sábado, 27 de abril de 2024

Quantas Mais Opções de Escolha Temos, Mais Infelizes Somos

 "Antes era um viajante, daqueles que pegam na mochila e dedicam-se a explorar o mundo. Depois tornou-se conferencista e participante em seminários e simpósios. “Até que um dia deixei de ver sentido em ter de atravessar continentes para partilhar ideias com os meus colegas”, reflete via Zoom Svend Brinkmann, psicólogo, filósofo e professor na Universidade de Aalborg, que se tornou num guru do JOMO, a alegria de perder coisas (por oposição ao FOMO, o medo de perder coisas). Precisamente "A alegria de perder coisas (Koan)", um exercício intelectual que fala da arte do autocontrolo numa época sem limites, é o título do novo livro do escritor dinamarquês, que se inspira na Grécia Antiga para abordar os problemas da vida moderna.




Devemos repensar a forma como vivemos?

Sim. Porque no século XX desenvolveu-se a sociedade de consumo e ficámos com a ideia de que uma boa vida consiste em consumir, experimentar e viajar o máximo possível, uma sociedade de excessos. O sociólogo Zygmunt Baugman costumava chamá-la a sociedade do cartão de crédito, a do excesso, da abundância, de forma que podes consumir e comprar coisas mesmo antes de poderes pagar por elas.

E o que propõe?

Creio que é óbvio que precisamos de mudar, mas isso é extremamente difícil. Por isso, penso que é necessário explorar uma felicidade mais profunda numa vida em que deixas de perseguir mais e mais o tempo todo.

E isso é possível a nível individual? Parece difícil...

Muito difícil. E essa é a fraqueza da minha abordagem, já que formulo isto um pouco como um livro de autoajuda e posso dar essa impressão de que cada indivíduo tem de mudar. E na realidade, parece-me um problema coletivo, que exige uma ação política. Mas, mesmo assim, precisamos de articular uma visão positiva sobre uma boa vida com menos, para que faça parte da grande conversa que uma sociedade democrática deve abordar sobre como devemos viver juntos. Claro que, como indivíduo, sempre podes fazer algo.

E enquanto promovemos essa conversa, o que sugere?

Posso falar sobre mim, sobre qual foi o meu ponto de viragem, quando comecei a estudar e a ler sobre estudos que me diziam que se ganhasse mais dinheiro não seria mais feliz porque já era suficientemente rico. A minha vida mudou.

E vi que, na realidade, ter mais opções não nos torna mais felizes. Apenas provocará que tenhamos mais dúvidas sobre o que escolher. O psicólogo Barry Schwartz já dizia que, pelo menos nos países democráticos ricos do mundo, quando ampliamos as opções materiais, as pessoas tornam-se menos felizes. Ensinam-nos que somos felizes se temos algo que é exclusivamente nosso, mas acontece que isso não é verdade. É muito melhor escolher entre três coisas boas do que entre trinta.

O que é uma boa vida?

Não consigo encontrar uma definição melhor do que a eudaimonia de Aristóteles, uma atividade da alma de acordo com as virtudes, e isso significa uma vida ativa, de fazer, de explorar, de adquirir conhecimento, de amar, de contribuir para as comunidades das quais fazes parte. Portanto, não podes ser feliz se fores uma má pessoa. Temos de agir de forma ética, com moderação, coragem e sentido de justiça.

É muito crítico em relação ao movimento de simplificar a vida.

O que acontece é que essa filosofia acabou por se tornar uma tendência e um grande negócio. E acho que isso é sintomático do que acontece na sociedade atual, que mesmo tentando ir contra os problemas acabas por te tornar parte dessa sociedade que criticas. Não tenho nada contra esse movimento em particular. Apenas acho que é um sintoma do que acontece e do que pode acontecer com o meu próprio livro, inclusive. Se a alegria de perder coisas se tornar numa nova tendência, terei perdido, de certa forma.

Espera que o JOMO se torne numa tendência?

Não sei. De repente, existe a possibilidade de que exploda e se torne algo grande, uma grande tendência. Não sei, talvez depois da sua entrevista comigo, as pessoas me convidem para Espanha para falar sobre a alegria de perder algo e me tornem milionário ensinando a viver uma vida de perder algo. Esse é a paradoxo.

Como explicaria a alegria de perder coisas?

Seria uma vida centrada no que é realmente importante, e só podes fazer isso se aprenderes a habilidade de perder coisas, de dizer não, de não sobrecarregar o teu calendário com projetos e coisas para fazer. Se viveres assim, talvez não desesperes quando vires que outras pessoas fazem mais do que tu no trabalho ou em qualquer área. O medo de perder coisas é essa ideia de que me comparo com os outros e vejo que fazem mais do que eu, que experimentam mais do que eu, que têm mais sucesso do que eu. E isso leva-me à frustração. Porque então penso que tenho de mudar de trabalho, de parceiro, de cidade, etc. E a alegria de perder algo é saber que talvez o que precisas para viver uma boa vida já está aqui. É muito provável que já tenhas o necessário se te concentrares no que já é importante.

O smartphone é o melhor instrumento para o FOMO.

Sim, sim. É uma tecnologia que nos convida a temer que estamos a perder algo. Ensina-nos a nunca estarmos satisfeitos com o que temos porque nos bombardeia com imagens de outras pessoas que são mais bonitas, mais ricas, que fazem mais coisas do que nós. É uma máquina de comparação.

Acha que já está a viver uma vida de JOMO?

Dá-se a paradoxal situação de que, graças aos livros e às coisas que faço, agora sou convidado para dar entrevistas e palestras, para escrever artigos, e assim torna-se muito difícil para mim desfrutar da alegria de perder coisas. Escrevi sobre isso e criei um problema para mim mesmo. Por isso não posso dizer que a minha vida tenha mudado para uma forma de vida mais calma e comprometida. Portanto, ainda tenho de ler o meu próprio livro para me lembrar do que é verdadeiramente importante.

Uma vida mais lenta?

Poderia dizer que sim. Muitos sociólogos têm analisado o que chamam de grande aceleração social dos nossos tempos: consumimos comida rápida, fazemos sestas energéticas, temos encontros rápidos... Realmente é difícil encontrar um aspeto da vida que não tenha acelerado o seu ritmo. Tudo está mais rápido. E temos a tentação de perguntar por que nos contentar com menos se podemos experimentar mais. Como posso saber se tenho o que me convém se ainda não experimentei tudo? Bem, nunca podes experimentar tudo. Por isso, tens de te comprometer com algo. Como sei que é o certo? Não sei, mas assim é a vida.

Defende no final do livro por encontrar a beleza no simples. 

Creio que temos de desenvolver uma ecologia da ação. Sou muito cético em relação à possibilidade de resistir às tentações. A única solução passa por construir uma ecologia da tua vida na qual não sejas tentado. Por isso, em vez de te ensinares a resistir à tentação de verificar as tuas redes sociais, tenta não estar nas redes sociais. Se não conseguires resistir à tentação de olhar para o telemóvel, tira-o. Precisamos de lugares públicos, parques, bibliotecas, lugares para nos encontrarmos, para estarmos juntos, para estudarmos, para trabalharmos, para pensarmos...

“Tener muchas opciones nos hace infelices” | David Dusster | La Vanguardia (26 de Abril 2024)

domingo, 21 de abril de 2024

A Tua Mão Contra a Minha

"Os dias passam
Sem que nada mude 
As minhas palavras desaparecem 
Para pintar a constante falta 
Do teu fogo que se agita 
E do Além que nos espera

Escapando de outra hora 
Ouço a tua voz familiar 
Afogada num intenso 
Silêncio despovoado 
Longe do teu coração 
Nas manhãs geladas 
Paradas no tempo


A noite aperta-me 
Esquecer tudo 
Para finalmente lembrar-me 
Vagueio sem poder 
Encontrar o meu caminho 
Afundando-me 
Em cada vez mais escuridão

A tua mão contra a minha 
As memórias incandescentes 
Do teu rosto sorridente 
E tudo para poder revivê-las...



Flamme Jumelle / Alcest (2024)

sábado, 13 de abril de 2024

A Imparável Extinção dos Passatempos

"Na era do culto à produtividade e à otimização, há algo pior do que não fazer nada, e é fazê-lo sem um propósito económico, terapêutico ou produtivo. Fazer qualquer coisa puramente por prazer, sem método ou plano, parece ser o maior dos pecados. Aqueles que ainda mantêm um passatempo não remunerado e não têm intenção de o fazer são a resistência.


