoras:


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Quando um Doido Governa um País

Esta semana comprei mais dez livros - sim, eu sei, tenho que me inscrever nos compradores-impulsivos-de-livros-anónimos! - e de todos eles interessavam-me especialmente dois volumes sobre a instauração da ditadura em Portugal e mais concretamente sobre a PIDE.



Ainda antes mergulharmos no livro, o choque de uma citação de João Chagas (1863 - 1925) que foi o primeiro uma espécie de 1º Primeiro Ministro da República em 1911. Não sei em que contexto isto foi dito, mas é de uma atualidade assustora:

"Imagine-se um desses doidos ignorados dirigindo a sociedade. Um doido desses espalha a loucura. Dêem-lhe um ano de poder e, ao cabo de um ano, a sociedade está com ele doida. Todos procurarão interpretar os atos da sua razão perdida e como não é possível possível admitir que um doido presida aos destinos sociais, esses atos, por muito extravagantes que sejam, encontrarão sempre quem os procure justificar."

domingo, 7 de junho de 2020

Há Que Continuar a Empurrar o Céu Para Longe...



"Tenho um sentimento que não vai embora...
Percebeste bem... Continuar a empurrar e continuar a empurrar o céu para longe..."


"Push The Sky Away" / Nick Cave (2013)


sábado, 6 de junho de 2020

Como Era a Higiene na Roma Antiga?

Ler um livro escrito por alguém que viveu há mais de dois mil anos e que, por vezes, vai descrevendo como era a sua vida nesse tempo, é extraordinariamente interessante, visto que, além da riqueza do conteúdo e de percebermos neste caso qual o pensamento estóico sobre a vida, podemo-nos também aperceber que a nossa vida hoje em dia não mudou grande coisa.

Se calhar hoje as pessoas podem pensar que há dois mil anos as pessoas eram umas porcas e nem banho tomavam, porque quando pensamos no passado, eu pelo menos penso na Idade Média, mas a verdade é que, pelo menos na Roma Antiga, os hábitos de higiene não eram em nada inferiores ao dos nossos dias.

Para situar no tempo, Séneca foi contemporâneo de Cristo, e Cipião Africano (general romano) que ele retrata neste excerto, viveu cerca de duzentos anos antes:


"Vi ainda o pequeno balneário , bem escuro, segundo a moda de antigamente: os nossos maiores não apreciavam os banhos quentes senão às escuras! Senti então um grande prazer ao confrontar os costumes de Cipião com os nossos de hoje: era em semelhante cubículo que o grande homem  - o "terror de Cartago" -, a quem Roma ficou devendo não ter sido conquistada pela segunda vez, lavava o corpo cansado dos labores agrícolas! Sim, que ele não se eximia ao trabalho, mas seguindo os antigos costumes, arava ele próprio a terra. Cipião viveu sob este teto tão sem graça, pisou estes pavimentos tão ordinários! Nos dias de hoje, quem se resignaria a tomar banho em condições semelhantes? Qualquer um se considera pobre e mesquinho se as suas paredes não resplandecerem com grandes e preciosas incrustações, se os seus mármores de Alexandria não forem decorados com mosaicos da Numídia, trabalhosamente recobertos de verniz como se de pinturas se tratasse, se não tiverem uma cúpula recoberta de vidro, se o mármore de Tasos não revestir as piscinas onde metemos o corpo emaciado pelo banho de vapor, se, enfim, a água não correr de torneiras em prata! E, por enquanto, até estou falando das canalizações da plebe: que não dizer quando me referir aos balneários do libertos! Que multidão de estátuas, que sem número de colunas que nada sustentam, apenas decorativas, só para exibição de riqueza! Que abundância de água caindo ruidosamente das cascatas! Chegamos ao luxo de só poder pisar em pedras preciosas!...
No balneário de Cipião não há propriamente janelas, mas apenas umas fendas estreitas que deixam entrar a luz sem pôr em causa a solidez da construção. Hoje dá-se o nome de "banhos para traças" aos balneários cuja construção permite receber a luz durante o dia todo por janelas enormes. Se é impossível tomar banho e ficar bronzeado ao mesmo tempo, se não se pode contemplar a paisagem de dentro da banheira, já não presta! (...)

