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sábado, 24 de maio de 2025

Unabomber - A Traição de um Irmão

Dilema ético não é ser eleito primeiro-ministro e continuar a mamar avenças debaixo da mesa. Isso é outra coisa mais parecida com falta de vergonha na cara. Dilema ético é seres confrontado com a possibilidade de denunciares o teu próprio irmão e este ser condenado à morte. Esta é a história do irmão de Unabomber que o denunciou, e que, pela longa reportagem que o New York Times fez, me parece que, tantos anos depois não ficou em paz com o que fez... 

Era maio de 1996, e David Kaczynski, conselheiro de jovens problemáticos no norte do estado de Nova Iorque, sentou-se para escrever uma carta ao seu irmão, Ted. Um mês antes, o seu irmão tinha sido chocantemente desmascarado como o enigmático Unabomber, responsável por uma campanha de atentados com explosivos que durou 17 anos e causou mortos e feridos por todos os Estados Unidos.

Ted Kaczynski, um matemático brilhante mas com perturbações mentais, que se tinha isolado anos antes numa cabana remota em Montana, fora detido graças a uma denúncia ao FBI, pondo fim a uma das maiores e mais dispendiosas caçadas humanas da história dos EUA. O denunciante do FBI foi David. Sentado em casa, em Schenectady, Nova Iorque, David começou a escrever a carta com lápis, consciente de que poderia ter de apagar e reescrever até acertar.

Só podia imaginar o quanto o Ted me odiava”, recordou numa entrevista. Perguntava na carta se Ted o permitiria visitar, para tentar explicar.

“Queria dizer-lhe pessoalmente que sentíamos uma obrigação moral de parar a violência,” disse.

Ted recusou colocá-lo na lista de visitantes e, quando respondeu, foi para descarregar toda a sua raiva no irmão.

“Vais para o inferno porque, para ti, veres-te como realmente és será o verdadeiro inferno,” escreveu.

David lembra-se de ter ficado magoado, mas não surpreendido.

“A carta do Ted confirmou os meus receios,” disse. “Foi como o destino a abater-se.”

Tentou novamente, desejando uma resposta diferente. Durante quase três décadas, David escreveu ao irmão, anos marcados por nostalgia, arrependimento e intensa auto-reflexão.

Em entrevistas ao The New York Times, David falou pela primeira vez em detalhe sobre esta longa correspondência - dezenas de cartas, postais e livros que pensava que Ted acharia interessantes — numa tentativa de reabrir uma linha de comunicação que se tinha fechado com a denúncia ao FBI.

As cartas variavam entre o mundano e o profundo: memórias de jogos de basebol da infância, notícias da reforma de David, atualizações sobre a saúde da mãe envelhecida. Por vezes, lamentava com saudade o fim do laço forte que outrora partilharam.

Esperava ter oportunidade de me encontrar com o Ted e explicar-lhe pessoalmente o que fiz e porquê,” disse David, de 75 anos, sobre a correspondência, parte da qual está arquivada na Universidade de Michigan, incluindo cartões de aniversário e de Natal. “Não esperava necessariamente que ele compreendesse o meu ponto de vista o suficiente para me perdoar. Mas pensei que ambos merecíamos uma oportunidade para nos olharmos nos olhos e partilharmos a verdade dos nossos princípios e sentimentos.

DOIS IRMÃOS, UMA INFÂNCIA

Os irmãos Kaczynski, filhos de imigrantes polacos de primeira geração, cresceram em Evergreen Park, um subúrbio operário de Chicago. Os pais valorizavam muito a curiosidade intelectual, o sucesso académico e a vida guiada por princípios éticos.

A família tocava música em conjunto, como um quarteto, e os rapazes desenvolveram amor pela natureza. Mas David, sete anos mais novo, via o irmão como socialmente desajeitado e notava que Ted não tinha amigos para além dele. A mãe disse uma vez que Ted era extremamente protetor de David e que este parecia ser a única pessoa de quem ele gostava.

David lembrava-se desses anos nas cartas a Ted.

(Sem data)
Foste o melhor irmão mais velho que poderia ter tido quando era pequeno, e começava a formar uma noção de mim mesmo e do mundo à minha volta. Guardarei sempre com carinho as memórias da tua bondade.

Academicamente e profissionalmente, os caminhos dos dois divergiram. Ted, um prodígio da matemática, entrou em Harvard aos 16 anos e depois fez mestrado e doutoramento na Universidade de Michigan. Tornou-se professor assistente de matemática na Universidade da Califórnia, em Berkeley, mas os problemas de saúde mental levaram-no a abandonar a carreira. David, que sonhava ser escritor, formou-se em Línguas na Universidade de Columbia em 1970.

David admirava o irmão, impressionado pela sua inteligência e independência, e queria ser como ele.

Ambos partilhavam o desejo de fugir da sociedade e refugiar-se na natureza. No verão de 1969, Ted convidou David para ir com ele ao Yukon, no noroeste do Canadá, à procura de terreno. Passaram semanas a explorar florestas e a conversar à volta da fogueira.

Pouco depois, em 1971, compraram um terreno nos arredores de Lincoln, Montana, onde Ted construiu uma cabana sem água nem eletricidade. David vivia a cerca de 145 km de distância, em Great Falls, onde trabalhava numa fundição de zinco. Ficou contente por ter o irmão por perto.

Havia equilíbrio entre eles. “O Ted guiava-me nas caminhadas, e eu ajudava-o nas interações sociais, por modestas que fossem,” disse David. “Acho que não percebi na altura o quanto me tornara importante na vida do Ted como seu único e melhor amigo.