Começa a última temporada de The Crown e Clara S. [que prefere não ser identificada], de 37 anos, entra em modo turbo. Concentra-se. Dobra a velocidade de reprodução da série. Abre uma folha de cálculo no computador e a sua conta do X (antes Twitter) no telefone. No primeiro ecrã, sucedem-se as idas e vindas da nobreza britânica e nas outras duas multiplicam-se as notas, os dados, as somatórias. Clara é realmente rápida no que faz e consegue ser a primeira a encontrar falhas no guião; a separar o trigo do joio, a realidade da ficção. Ninguém o faz melhor do que ela. As suas notas irão aumentar a sua marca pessoal como especialista na realeza britânica e alimentar o guião de vários podcasts especializados em famílias reais. Ela sente-se sortuda, transformou o seu hobby num trabalho. Também escreve artigos em várias revistas e está a terminar um livro. Algum dia poderá viver disso, ela especula, mas por enquanto a sua hiperatividade apenas representa um modesto rendimento extra. Quando aparecem os créditos finais, fecha o computador abruptamente. Suspira. Está exausta

Ver uma série de televisão no dobro da velocidade, twittar e preencher uma folha de cálculo é lazer ou negócio? Quando é que um hobby deixa de ser um hobby? A Autoridade Tributária é clara a este respeito: se tiveres que declarar no IRS já não é um passatempo. É realmente uma sorte transformar o que fazemos por puro prazer numa fonte de rendimento?

Por definição, um passatempo é algo que se faz por prazer, sem prazos de entrega e sem pressão para fazê-lo bem, mas na última década as expectativas parecem estar a mudar. Somos incentivados a otimizar a nossa vida, cada minuto deve ser produtivo, e o lazer, para alguns, é quase uma perda de tempo. Plataformas como Etsy ou Instagram prometem que qualquer passatempo pode tornar-se num trabalho mais ou menos lucrativo que complemente os rendimentos cada vez mais precários do nosso emprego principal. Chama-se "economia de biscate" (gig economy). 

Segundo os dados do Banco Mundial, existem 435 milhões de pessoas em todo o mundo que fazem vários biscates para sustentar os seus rendimentos. Os trabalhadores temporários — como são chamados — aumentaram 170% entre 2019 e 2021. Aqui entram aqueles que trabalham algumas horas na Uber, aqueles que exibem partes do seu corpo no Onlyfans ou aqueles que rentabilizam os seus passatempos para ganhar algum dinheiro com um hobby que costumava ser improdutivo, ou até mesmo dispendioso (embora na maioria dos casos não melhore substancialmente a sua situação económica).

Calcula-se que mais de metade são millennials e da geração Z, os principais atores da precarização do trabalho e de uma cultura que glorifica estar sempre ocupado (cultura do esforço ("hustle") na denominação académica anglo-saxónica) numa corrida em que apenas importa o produto final: a suposta melhor versão de si mesmo

No contexto atual, o tempo livre e os passatempos são materiais para otimização: a vida social torna-se networking; ler transforma-se num turbilhão de post-its e sublinhados que impedem de desfrutar da história; bordar, numa terapia; cozinhar, num exercício estético apto para ser partilhado no Instagram, e ver uma série (visualizar, como se diz), num exercício rápido de recolha de dados.

Ananya Chaudhari estuda Economia e Finanças no segundo ano na Northeastern University e gosta de pintar. É o seu hobby, por agora. Cada vez que mostra uma das suas pinturas, costuma ouvir o mesmo: e porque não as vendes? Na opinião dela, as pessoas tornaram-se demasiado perfeccionistas e isso não as deixa desfrutar dos seus passatempos. 

"O propósito de um hobby é o prazer que nos proporciona por si só, independentemente de sermos medíocres ou virtuosos na sua prática", conta numa conversa com o EL PAÍS. Chaudhari é autora do artigo "A morte dos hobbies não é nossa culpa", publicado no The Huntington News, o jornal independente dos estudantes da sua universidade. Ela afirma que "a capitalização de cada canto da internet" é responsável, e não a geração Z. "Um espaço inerentemente pessoal [a internet] que, subtilmente, nos fez pensar em nós próprios como seres passíveis de gerar receita. Assim, se és bom a pintar, por que não vendes os quadros?, se gostas de DJing, por que não montas um estúdio?, se cozinhas bem, por que não partilhas no TikTok? Esta compulsão para mercantilizar os hobbies tem privado-os do seu propósito fundamental, a nossa realização pessoal".

As aplicações incentivam-nos a avaliar os livros e os filmes, mas também a última viagem de Uber e a música e podcasts que ouvimos. Passamos o dia inteiro a trabalhar como juízes não remunerados na economia da atenção e a acelerar a tendência de nos relacionarmos com os nossos passatempos de uma maneira quase profissional e baseada em dados.

A académica Lina H. R. Cho, professora de Literatura Comparada na Dunster House, afiliada à Universidade de Harvard, acredita que os hobbies, tal como os conhecemos, estão prestes a desaparecer. "Os resultados já estão à vista e são terríveis. A arte tornou-se conteúdo e a criatividade em produção à medida que avançamos lentamente, mas inexoravelmente, para a extinção dos hobbies. Para rentabilizar cada minuto do nosso tempo, temos que ser mais obedientes do que criativos", escreveu num artigo publicado no Harvard Crimson (um dos jornais da Universidade de Harvard). Digamos que a hiperprodutividade estimula a literalidade e mata as formas desestruturadas e caóticas de pensar que estimulam a imaginação.

Cinthya Molina é psicóloga clínica com consultório na SHA Wellness Clinic. A primeira pergunta que faz aos seus pacientes é: tens hobbies? "Não tê-los é sinal de que não se dedica tempo suficiente ao autoprazer e sobrevive-se preso na díade cíclica trabalho-família, família-trabalho. Quem tem um hobby conhece-se melhor, é mais consciente do que precisa para estar bem, e os que não têm, geralmente, não têm interesse em cultivar o seu prazer interior. Um hobby é sintoma de saúde mental. Saber que alguém come bem, dorme bem, tem bons amigos e algum hobby dá-me muita informação sobre uma pessoa".

Os hobbies tornam-nos melhores e mais felizes. Um estudo de 2016 da Universidade de Drexel mostrou que desenhar durante 45 minutos reduzia significativamente os níveis de cortisol, a hormona que regula a resposta ao stress. Noutro estudo de 2017 publicado na revista Arts & Health, ficou provado que colorir ativava a corteza média frontal e melhorava o humor, a auto-percepção e a capacidade de resolver problemas. Em 2015, uma equipa da Universidade de Merced revelou que os indivíduos que se concentravam num hobby estavam menos stressados e tinham uma frequência cardíaca mais baixa. "O que importa é como praticamos os nossos hobbies, e a chave é sair da nossa própria cabeça", escreveu Matthew J. Zawadzki, autor principal do estudo.

Das definições apresentadas no livro Hobbies. Leisure and The Culture of Work in America (1999), um texto clássico sobre o assunto de Steven M. Gelber, os círculos académicos focam sua atenção no que parece esconder um oxímoro: "o lazer produtivo" ou "lazer sério", um termo cunhado por Robert Stebbins, professor emérito de Sociologia na Universidade de Calgary. No seu enquadramento teórico, o entretenimento e a socialização são atividades demasiado passivas para merecerem a consideração de hobbies, sendo classificadas como "lazer informal". Um hobby, segundo Stebbins, deve ser "lazer sério", pois requer um esforço baseado em "conhecimentos, treino ou habilidades especiais", e aqueles que o praticam frequentemente procuram progredir e melhorar ao longo do tempo. Evidentemente, na era da otimização total, esse investimento não faz sentido sem um retorno.

De acordo com os especialistas da equipa de Stebbins, "o lazer sério" proporciona um tipo de satisfação diferente da relaxação ou do trabalho remunerado e ajuda a desenvolver uma identidade independente da profissão que nos sustenta, já que um hobby sustenta a autoestima: alguém não corre, é corredor; não só lê, é um grande leitor; e não vê séries de televisão, é um seriéfilo; não apenas desfruta da comida e do vinho, mas é um gastrónomo, e, mais recentemente, foodie. Um hobby confere prestígio e certa autoridade. Segundo Stebbins, o lazer sério é necessário para ter uma vida plena.

Alguns sinais alertam quando um hobby começa a perder-se pelo ingrato caminho da produtividade, dos prazos e das obrigações. Cinthya Molina recorda uma conversa com um paciente de vida frenética, analista de mercados financeiros. A sua via de escape, a sua paixão, era o seu barco. Recentemente, conseguiu uma amarração em Maiorca e decidiu que quando não estivesse a navegar o alugaria, assim pagaria a amarração e talvez pudesse comprar um segundo barco que tentaria amortizar o mais rapidamente possível. "Deixei-o falar e depois disse-lhe: 'Bem, já sabes que o teu barco deixou de ser uma fonte de prazer, agora é um gerador de stress, monetizaste a tua única fonte de bem-estar, agora é uma responsabilidade: tens de amortizar o investimento. No dia em que saíres no barco só pensarás que não o estás a aproveitar e que estás a perder 2.000 euros".