Abunda hoje quem acuse Cipião de perfeito provinciano por não ter nos seus banhos quentes largas vidraças para deixar entrar o sol, e não se deixar destilar no meio da luz à espera de fazer a digestão no banho. 
"Oh pobre homem! Nem sabia viver!" Cipião não se lavava com água filtrada, frequentemente ela estava turva, e quando chovia mais, quase ficava no lodo. A ele, aliás, não lhe fazia diferença lavar-se assim, pois ia ao banho para se limpar do suor, e não dos perfumes. Não imaginas o que dizem os delicados de hoje? "Não invejo esse Cipião! Tomar banho em condições semelhantes é de facto viver exilado!..." Pois digo-te ainda mais: ele não tomava banho todos os dias. Segundo os eruditos que referem os velhos costumes de Roma, os antigos lavavam todos os dias os braços e as pernas, ou seja, a parte do corpo onde se juntava sujidade proveniente do trabalho. Banho completo, só de nove em nove dias. Nesta altura haverá certamente quem diga: "Que porcos deviam eles andar!" A que julgas tu que eles cheiravam? A vida militar, a trabalho, a homem em suma. 

Cartas a Lucílio (carta 86) - Séneca 

Quando os Aviões Bombardeiam Nós Jogamos Futebol?

Disseram-nos que isto da pandemia era uma guerra, não foi? 

Muito bem. Então quando os canhões inimigos disparam incessantemente e as anti-aéreas ainda não conseguem abater todos os aviões que não param de nos bombardear,  nós dizemos "que se lixe" e vamos mas é jogar futebol?



Depois de três meses que foi um descanso sem futebol, eis que os responsáveis do futebol, com o total apoio dos responsáveis políticos e governo - que eu saiba nenhum partido se manifestou contra o regresso do futebol - aprovaram o regresso do futebol, esquecendo-se que, apesar de terem proibido os santos populares e os festivais de verão, passado umas semanas, no fim do campeonato os adeptos irão para as ruas festejar o título como se não houvesse amanhã.

Sim, é verdade. Os responsáveis disseram que contam com a responsabilidade dos adeptos. Obviamente, até porque, como todos nós sabemos, os adeptos de futebol são das pessoas mais responsáveis e cumpridoras da lei que conhecemos na sociedade! Não há quaisquer motivos para preocupações. Os adeptos de futebol vão ficar todos em casa vendo pela televisão estas dez jornadas que faltam, não se irão misturar, e quando houver campeão ficarão todos, cada um na sua casa. 

As pessoas insurgiram-se contra cem pessoas no parlamento aquando do 25 de Abril; insurgiram-se aquando da manifestação do 1º de Maio da CGTP e, que se saiba não infetou centenas de sindicalistas; as pessoas vão para as praias fotografar os outros e depois meter nas redes sociais: "vejam como vem toda a gente para a praia em tempo de pandemia". Mas, estranhamente, não vejo manifestações violentas de nenhum partido, nem de milhares de indignados nas redes sociais por causa do futebol. Devo ser só eu que considero isto um perfeito absurdo e que não está tudo bem.   

quarta-feira, 3 de junho de 2020

O Racismo e a Polícia nos Estados Unidos

"Terras boas, diz você? E ninguém as cultiva?