Aqueles que um dia se acharam sortudos pela sua capacidade de misturar lazer e negócios falam de uns primeiros tempos luminosos que se vão apagando à medida que começam a deixar de fazer o que lhes apetece para atingir objetivos, audiência ou engagement, ou até que algo corre mal - e na internet isto acontece frequentemente, concretamente, sempre que um algoritmo muda e caem o tráfego e a visibilidade -, então a sensação de fracasso contamina a capacidade de desfrutar. O sucesso perdido não é vivido como a consequência de uma mudança tecnológica da qual não somos responsáveis, mas como uma derrota pessoal, e o antigo hobby transforma-se numa fonte de frustração. Dessa forma, dificilmente se pode voltar a perder a noção do tempo enquanto se deixa levar desfrutando com o que mais se gosta. O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, professor do Centro de Estudos Avançados de Ciências de Comportamento da Universidade de Stanford, descreveu nas suas experiências o "estado de fluxo" como a absorção total numa atividade que proporciona prazer e desfrute. O tempo voa, os pensamentos desaparecem, toda a energia está concentrada numa atividade que gera uma completa satisfação. "Um estado de experiência ótima" muito próximo da felicidade. Só por isso deveríamos proteger os nossos hobbies do culto à otimização. Não há mal nenhum em viver umas horas do dia sem ser produtivo.

La imparable mercantilización de los ‘hobbies’ / Karelia Vázquez / El País (31 de março de 2024)

quarta-feira, 10 de abril de 2024

O Meu Carro e o Carro dos Meus Filhos

 Obviamente que o pai escolheu melhor!

Bem os avisei para não gastarem tanto dinheiro num carro, porque é o pior investimento que podem fazer, mas, eu sei como é, afinal, também já tive vinte e poucos anos.

Fica para memória futura. Já por aqui contei a história em que dois carros, o meu e o de outra senhora, ficaram visíveis, um em frente do outro, quando, num centro comercial, e já fora de horas, toda a gente tinha saído do parque de estacionamento. 

Aqui aconteceu algo semelhante. Após um dia de trabalho, eis que vamos para os nossos carros - sim, na verdade eles não são meus filhos, são apenas colegas de trabalho (mas é como se fosse) - e de igual forma, os nossos carros ali estão, sem mais nenhuns ali pelo meio. 

Uma imagem que fica aqui para memória futura. 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Porque Ler Livros é Mais Importante do que Nunca

"A capacidade de leitura depende do tempo de prática. E ler livros é a única maneira de desenvolver uma linguagem avançada que permita construir algum pensamento complexo. No entanto, escreve o grande neurocientista francês Michel Desmurget, os menores lêem cada vez menos submetidos ao jugo viciante dos ecrãs0 recreativos: séries, jogos, redes sociais. Apenas 5% dos alunos de 13 anos identificam as ideias implícitas num texto não trivial. A leitura compartilhada em família é a forma de as crianças aprenderem progressivamente a ler por si mesmas.



Submetidos ao jugo viciante dos omnipresentes ecrãs recreativos (filmes, séries de televisão, jogos, redes sociais...), os nossos filhos lêem cada vez menos e, consequentemente, cada vez pior, porque, como demonstram dezenas de estudos, a capacidade de leitura depende diretamente do tempo de prática.

Em Espanha, segundo as últimas avaliações internacionais, 75% dos alunos de 13 anos do ensino secundário não passam do nível "básico", o que no máximo lhes permite compreender enunciados simples e explícitos; 51% têm mesmo um nível "baixo" e dificuldades com os textos mais básicos. Apenas 5% dos leitores são "avançados", capazes de identificar e resumir as ideias implícitas num texto não trivial.

Estes números são comparáveis à média da OCDE. Desde 2015, os alunos espanhóis do ensino secundário perderam um ano de aprendizagem. Isto significa que os jovens de 13 anos em 2022 tinham o mesmo nível que os seus homólogos de 12 anos sete anos antes.

Muitos observadores parecem satisfeitos com esta evolução, alegando que é preciso avançar com os tempos e que as crianças de hoje simplesmente aprendem "de outra forma". Enquanto no passado se usava a palavra escrita, no mundo moderno recorre-se aos meios audiovisuais. Infelizmente, este argumento ignora as características específicas da palavra escrita. Em primeiro lugar, há a linguagem. O livro está desprovido de contexto. Tem apenas palavras como suporte. A imagem (ou o vídeo) de uma paisagem, de um objeto, de uma emoção, de uma cena da vida, etc., fala por si só, até certo ponto.

O livro tem que descrever tudo. Isto explica por que, em média, a complexidade léxica e gramatical dos corpos textuais é muito maior do que a dos corpos orais. Estudos extensos de conteúdo têm mostrado que há mais riqueza linguística num álbum de pré-escolar (o mais simples dos livros) do que em todos os corpos orais comuns: discussões entre adultos cultos ou adultos e crianças, filmes, séries, desenhos animados, programas de televisão... Isto significa que a exposição à palavra escrita é a única forma de desenvolver uma linguagem avançada, sem a qual não se pode construir qualquer pensamento complexo.

Muitas vezes ouço dizer que as gerações mais jovens nunca leram tanto, graças à internet. Infelizmente, essa afirmação é enganadora. Entre os jovens dos 8 aos 18 anos, a leitura digital representa entre 2% e 3% do tempo de ecrã, enquanto as atividades audiovisuais (filmes, séries, vídeos, etc.) representam entre 40% e 50%. Além disso, este tempo de leitura inclui muito poucos livros e muitos conteúdos linguisticamente e conceptualmente pobres. Em suma, o tempo de leitura na internet (redes sociais, blogs, e-mails e tudo o mais) e, mais geralmente, o tempo total de ecrã recreativo estão negativamente correlacionados com as competências linguísticas e a capacidade de leitura das crianças.

O mesmo acontece com os conhecimentos. Quanto mais os meninos e adolescentes lêem, mais ampla é a sua cultura geral, em comparação com os meninos de ambientes socioeconómicos comparáveis que estão expostos a conteúdos audiovisuais (filmes, séries, entre outros). As crianças que lêem têm muito mais probabilidades de saber, por exemplo, o que é um carburador ou uma taxa de juro; de afirmar que o Japão foi aliado da Alemanha e não dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, e de afirmar que há mais muçulmanos do que judeus no planeta.

Além dessas repercussões culturais e linguísticas, existem benefícios documentados em termos de coeficiente intelectual, concentração, imaginação, criatividade, capacidade de síntese e de expressão (tanto oral como escrita). Por outras palavras, enquanto os ecrãs recreativos minam meticulosamente o desenvolvimento dos nossos filhos, a leitura constrói meticulosamente a sua inteligência. Mas isso não é tudo. A leitura de romances também estrutura fortemente as nossas habilidades emocionais e sociais.

Se vejo Don Quixote na televisão, não tenho acesso à complexidade dos seus pensamentos. Em contraste, quando leio o romance, entro literalmente na cabeça da personagem e posso compreender o funcionamento interno dos seus pensamentos e ações. Melhor ainda, posso experimentar esses últimos. Os investigadores referem-se à leitura como um verdadeiro "simulador emocional", no sentido de que as situações vividas realmente e as experimentadas literariamente ativam os mesmos circuitos cerebrais.


Quando procuro o significado da palavra traição num dicionário, entendo intelectualmente o que significa; mas quando leio Madame Bovary, não só entendo, mas também experimento a traição tanto do ponto de vista do traidor como do traído. Penetro nos mecanismos subjacentes e sinto os estados emocionais associados. No final, os leitores de ficção têm uma maior empatia e capacidade de compreender os outros e a si mesmos.

Em última análise, todos esses benefícios influenciam enormemente a trajetória educativa e profissional das crianças. O impacto é significativo tanto a nível individual como coletivo. Numerosos estudos mostram que o desenvolvimento económico de um país, o número de patentes desenvolvidas e o seu PIB estão estreitamente relacionados com os resultados educativos. Esta é uma questão crucial num contexto de crescente competição internacional, especialmente se considerarmos, à luz das avaliações PISA já mencionadas, que as diferenças de desempenho, não apenas em leitura, mas também em matemática, são cada vez maiores entre as nações da OCDE e os países asiáticos.

Claro que podemos viver sem a leitura. Esse não é o ponto. O importante é que, nesse caso, perdemos uma parte essencial da nossa humanidade. Não é por acaso que os livros têm sido alvo de tiranos de todos os tipos desde o início dos tempos. Os nazis queimaram mais de 100 milhões de livros e, como o filólogo Victor Klemperer demonstrou, embarcaram num processo de empobrecimento da linguagem digno da novilíngua de Orwell em 1984. Hitler afirmava que a literatura era veneno para o povo. Em "Admirável Mundo Novo", de Huxley, apenas uma pequena casta ainda possui as ferramentas do pensamento e da linguagem. O resto é composto por técnicos zelosos, formatados para se adaptarem com a maior precisão possível às necessidades económicas, sobrecarregados com entretenimentos absurdos, privados das ferramentas fundamentais da inteligência e felizes com uma servidão que já nem conseguem perceber. 

A leitura é o antídoto mais seguro contra este pesadelo porque, através do seu efeito no desenvolvimento intelectual, emocional e social dos nossos filhos, desenha o caminho mais seguro para a emancipação. Como disse Ray Bradbury, autor do romance futurista Fahrenheit 451: "Não é necessário queimar livros para destruir uma cultura. Basta conseguir que as pessoas parem de lê-los".

Perante este desastre iminente, muitos culpam a escola. No entanto, o ambiente familiar desempenha um papel essencial nisso, especialmente através da leitura partilhada, que é a única forma de as crianças adquirirem progressivamente a linguagem avançada da palavra escrita e, em última instância, uma vez adquiridas as bases da descodificação, lerem por si próprias. Isso não significa que a escola seja ineficaz. Significa apenas que o tempo escolar disponível e o número de crianças por professor não permitem um trabalho ótimo. Todos os estudos mostram que, no que diz respeito à língua e à leitura, a escola não consegue compensar as desigualdades sociais. Em Espanha, de acordo com os dados do PISA, a diferença de competências entre o quarto mais favorecido e o menos favorecido dos alunos do ensino secundário representa quatro anos de aprendizagem. É uma diferença colossal. O problema só pode ser resolvido através de uma ação focada, precoce e massiva dirigida às crianças menos favorecidas. Também precisamos de um amplo programa de informação para os pais, especialmente para os desfavorecidos. Quando explicamos a estes últimos a importância de falar com os seus filhos, de ler-lhes histórias desde muito cedo, de levá-los à biblioteca, os efeitos na linguagem, desenvolvimento cognitivo, concentração ou vínculo familiar são consideráveis. Tudo se resume à vontade política. Os custos incorridos seriam amplamente compensados pela poupança posterior (terapia da fala, insucesso escolar, etc.).

Este é um texto escrito para a revista Ideas por Michel Desmurget (Lyon, 1965), neurocientista, no seguimento do lançamento do seu último livro, "Fábrica de cretinos digitais".

domingo, 7 de abril de 2024

A Meritocracia é uma Justificação do Sistema



"É um dos grandes cientistas do comportamento, mas Robert Sapolsky não acredita que tenha qualquer mérito. E não diz isso com modéstia, mas com convicção. Este divulgador acredita que o livre arbítrio é uma ilusão, e que não somos mais do que a soma de uma série de fatores que escapam ao nosso controlo.

Sapolsky passou três décadas a estudar babuínos selvagens no Quénia, mas acabou por escrever livros, mundialmente famosos, o comportamento humano. Segundo a sua teoria, esta evolução estava escrita e não teve capacidade de escolha real. No seu novo livro, "Decidido", desenvolve esta ideia recorrendo à neurologia, filosofia e sociologia. Não és tu, não sou eu, é o determinismo. A frase, além de ser a melhor das desculpas, coloca questões morais sobre os conceitos de culpa, castigo, mérito ou esforço. 

Afirma que o livre arbítrio não existe. Como é então formada uma decisão sobre a qual acreditamos ter controlo?

Um comportamento é o produto final do que aconteceu no teu cérebro há um segundo. É a biologia, sobre a qual não temos controlo, a interagir com o ambiente, sobre o qual não temos controlo. A neurobiologia influencia as tuas decisões, assim como a genética, a geocronologia e as ciências sociais. Não é que todas estas disciplinas sejam diferentes, mas tornam-se numa única disciplina.

Então, o facto de ter escrito um livro não dependeu do seu esforço e vontade?

Escrever este livro exigiu muito trabalho, mas consegui fazê-lo e há um "eu" em todo este processo. Mas se realmente parar e analisar, percebo que terminei o livro devido ao tipo de pessoa que sou. E isso deve-se a muitos eventos que estão fora do meu controlo. É preciso muito trabalho para fazer isso e para refutar a crença de que tu ganhaste o que és e outras pessoas não o ganharam.

Tanto que quase ninguém o faz. Porque é que o conceito de meritocracia está tão na moda?

A meritocracia é uma justificação do sistema. As pessoas que têm mais poder são as que têm mais razões para amar e manter esta ideia. Podemos pensar que não faz sentido. Mas, por outro lado, se tiveres um tumor cerebral, queres garantir que sejas operado por um grande médico. É necessário garantir que os trabalhos difíceis sejam realizados pelas pessoas mais competentes. Mas isso deve ser feito sem lhes dizer que são melhores, que merecem estar ali, que o ganharam. O problema com esta ideia é que pode acabar com a motivação.

E pode gerar frustração. Nem toda a gente pode ser um grande médico.

Os Estados Unidos são um exemplo muito evidente disso, porque temos esta mitologia cultural incrivelmente enraizada, a ideia de que qualquer pessoa, se trabalhar arduamente, pode ter sucesso. Qualquer pessoa pode ficar rica se estiver suficientemente motivada. Qualquer criança pode vir a ser presidente. E a realidade é que, se nasceres na pobreza, há aproximadamente 90% de chances de continuares na pobreza quando fores adulto.

Se não existe livre arbítrio, o que acontece com conceitos como culpa e castigo?

Se alguém é violento, é preciso impedir que faça mal, mas isso não significa que seja culpa dele. Em vez de uma prisão, ele deveria ser colocado numa espécie de quarentena. É muito mais fácil olhar para alguém sem educação e sem sucesso e simpatizar e dizer que as circunstâncias o tornaram quem é. Mas se tiveres de olhar para um polícia que acabou de disparar contra um homem desarmado simplesmente pela cor da sua pele, porque num segundo pensou que aquela pessoa que segurava um telefone o estava a apontar com uma arma... É muito mais difícil concluir que é o produto do que viveu.

(entrevista publicada no jornal El País a 22 de Março)

quarta-feira, 20 de março de 2024

Conversas Improváveis (82) - Problemas com o Tamanho


Depois de almoço cai-me a seguinte mensagem:

"Sabes aquelas pessoas que compram vibradores enormes a pensar "Isto é que vai ser!" e depois percebem que não o conseguem fazer entrar todo?

Cheguei à conclusão que tenho um problema idêntico com o telemóvel. Não me cabe na mão. Se o estiver a usar só com uma mão não consigo chegar a todo o ecrã".

domingo, 10 de março de 2024

Se Eu Estou Bem, Também Quero que os Outros Estejam Bem

"Eu sou de esquerda. Acredito no Estado social. Jamais votaria num partido que promete baixar os impostos. Assim como eu vivo bem, quero que os outros também vivam bem. Se existe alguma coisa que jamais faria na minha vida, é votar na direita» (Jürgen Klopp)

No Meu Coração e na Minha Cabeça

 "Estás... 

No meu coração e

Na minha cabeça...

Eu sei que estás aqui comigo 

Como faço para fingir com outra mulher

Como faço para sair ao fim de semana?

Estás

No meu coração e

Na minha cabeça...



 

 Heart Heart Head | Meg Meyers | 2014

domingo, 3 de março de 2024

Conversas Improváveis (81) - Sabes Como se Acaba com a Pedofilia na Igreja?


 Não raras vezes saímos do treino e depois ficamos, de forma muito inteligente, na rua, suados ao frio (ainda que este inverno de 2024 esteja a ser - mais uma vez - o mais quente de sempre) a conversar, seja dos nossos projetos futuros para o clube - pois é, acho que ainda não contei aqui que mudei de clube há coisa de um mês e pico - ou então a conversar de outros assuntos que estão na ordem no dia, como a detenção do Macaco e a máfia no FC Porto ou o estado da Justiça em Portugal. 

Desta vez falava-se do estado da justiça e eu lembrei o caso desta semana em que, um GNR que se apropriou de  um papagaio estimado em 250€ e apanhou 26 meses de prisão. Já o padre que estava acusado de tentativa de coação sexual de menor foi condenado a 23 meses de prisão. Para a justiça portuguesa, é mais grave um passarinho de 250€ do que um padre aliciar um menor para sexo. 