- Não senhor. É assim mesmo. E quando vocês virem isso ficam danados. E ainda não viram nada. Aquela gente tem uma maneira de olhar para nós que até faz ferver o sangue. Olham para nós e dizem: "Não gosto de ti meu filho da puta". Depois vêm os delegados do sheriff e vocês são perseguidos. Acampamos em qualquer lugar à beira da estrada, e eles mandam-nos embora. Basta olhar para a cara deles; logo se vê a raiva que têm à gente. E... vou-lhes dizer uma coisa: eles têm-nos raiva porque têm medo. Sabem que, quando alguém tem fome, trata de arranjar comida, ainda que tenha de a roubar. Sabem que deixar as terras abandonadas é um pecado, e que alguém se dispõe logo a tomá-las . Diabo! Ainda ninguém vos chamou "Okies"?
Tom perguntou:
- "Okies"? Que quer isso dizer?
- Bem, antigamente, "Okie" era aquele que vinha de Oklahoma. Agora é o mesmo que chamar a um tipo filho da puta. "Okie" quer dizer que o sujeito é uma merda. A palavra, em si, não quer dizer nada; o que mete raiva é a maneira como eles a dizem. Mas não vale a pena dizer mais nada. Vocês têm que ver a coisa pessoalmente. Têm que ir para lá. Ouvi dizer que há por lá agora umas trezentas mil pessoas, da nossa região, gente que vive como porcos, porque tudo na California tem dono. Não sobra coisa nenhuma. E os donos disso tudo agarram-se às suas coisas que eu cá sei. Até são capazes de matar. Têm tanto medo que ficam doidos. Vocês vão ver, vão ouvir o que por lá se diz. É a mais linda terra do Mundo, mas o povo de lá é um bocado ruim. Tem tanto medo e tantos cuidados que até desconfia da sua própria gente. 
Tom olhou a água e enterrou os calcanhares na areia. 
- Mas, se alguém trabalhar e fizer economias, pode comprar um pedacinho de terra, não pode?
O homem mais idoso riu e olhou para o filho, e o rapaz, calado, arreganhou os dentes numa expressão quase triunfal. E o homem disse:
- Vocês não conseguirão nenhum trabalho certo. Terão de arranjar dia a dia o dinheiro para a comida. E vão precisar trabalhar para uma gente mesquinha como o Diabo. Se apanharem algodão, podem estar certos que a balança está viciada. Talvez não aconteça sempre, mas geralmente é o que se dá. Terão, por isso, de partir do princípio que todas as balanças estão viciadas, porque lhes é impossível saber quais é que estão certas. E não poderão fazer nada, mesmo nada. 
O pai perguntou em voz baixa:
- Então... então aquilo por lá não é nada bom, pois não?
- É bom, muito bonito tudo aquilo, mas a gente não consegue nada. Há, por exemplo, um pomar cheio de laranjas maduras... e um sujeito armado de revólver, que dá um tiro no primeiro que mexer nelas. E há um sujeito, dono de um jornal, lá perto da costa, que tem um milhão de acres de terra...
Casy ergueu vivamente a cabeça:
 - Um milhão de acres? Que diabo faz o homem com tanta terra?

(...)

- Vocês vão-se embora daqui?
- Não sei, disse Tom. Você acha melhor?
Floyd riu com azedume.
- Não ouviu o que o polícia disse? Se a gente não abalar deitam fogo a todo o acampamento. Se você pensa que esse delegado aguenta uma coisa daquelas sem mais nem menos e não vai tratar de se vingar, é porque não está bom da cabeça. Garanto que essa gente volta hoje mesmo à noite, para queimar tudo(...)
- O que eu não sou capaz de compreender é porque é que aquele polícia se armou se armou em teso. Parece que queria à viva força armar uma zaragata. O que ele queria era aquilo - disse Tom. 
- Nao sei como é a coisa por aqui, mas no norte conheci um polícia que era uma excelente criatura - afirmou Floyd. - Ele contou-me que, na zona dele, os polícias têm de caçar gente para meter no xadrez. O sheriff ganha 75 por dia por cada preso que meter na cadeia e só gasta 25 para lhe dar de comer. Não tendo presos deixa de ganhar dinheiro. O tal polícia disse-me que passou uma semana sem prender ninguém, e então o sheriff disse-lhe que tratasse de arranjar presos ou então que entregasse o emblema. Também esse gajo que esteve por aqui parecia disposto a prender gente de qualquer maneira. 