E, apesar de há já algum tempo ir convivendo com estes colegas, com todos pelo menos há mais de um ano, mas a verdade é que não sei tanto assim deles. Vamos aos treinos, vamos aos torneios e organizamos torneios mas, basicamente, é isso.

O meu colega, que tem mais de cinquenta anos, ainda acrescentou que em jovem, ainda andou a estudar para padre, uns dois ou três anos, mas que para além de não ter qualquer vocação para aquilo, depois que se interessou rapidamente por uma namorada, desistiu logo daquilo! 

A conversa vai-se desenrolando e, de repente, quando falo na aberração do celibato dos padres o meu colega pergunta: tu sabes quando é que os padres deixaram de poder casar e ter as mulheres que lhes apetecesse?  

Bom, já não tenho isso bem presente esse momento na História, respondi. 

"O meu filho está a estudar isso agora, e toda a gente sabe porque estudou na escola. Os padres sabem-no mas não mudam. O protestantismo estava a avançar na Europa por causa dos escândalos da Igreja (e eu bem me lembro de ter estudado, talvez no 8ºano sobre Lutero, Calvino e a Bula das Indulgências) e então, para travar esse avanço dos protestantes fez-se a Contra Reforma e apareceu a Inquisição".

Bom, a verdade é que, daquilo que eu estudei na escola (e tenho que ir pegar no livro certo em que estudei essa matéria) mas não me lembro de o celibato ter sido uma imposição por alturas da Contra Reforma contra o Protestantismo. E, de facto, é uns séculos anterior. Este movimento da Contra Reforma é do século XVI, ao passo que a obrigatoriedade do celibato na Igreja passou a ser obrigatória a partir do século XII. Até aí os padres podiam casar e ter as mulheres todas que quisessem.  E o argumento que dei ao meu colega foi que, deixaram de poder casar para manter as posses na Igreja e não as transmitir por herança.

É sabido que os homens fodem o dinheiro todo com as mulheres, ora, se pudessem casar, ainda iriam ter que deixar tudo o que amealharam durante toda uma vida, por herança, aos filhos! Vamos mas é obrigar os padres à aberração do celibato - nem se podem aproximar das mulheres! - que assim a riqueza fica toda na Igreja! 

A conversa concluiu-se depois com a pergunta: tu sabes como é que se acaba com a pedofilia na Igreja?

Fazendo com que toda a gente abandone a Igreja. 

Tem razão o meu colega. Se ninguém permitir que os filhos vão à Igreja, acabam-se num instante os abusos sexuais dos padres. 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A Maldição do Skincare

 



"A cultura da dieta é algo que conhecemos há décadas. Refiro-me a essa norma higiénica que associa a magreza à boa saúde e que faz com que todas as pessoas que habitamos este século já tenham feito dieta alguma vez. Que todas tenhamos relacionado o nosso peso com a nossa autoestima em algum momento e que tenhamos distorcido a imagem da comida, chegando ao ponto de transformar o alimento em inimigo do corpo. Hoje sabemos que a cultura da dieta não só não é saudável, como também é perigosa para a saúde mental. Pois bem, agora que começávamos a condenar o bodyshaming [gozar alguém por causa da sua figura], chega a maldição do skincare [cuidado facial] para nos amargar a vida e o gesto.

Se a cultura da dieta desencadeou a anorexia, uma doença com clara inclinação de género, a cultura do skincare impôs-se entre as mulheres mais jovens, que já começam a sofrer de cosmeticorexia, o novo distúrbio que associa a compra de cosméticos à ansiedade. Atualmente, milhões de meninas seguem uma rotina de "cuidado facial" - conhecida como skincare - a partir dos nove anos de idade. A hashtag #SephoraKids acumula 400 milhões de visualizações no TikTok e mostra meninas a prescrever cosméticos como se fossem brinquedos. No entanto, o pior de tudo é que as mulheres adultas caíram na armadilha. Pensamos que algo que começa com a palavra "cuidado" não pode ser mau.

Que começar a "cuidar da pele cedo" poderia ser uma boa ideia para as nossas filhas. Por isso, quando pisas na Primor da Gran Vía ou na Sephora da rua Fuencarral em Madrid, tens que abrir caminho entre o frenesim consumista das adolescentes, pobres meninas entregues ao sacrifício facial, patrocinado pelos seus pais.

Assim, passamos de esculpir o corpo para esculpir o gesto, um exercício destinado ao fracasso e à deceção que temos maquilhado com a palavra cuidado. Para além da acne, das linhas de expressão, dos poros dilatados e dos dezenas de novos fantasmas que nos assombram a alma, a skincare é a última promessa de exteriorizar quem cada uma deseja ser. Por consequência, a cultura da dieta relaxou um pouco. Agora é possível que uma adolescente possa comer quando tem fome sem culpa, mas terá de conseguir adaptar o seu rosto ao ideal que tem de si mesma. Uma ambição condenada ao fracasso.

Porque quando uma adolescente (ou uma pessoa adulta) se olha ao espelho, não se está a ver a si mesma, mas sim como pensamos que os outros nos veem. O problema é que o que o nosso rosto e gesto dizem de nós é um poço psicológico sem fundo, já que as pessoas, nem quando crianças nem quando adultas, sabemos totalmente quem somos. E a pior forma de descobrir é olhar para o espelho. O problema da cosmética é que está a deixar de ser um disfarce para conter a promessa de uma revelação. O rosto, já sabem, é o espelho da alma. Mas que essa descoberta tenha de ser concedida por um produto cosmético ou por hábitos estéticos é uma loucura. A skincare é, portanto, na minha opinião, sinónimo de doença. A desgraça é que, mais uma vez, caímos na armadilha. Pensávamos que era uma forma de cuidado, mas era uma maldição, típico de nós.

Nuria Labari | El País

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Achei Mas Não Quis Ver

 Estávamos como que meio entediados. Talvez mais ela do que eu, porque é da geração-estímulos-constantes. E vai daí lembramo-nos, ou melhor, ela lembrou-se de procurar pessoas do passado no telecrã. Procura este e aquele, e até encontrou um ex colega de trabalho, mas, já agora, já que estamos numa de procurar, vê se encontras aí a senhora minha ex...

E quem procura acha...


Não é de agora que, de vez em quando, pergunto-me o que terá sido feito da vida dela. E não é só dela, é de quase todas as pessoas que me foram próximas e que, por este ou aquele motivo, acabaram por seguir outros caminhos, bem distantes dos meus. 

Soube que casou, que teve filhos, e que, ao que parece (como a larga maioria das pessoas que casa) que se terá divorciado e, provavelmente passou a estar com outra(s) pesssoa(s), tal como eu fui estando ao longo destes anos todos.

Mas e da vida profissional, o que terá feito? Uma das frustrações na altura era, depois de ter sido a primeira pessoa da família a ir para a universidade, não estar a conseguir encontrar uma oportunidade de trabalhar na área em que se formou. É verdade que nunca baixou os braços, ia-se mexendo bem (e respondendo aos anúncios que eu lhe selecionava de jornais como Expresso, que comprava quase especificamente para o efeito) e antes até foi trabalhando e estudando, mas simplesmente as coisas não estavam a acontecer. 

Quem procura acha e a minha colega achou-a.

A profissão dela agora tem um nome todo pomposo, em estrangeiro e tudo que é para parecer mais moderno, e ainda por cima porque hoje em dia ninguém sabe inglês nem nada e assim impressiona mais, e ao que parece ela é chefia em empresa da área que estudou. E fiquei, sinceramente, contente que tenha atingido os seus objetivos profissionais.

A minha colega achou-a e vinha já para me mostrar mas eu não quis ver. Ainda deu para ver que tinha o cabelo curto (quer-me parecer que a única fase da sua vida em que teve os cabelos compridos foi enquanto namorou comigo) mas eu não quis ver mais do que esse vislumbre distante. Talvez porque vê-la agora num telecrã seria matar definitivamente a pessoa que eu conheci há quase trinta anos... 

Meses depois destas linhas que estavam aqui guardadas nos rascunhos (e eu devo confessar que tenho mais de 400 rascunhos guardados!) a minha colega recebeu novamente uma notificação da senhora em questão - sim, porque passou a seguir o seu perfil privado - e ainda que me tenha mostrado novamente a alguma distância, a verdade é que aquilo depois acabou por mexer comigo, mais do que deveria. 

Eu certamente não sou o Florentino Ariza nem ela é Fermina Daza, as personagens de Amor em Tempos de Cólera, que esperaram 51 anos para se acertar definitivamente, isto depois dela ter sido uma cabra e ter casado com outro. 

As coisas não se esquecem, estão simplesmente adormecidas e, por vezes, basta uma pequena ignição para trazer de novo tudo à tona. Nesse mesmo dia fui para casa, no carro, a remoer novamente esse passado já tão distante. E, de noite, e logo eu que quase nunca me consigo lembrar dos meus sonhos, acordei por volta das 4 e meia de um sonho, e apercebi-me que antes tinha estado a sonhar com ela, de novo, com os mesmos longos cabelos...

Ainda assim, se me perguntassem (e acho que a minha colega perguntou e acho também que outra pessoa próxima já me perguntou): se quisesses reencontrar alguém do passado, que ex namorada seria?

Bom, seguramente, não seria uma ex-namorada.

Seria certamente uma outra pessoa...

... que eu cá sei. 

Dia dos Namorados do Poliamor

 Esta semana que passou tivemos novamente a praga do dia dos namorados que, ainda por cima, calhou na mesma semana da outra praga que é o Carnaval.

Escusado será escrever (porque quem aqui me lê já conhece a minha opinião) que, por todos os motivos e mais alguns, acho o Dia dos Namorados uma verdadeira palermice e uma enorme falta de gosto e de originalidade. Cinquenta dias após a hipocrisia do Natal temos mais um dia dedicado ao comércio, para faturar prendinhas e jantares a rodos. É como se todos os casais do mundo fizessem anos nesse mesmo dia, tivessem que trocar prendas, ir jantar fora e dar a trancada da misericórdia. 

Mas porque me interesso por todas as formas diferentes que as pessoas têm de se relacionar, ocorreu-me a pergunta: e como funcionará nas relações poliamorosas? Como é o lado prático da coisa?


Para não complicar muito, vamos supor que eu tenho duas namoradas. Uma dessas namoradas tem outros dois namorados e a outra tem mais. Mas, como é lógico, estes três namorados das minhas namoradas também têm outras namoradas e, certamente também quererão jantar com elas... Muito facilmente temos dez ou vinte pessoas a namorar umas com as outras! 

E depois como é faz? Não dá para marcar dois ou três jantares na mesma noite com várias pessoas, primeiro porque não haveria tempo e depois porque só se janta uma vez! Então quê, marca-se um jantar para todos, estilo jantar da empresa? Acaba também por ser chato, porque depois eu quereria ficar junto das minhas duas namoradas, mas os namorados delas também quererão o mesmo. E depois da troca de prendas e do jantar? Faz-se uma orgia para todos ficarem satisfeitos? Mas e se algumas pessoas estão numa cena de sexo exclusivo só com uma pessoa, como é que é?

Ou é como nas famílias por altura do Natal e Passagem de Ano em que este ano passo o Dia dos Namorados com a namorada A e depois para o ano troco e passo com a namorada B? 

Admiro estas novas formas de amar mas, talvez por ser um gajo muito prático, intriga-me sobre como será que se faz a gestão destas pequenas coisa numa sociedade que está organizada de forma diferente e que, parece que o tempo é cada vez menor. 

O Problema deste País São os Ricos

O problema deste país não são os ciganos nem o Rendimento Mínimo. Nem os africanos ou os brasileiros que vêm para cá ser explorados na agricultura ou que por aí andam a transportar comida e dão milhões à Segurança Social para pagar os nossos subsídios de desemprego e as reformas de país mais envelhecido da Europa. O problema deste país são os ricos que, apesar de serem ricos, roubam o pouco que está destinado, exclusivamente, a todos aqueles que são verdadeiramente carenciados.

Jornal de Notícias | 2011

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Bem-Vindos ao Tecnofeudalismo

A propósito do lançamento que acontece hoje em Espanha do livro "Tecnofeudalismo", o seu autor, Yanis Varoufakis, escreveu um texto para o El País, que saiu no domingo passado para abrir o apetite para o livro e que nos deve fazer refletir a todos.


"Olhemos para onde olharmos, estamos a presenciar o triunfo do capital. Em armazéns, fábricas, escritórios, universidades, hospitais públicos, meios de comunicação, até mesmo no espaço, mas também no microcosmo das sementes patenteadas. Como ousaria, então, afirmar que o capitalismo morreu assassinado? Quem o matou? A resposta é deliciosamente irónica: o capitalismo morreu assassinado pela sua própria mão: pelo capital.

Se estiver correto, o preocupante não é o que a Inteligência Artificial (IA) nos fará no futuro, mas o que já fez: o capital tornou-se tão dominante e mutou para uma variante tão tóxica que, como um vírus estúpido, acabou por matar o seu hospedeiro, o capitalismo, para substituí-lo por algo muito pior.

Este novo capital mutante que matou o capitalismo reside na famosa nuvem, portanto chamemo-lo de capital na nuvem.

O capital na nuvem, claro, não reside verdadeiramente na nuvem, mas sim na Terra; reside em equipamentos ligados em rede, centros de dados, torres de telemóvel, programas, algoritmos baseados em inteligência artificial e no fundo dos nossos oceanos, onde se estendem inúmeros quilómetros de cabos de fibra ótica.

Ao contrário do que acontece com os meios de produção do capital tradicional, como motores a vapor ou robôs industriais modernos, que são meios fabricados, o capital na nuvem não fabrica coisas, mas é composto por dispositivos concebidos para modificar o comportamento humano. É isso que são a Alexa da Amazon ou o Assistente do Google: um meio de modificação de comportamento construído precisamente para isso. É uma máquina, uma peça do capital, que treinamos para nos treinar para treiná-la para decidir o que queremos. E, uma vez decidido o que queremos, a mesma máquina vende-nos diretamente, sem passar pelos mercados.

Para piorar, essa mesma máquina consegue que sustentemos a enorme rede de modificação de comportamento à qual pertence com o nosso próprio esforço, de forma voluntária e gratuita. Quando publicamos avaliações, valorizamos produtos ou partilhamos vídeos, diatribes e fotos online, estamos a ajudar a reproduzir o capital na nuvem sem receber um cêntimo pelo nosso trabalho. Em última análise, a máquina transformou-nos em servos da nuvem. Entretanto, nas fábricas e armazéns, os mesmos algoritmos que modificam o nosso comportamento e nos vendem produtos  usados — geralmente, através de dispositivos digitais no pulso do trabalhador — para fazê-los trabalhar mais rapidamente, dirigindo-os e monitorizando-os minuto a minuto.

Impressiona ver como o capital na nuvem consegue desempenhar cinco funções que antes estavam fora do alcance do capital tradicional. Captura a nossa atenção. Fabrica os nossos desejos. Vende-nos diretamente, sem passar pelos mercados tradicionais, aquilo que nos fez desejar. Fomenta o trabalho proletário nos locais de trabalho. E cria uma enorme mão de obra gratuita (os servos da nuvem).

Alguém se surpreende que os proprietários deste capital na nuvem — chamemo-los de nuvelistas — tenham um poder até agora inimaginável para obter uma mais-valia gigantesca dos proletários, um volume incalculável de trabalho não remunerado de quase todo o mundo e, dos capitalistas vassalos, umas rendas da nuvem inconcebíveis? Como é que não seriam muito mais poderosos do que jamais poderiam ter sido Henry Ford ou Rupert Murdoch?

"Um momento", dirão vocês. "Como é que Jeff Bezos é diferente de Henry Ford? Não são todos monopolistas?". Não. A Amazon.com não é uma empresa capitalista monopolista. No momento em que entramos na amazon.com, saímos do capitalismo. É verdade que é um local cheio de compradores e vendedores, então é uma enorme plataforma comercial, mas não é um mercado. O dono de tudo é um homem chamado Jeff, que é muito mais do que um monopolista.

Jeff não possui as fábricas onde são produzidos os artigos que os capitalistas tradicionais não têm outra opção senão vender na sua plataforma. O que ele possui é o algoritmo que decide quais produtos vemos, o mesmo algoritmo que nós treinamos para nos conhecer perfeitamente e nos combinar com um vendedor — que também conhece perfeitamente — de forma a que cada combinação tenha as maiores probabilidades de permitir a Jeff extrair a maior margem possível do vendedor por cada coisa que é comprada: até 40% do que pagamos.

A mente revolta-se perante uma exploração de tal dimensão e tão radicalmente nova. O mesmo algoritmo que ajudamos a treinar em tempo real para nos conhecer de alto a baixo modifica as nossas preferências e gere a seleção e entrega dos produtos que vão satisfazer essas preferências. Se duas pessoas escreverem "bicicletas elétricas" na amazon.com, obterão recomendações totalmente diferentes. É como se, num mercado ou centro comercial tradicional, as duas pessoas estivessem a andar uma ao lado da outra, olhando na mesma direção, mas vendo coisas diferentes com base no que o algoritmo de Jeff quer que cada uma veja.