SIPNOPSE:
Na década de 1930, as grandes planícies do Texas e do Oklahoma foram assoladas por centenas de tempestades de poeira que causaram um desastre ecológico sem precedentes, agravaram os efeitos da Grande Depressão, deixaram cerca de meio milhão de americanos sem casa e provocaram o êxodo de muitos deles para oeste, rumo à Califórnia, em busca de trabalho. Quando os Joad perdem a quinta de que eram rendeiros no Oklahoma, juntam-se a milhares de outros ao longo das estradas, no sonho de conseguirem uma terra que possam considerar sua. E noite após noite, eles e os seus companheiros de desdita reinventam toda uma sociedade: escolhem-se líderes, redefinem-se códigos implícitos de generosidade, irrompem acessos de violência, de desejo brutal, de raiva assassina. Este romance que é universalmente considerado a obra-prima de John Steinbeck, publicado em 1939 e premiado com o Pulitzer em 1940, é o retrato épico do desapiedado conflito entre os poderosos e aqueles que nada têm, do modo como um homem pode reagir à injustiça, e também da força tranquila e estoica de uma mulher. As Vinhas da Ira é um marco da literatura mundial.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Como Hoje Ganhei Uma Medalha Por Grandes Feitos de Bravura

Disseram-nos que isto da pandemia era uma guerra, não é? 

Então eu hoje vou contar-vos como ganhei uma medalha de guerra por grandes feitos de bravura. 

Qual soldado que abandona a trincheira e que atravessa as linhas inimigas e passa por balas rasantes que trespassam muitos colegas, qual quê! 



Eu hoje fui ao hospital. Muito mais aterrador!

Chegado à portaria de máscara não cirúrgica pediram-me para a retirar e deram-me uma. 
Enquanto o segurança me aponta uma espécie de arma à cabeça, pergunta-me ao mesmo tempo se me pode tirar a temperatura. 
Segui a sinalização que separava as pessoas consoante queriam ir para consultas ou para análises e entrei depois propriamente na central de consultas. As pessoas que entram não se cruzam com as pessoas que saem. Entrei e o senhor que estava a receber as pessoas pediu-me para passar as mãos por desinfetante. E voltaram-me a tirar a temperatura e lá me deu a senha. Quantas pessoas tinha à minha frente? Nenhuma! Eu era o próximo. 
E da receção lá me encaminharam para a zona dos vampiros. Nesta fase ainda não se paga nada.
Desci, e lá me encaminhei para a grande sala de espera que estava.... Vazia!! Nem uma só pessoa! As cadeiras estavam identificadas, em quais as pessoas se podiam, ou não, sentar. Eu fiquei de pé e dentro de dois ou três minutos fui chamado. 
Lá dentro explicaram-me. Diariamente são chamadas poucas pessoas para garantir uma distância de segurança, mas mesmo assim, a maioria falta! 

Agora digam lá que eu não sou um verdadeiro herói! Vou imprimir o comprovativo de presença e anexar ao currículo pois certamente é uma grandessíssima mais valia em qualquer recrutamento. 

Couchgardening

www.thegardenglove
Tens uma casa num sítio interessante, com espaço exterior porreiro mas tens o jardim numa lástima e as empresas de jardinagem cobram couro e cabelo? Então é assim, dás-me estadia aí em casa durante uns dias, e em cada dia eu tiro duas horas por dia para te cuidar do jardim. Eu arranjo estadia de borla, tu ficas com o jardim um bocadinho melhor. Chama-se a isto uma negociação ganhar-ganhar. 

E pronto, está criado agora mesmo o movimento Coughgardening (estadia-no-sofá-a-jardinar)!