Todos os que entram na amazon.com navegam num isolamento construído pelo algoritmo, como se estivéssemos num panóptico onde não podemos ver uns aos outros, apenas o algoritmo que tudo vê ou, para ser mais exatos, o que o algoritmo nos permite ver para tirar o máximo dividendo da nuvem, a versão atual da renda que os senhores feudais cobravam pelas terras aos seus vassalos e camponeses.

Isto não é capitalismo. Senhoras e senhores, bem-vindos ao tecnofeudalismo.

O capitalismo, não nos esqueçamos, tinha dois pilares: os mercados e os lucros. Claro, os mercados e os lucros continuam omnipresentes. Mas o capital na nuvem deslocou-os do centro do nosso sistema socioeconómico, empurrou-os para as margens e substituiu-os.

Os mercados, o meio onde o capitalismo se desenvolve, foram substituídos por feudos na nuvem, plataformas de comércio digital como a amazon.com ou Alibaba que, como vimos, parecem mercados, mas não o são.

E os lucros, que são o combustível do capitalismo? Bem, foram substituídos pelas suas antecessoras feudais: as rendas. Especificamente, as rendas da nuvem, uma nova forma de aluguer que se paga pelo acesso a esses feudos ou plataformas digitais.

Como surgiu o capital na nuvem? Nasceu no final dos anos noventa, quando a internet original, que era um bem comum — funcionava como uma zona livre de capitalismo —, essa internet 1.0, por assim dizer, caiu nas mãos das grandes empresas tecnológicas que estavam a surgir, as quais a privatizaram.

Quem pagou os trilhões de dólares que custou fabricar e acumular o capital da nuvem tão rapidamente nas mãos de alguns poucos nuvelistas? O surpreendente é que foram, sobretudo, os bancos centrais dos países do G-7. Como é possível? Bem, por acidente, ou, para ser mais exato, por culpa da crise.

Após o colapso do setor financeiro em 2008, os banqueiros centrais imprimiram nada menos que 35 trilhões de dólares para resgatar os bancos enquanto os nossos governos sujeitavam o povo a duras medidas de austeridade. Os capitalistas foram suficientemente astutos para prever que as pessoas não teriam um centavo e não poderiam comprar os seus produtos. Então, em vez de investir, levaram o dinheiro do banco central para a bolsa de valores e para os mercados de títulos, onde compraram ações, títulos e, de passagem, iates, arte, bitcoins, NFTs e qualquer "ativo" que conseguiram encontrar.

Os únicos capitalistas que realmente investiram em capital foram os donos das grandes tecnológicas. Por exemplo, nove em cada dez dólares investidos na criação do Facebook vieram desse dinheiro dos bancos centrais. Assim foi financiado o capital na nuvem e assim os nuvelistas se tornaram na nossa nova classe dominante.

Como resultado, o verdadeiro poder hoje não está nas mãos dos donos de maquinaria, edifícios, ferrovias, companhias telefônicas ou robôs industriais. Estes capitalistas terrestres ultrapassados ainda estão a obter mais-valias do trabalho assalariado, mas já não são os que mandam. Tornaram-se vassalos dos donos do capital na nuvem, dos nuvelistas. Quanto aos outros, voltámos à nossa antiga condição de servos e contribuímos para a riqueza e poder da nova classe dominante com o nosso esforço não remunerado, que se soma ao trabalho assalariado que fazemos quando temos a oportunidade.

Ainda não estão convencidos? Sim, é difícil abandonar a palavra capitalismo. Os liberais não são os únicos para quem é como a água para os peixes. Nós, socialistas, também precisamos sentir que o nosso propósito na vida é derrubar o capitalismo. É difícil aceitar que o capital nos ultrapassou e o substituiu por algo pior. De facto, os meus amigos de esquerda são os que mais tentam dissuadir-me e convencer-me de que sim, talvez o capital na nuvem seja importante, mas "isto continua a ser capitalismo, camarada".

Chamemos-lhe capitalismo rentista ou capitalismo monopolista, sugerem-me. Mas não é suficiente. O aluguer da nuvem não é como o aluguer do solo, porque exige um enorme investimento em novas tecnologias. E também não são rendas provenientes de um monopólio, porque Bezos e Zuckerberg não monopolizam mercados para vender o que produzem (como faziam Ford e Edison), mas sim substituíram os mercados e não estão interessados em produzir nada (ao contrário de Ford e Edison).

Que tal capitalismo de vigilância? Também não. Os nuvelistas não se limitam a utilizar algoritmos para nos lavar o cérebro em nome dos anunciantes num ambiente capitalista. Não, o capital na nuvem reproduz-se graças ao nosso trabalho gratuito, explora diretamente o trabalho assalariado e espreme as rendas da nuvem dos capitalistas vassalos em plataformas comerciais que não são mercados. Isto não é capitalismo, senhores.

Mas e a afirmação de que o tecnofeudalismo é parasitário do setor capitalista integrado nele? É verdade. Se os capitalistas convencionais se extinguirem, os nuvelistas desapareceriam, incapazes de cobrar rendas da nuvem aos fabricantes. E daí? Quando o capitalismo acabou com o feudalismo, os capitalistas passaram a ser parasitas dos senhores feudais, no sentido de que, sem terras privadas que produzissem alimentos, o capitalismo teria desaparecido. Agora, o setor capitalista tradicional também alimenta o tecnofeudalismo, mas os que dominam são o capital e as rendas da nuvem.

O conceito de tecnofeudalismo demonstra que o facto de os trabalhadores automobilísticos e enfermeiros se organizarem, embora continue a ser essencial, é insuficiente. Explica o que vai custar mobilizar-se contra o cartel dos combustíveis fósseis quando os nossos meios de comunicação funcionam graças a um capital na nuvem preparado para envenenar a opinião pública. Explica por que a transição para carros elétricos causou a desindustrialização da Alemanha, à medida que os lucros da engenharia mecânica de precisão são substituídos pelos dividendos que os proprietários do capital na nuvem obtêm ao observar as rotas e hábitos dos condutores. De repente, faz muito mais sentido a decisão de Elon Musk de comprar o Twitter, como interface entre suas ações de capital mecânico na Tesla e SpaceX e o capital na nuvem. A nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China, especialmente desde o início da guerra na Ucrânia, é explicada como o reflexo de um confronto de fundo entre dois tecnofeudalismos com rendas da nuvem, um em dólares e outro em yuanes.

Não é alucinante? Todos esses avanços científicos incríveis, essas redes neuronais fantásticas e esses programas de inteligência artificial inimagináveis, para conseguir o quê? Para criar um mundo onde, enquanto a privatização e o capital de risco esvaziam o nosso ambiente de toda a riqueza física, o capital na nuvem dedica-se a esvaziar os nossos cérebros. Para que possamos ser donos individuais da nossa mente, devemos ser donos coletivos do capital na nuvem. Quando recuperarmos a nossa mente, poderemos trabalhar todos juntos para encontrar a maneira de criar um novo capital comum na nuvem. Será extremamente difícil, mas é a única forma de fazer com que os nossos dispositivos baseados na nuvem deixem de ser um meio fabricado para modificar o comportamento e se tornem um meio para a colaboração e emancipação humanas.

Bem-vindos ao Tecnofeudalismo | Varoufakis | El País | 11 de Fevereiro de 2024

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Conversas Improváveis (80) - Quando a Geringonça do PSD-CH€GA Vier Isso Acaba


Há uns meses uma amiga perguntou-me se tinha interesse em ir ver um determinado concerto em meados deste ano. Como não sou muito de fazer fretes digo que não, mas, se precisar de companhia, é uma questão a ver-se, ainda que até lá, em meio ano, muita coisa possa acontecer!

"Daqui até Maio tem tempo... De qualquer forma é preciso arranjar bilhete.  Isso é que não vai ser fácil. Deve ser o caos no site, como habitual. Vou ver...

Sim, está tudo em crise mas há uma classe média que esgota tudo que é evento!

Deixa lá. Quando vier a geringonça PSD-CH€GA isso acaba".

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Conversas Improváveis (79) - Como se Cura uma Neura?


No refeitório da empresa noto que uma colega, em silêncio, está metida nos seus pensamentos e pergunto:

Que se passa Marisa? Estás bem?

Estou com a neura.

- Estás com a neura? 

Sim!

- "Como se cura uma neura?", pergunta a Juliette. 

"Fácil", respondo eu. "Com um vibrador"!

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Danças Comigo Novamente?


 Jantar com os cães-grandes, que é como quem diz, com todas as chefias da empresa. Durante a tarde já tinham passado pela nossa loja. Ninguém deve ter reparado mas o meu apurado radar detetou imediatamente. Lá fora, ainda na rua, vi a trespassar o cabelo da N. a rodar, com um volume diferente do que eu tinha visto quando a conheci. "Mmm, cortaste o cabelo", pensei para com a minha braguilha. E por acaso foi logo algo que não pude deixar de reparar quando a conheci, aquele cabelão preto, pelo fundo das costas, ancorado pela curva das nádegas. 

Entretanto lá nos vieram cumprimentar: o diretor geral austríaco, o alemão responsável da logística, o húngaro cara-pálida com cabelo à Tintin, que, agora que penso nem sei bem o que é que ele faz na empresa!, bem como a sul americana de aspeto doce que está em Paris e que o meu colega acha que tem uma voz sexy. Todos vestidos de forma muito descontraída. 

E depois lá veio ela, que vive na Madeira. Não creio que eu tenha sido inconveniente, quando lhe disse: "deu um belo corte de cabelo" e, como é óbvio, ela não estava à espera de ouvi-lo. Na verdade nem foi assim um corte de cabelo tão grande. ela simplesmente escadeou o cabelo e dá a sensação de ter ficado com um pouco mais de volume. Mas eu acho que as mulheres gostam que reparemos nelas. Bom, e foi só isso. 

Mas, para dizer a verdade, a nossa vontade nem era muita de ir ao jantar. Os meus colegas até tinham cenas lá da religião deles e, no meu caso é sempre chato nem poder ir a casa e tomar banho. Tenho que me limitar a trazer uma muda de roupa e a lavar-me como um gato e a fazer tempo por ali até à hora combinada do jantar. E depois porque são sempre situações forçadas em que está sempre implícita uma certa dose de hipocrisia e subserviência. Desta vez até fiquei a fazer companhia à colega que fica sozinha na empresa na sua última hora de trabalho (porque assim preferiu) e, passado mais um bocado, também chegaram os meus colegas mais novos. 

De tarde os 'cães grandes' foram fazer um passeio pela cidade, enquanto que nós, os cães pequenos, ficamos a trabalhar. É a eterna luta de classes, como bem diria Marx. Mas a hora chegou e lá fomos nós a pé até ao restaurante que fica a poucas centenas de metros da nossa loja. 

Chegados ao restaurante, a nossa colega que fica até mais tarde e que reporta diretamente à menina que deu um corte de cabelo (e não ao nosso chefe cá do Porto) colou-se e ficou sentada em frente dela. Tudo certo. Elas falam imenso durante todos os dias mas nunca estão juntas Nós os três fomos para a outra ponta da mesa. Ao meu lado esquerdo não ficou ninguém, e em frente também não, o que deu imenso jeito porque ali ficou uma bela travessa de comida e era só abastecer para o meu prato! Os meus colegas ao meu lado direito e, na diagonal em frente, o alemão (de quem ouço falar todos os dias) e, ao seu lado, o tal carinha de bebé húngaro com cabelo à Tintim e o meu chefe anfitrião a meio com o restante pessoal. 

Fui falando com os colegas, mantendo-me outro tempo mais calado. Até que, mais à frente fui começando a falar com o alemão até porque, como seria normal, falou-se um pouco do trabalho e todos trabalhamos para o mesmo. O S. deve ter uns cinquenta e tal, cabelos brancos, compridos e apanhados num rabo de cavalo, olhos arianos azuis, óculos e uma barriga de trigémeos porque, como se sabe pelos estudos científicos mais recentes, a cerveja não faz engordar. E já me tinham dito que se calhar gostaria de conversar com ele. 

Disse-lhe que, normalmente, não sou calado e falo até de mais. Mas que não me sinto muito confortável com o inglês. Que entendo mais ou menos bem mas, porque não pratico e não falo em inglês com ninguém (ao contrário, por exemplo, do meu colega que fala muitas vezes com ele e outros estrangeiros) acabo depois por não me sentir confortável porque não sou extremamente fluente. Ao que ele me disse que na Alemanha têm uma expressão que é qualquer coisa como isto "learning by doing", aprender fazendo. Disse-lhe também, em jeito de curiosidade que há uma frase em alemão que ainda hoje me lembro da primeira namorada dizer: "es regnet heute", e ele confirmou "that's correct, it´s raining today"!

O S. é muito sequioso. Os copos bem grandes de cerveja desapareciam quase tão rapidamente quando chegavam à mesa. Já o húngaro de cabelo à Tintim preferia copos mais pequenos. (se calhar deveria ter avisado antes que não percebo nada de cervejas, e nem sei a diferença entre cerveja, finos ou grossos!). 

Acho até que conversa começou por ai. Foi o quebrar do gelo. Comecei por lhe dizer que sou um metaleiro estranho, porque não bebo bebidas alcoólicas, nem fumo ou tomo café. Nem fumas uma ervita?, perguntou-me! Não, nem isso!

E a partir daí lá fomos conversando, maioritariamente sobre heavy metal. Ele é um metaleiro da velha guarda, que gosta muito de Slayer, mas falou-me também de Ozzy Osborne bem como de outras bandas, e também gosta bastante de Nirvana (que não é metal). Falou-me de quando foi ver um concerto de AC/DC exclusivo para mil pessoas e em que era preciso apresentar o passaporte e conferir com o número do bilhete e que ficou a um metro da banda. Mas agora não tem ido muito a festivais porque, e até ele, alemão, com um salário bem diferente do meu, acha que está tudo demasiado caro. 

Apesar do cansaço, e também do sono, até acabou por ser uma noite agradável. Quase se fez ali uma amizade circunstancial. O alemão sugeriu-me uma banda alemã de punk rock: Broilers. 


E a primeira música que ouvi foi esta: Tanzt Du noch einmal mit mir? que em português quer dizer qualquer coisa como: "danças comigo novamente"?

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Mil Cerejeiras




 

Com uma chamada audaciosa e repentina, a Revolução Ocidental está a começar 
Que os nossos corações estejam abertos a isso 
Nação pacifista 
Montando uma bicicleta antiga, é a bandeira do nosso sol nascente 
Afugentando espíritos malignos como um míssil

Nas linhas do comboio, correndo ao longo da linha 
Vamos avançar. Não olhes para trás 
Rapazes e raparigas tornando-se como samurais 
Assim como aqueles da nossa vida anterior

Milhares de cerejeiras murchando na luz 
Embora não consiga ouvir a tua voz, guarda o que eu digo em mente 
Este buquet que nos envolve é veneno de ferro, vê 
Olhando para nós lá de cima naquela grande guilhotina

A escuridão acabou de envolver o universo que conhecemos 
O lamento que cantas já não pode alcançar ouvidos 
Ainda estamos longe de atingir céus azuis limpos 
Vai em frente, continua a disparar, com essa pistola de raios, luta!

Veteranos que se treinaram através de lutas são agora oficiais na batalha 
Aqui e ali, vemos as prostitutas em procissão 
Este, aquele, não importa, cada pessoa se reúne 
Marchemos agora para as nossas mortes santas! 1, 2, 3, 4

Passando pelos portões nos picos das montanhas 
Escapando deste mundo, matem todos os demónios malignos 
Certamente isso terminará num desfecho 
Entre a multidão que dá os seus aplausos

Milhares de cerejeiras murchando na luz 
Embora não consiga ouvir a tua voz, guarda o que eu digo em mente 
Este buquet que nos envolve é veneno de ferro, vê 
Olhando para nós lá de cima naquela grande guilhotina

A escuridão acabou de envolver o universo que conhecemos 
O lamento que cantas já não pode alcançar ouvidos 
Ainda estamos longe de atingir os picos da esperança 
Vai em frente, continua a disparar, usa o raio intermitente!

Nas linhas do comboio, correndo ao longo da linha 
Vamos avançar. 
Não olhes para trás 
Rapazes e raparigas tornando-se como samurais 
Assim como aqueles da nossa vida anterior

Milhares de cerejeiras murchando na luz 
Embora não consiga ouvir a tua voz, guarda o que eu digo em mente 
Este buquet que nos envolve é veneno de ferro, vê 
Saltando para nós lá de cima naquela grande guilhotina

Milhares de cerejeiras murchando na luz 
Quando a tua canção puder ser ouvida, dançaremos com toda a nossa força 
Este buquet que nos envolve é veneno de ferro, vê 
Vai em frente, continua a disparar, com essa pistola de raios, lidera!


Senbonzakura  | Hatsune Miku | versão WagakiBand (2014)