Mas David acabaria por sair de Montana. Depois de perder o emprego na fundição, aceitou um lugar como professor de Inglês numa escola secundária em Lisbon, Iowa, onde o pai tinha trabalhado.

Durante dois anos deu aulas, depois decidiu dedicar-se à escrita de um romance. Descrevendo-se como “anti-carreirista”, mudou-se para o deserto do Texas em 1982, inspirado pelo filósofo Martin Heidegger, e viveu em isolamento, durante quase oito anos, em condições primitivas - primeiro num buraco coberto com chapas de zinco, depois numa pequena cabana.

Viviam, ele e Ted, em universos paralelos. E trocavam cartas sobre as suas experiências.

A TRAIÇÃO DE UM IRMÃO

Os atentados começaram a 25 de maio de 1978, quando um segurança da Universidade Northwestern se feriu ao investigar um pacote suspeito. Outro engenho explosivo apareceu um ano depois. As primeiras vítimas sofreram ferimentos ligeiros; mas, ao longo da campanha, três pessoas morreram e 23 ficaram feridas.

David e a família nada sabiam da violência do irmão. Por volta de 1985, Ted cortou quase todo o contacto com os pais, acusando-os de o pressionarem demasiado e culpando-os pelo seu isolamento social.

Em 1990, após o pai se suicidar devido a um diagnóstico terminal, Ted telefonou à mãe a expressar condolências - um dos poucos gestos de contacto.

David, por seu lado, mudara-se para Nova Iorque, para viver com Linda Patrik, professora de Filosofia e antiga colega de escola. Quando contou a Ted que iam casar, recebeu uma carta furiosa a dizer que cometia “o maior erro da vida.” A seguir, Ted cortou todo o contacto com David.

Os ataques continuaram e as autoridades tinham poucas pistas. Mas em 1995, o Unabomber publicou um manifesto de 35 mil palavras, onde atacava a Revolução Industrial e os seus efeitos nefastos.

Linda levou David à biblioteca da universidade para ler o manifesto online. Era a primeira vez que usava a internet.

Linda perguntou: não te soam familiares algumas ideias?

David, embora a medo, começava a pensar o mesmo.

“Sem a Linda, provavelmente teria enfiado tudo numa gaveta,” disse.

Durante três meses, trabalhou com um investigador privado e um ex-especialista do FBI, até contactar um advogado que serviu de intermediário para alertar o FBI.

Ted foi preso seis semanas depois, em abril de 1996. Um acordo evitou a pena de morte, resultando numa pena perpétua sem possibilidade de liberdade condicional.

David escreveu-lhe pouco depois e recebeu uma resposta mordaz de três páginas, acusando-o de ser movido por inveja e ódio.

1996
Sabes que, acima de tudo, preciso de liberdade física, silêncio e solidão, e que, para mim, prisão perpétua é pior que a morte... A verdadeira razão por que me denunciaste é porque me odeias... Porque te sentes inferior a mim.

Mas David insistiu. Queria honrar uma promessa feita à mãe, Wanda: “Nunca abandones o teu irmão, porque é isso que ele mais teme.

Sete meses após a detenção de Ted, David pediu desculpa:

Outubro de 1996
Tive de encarar a minha própria crueldade, e é, como tu dizes, um tipo de inferno. Amo-te. Lamento profundamente o que fiz e o quanto te magoei.

Depositava dinheiro na conta prisional de Ted e enviava-lhe livros. Um deles, oferecido pela mãe no Natal de 2005, chamava-se Quem Encomendou Esta Carga de Esterco?. Ted riscou uma nota no rodapé da fatura: “Obviamente, isto foi direto para o lixo.”

Em 2007, David avisou Ted de que a mãe estava gravemente doente, implorando que a contactasse. Nunca houve resposta. Quando Wanda morreu em 2011, aos 94 anos, o capelão da prisão disse que Ted não queria falar.

NOVAS LIGAÇÕES

Sem conseguir chegar ao irmão, David encontrou amizade num lugar inesperado: Gary Wright, vítima de um dos atentados, que sobreviveu com mais de 200 estilhaços no corpo.

David e a mulher escreveram às vítimas a pedir desculpa. Poucos responderam. Um investigador sugeriu que ligasse a Gary Wright, que parecia aberto.

David ligou-lhe e falou durante 20 minutos. “David, não tens de pedir desculpa,” disse Gary. “Fizeste o que era certo.”

Foi um ponto de viragem. Tornaram-se amigos, visitaram o Hall da Fama do Basebol, falaram juntos em eventos contra a pena de morte e sobre o poder do perdão.

UMA CARTA NO NATAL

No Natal de 2021, uma carta de David para Ted foi devolvida. Estranhou. Soube então que Ted estava no Centro Médico Federal em Butner, Carolina do Norte - o maior complexo médico prisional dos EUA.

Descobriu depois que Ted tinha cancro terminal. Encontrou uma carta no Reddit em que Ted admitia: Não devo viver mais de dois anos, talvez nem um.

Escreveu-lhe com mais frequência: “Precisava de lhe dizer que o amava e como ele me influenciou positivamente.”

Na última carta, disse que as melhores ideias de Ted “sobreviveriam a todos nós.”

Em junho de 2023, depois de uma caminhada, recebeu a notícia: Ted suicidara-se. Sentiu um vazio.

“Uma relação unilateral é, ainda assim, uma relação,” disse. “Mas agora, se encontrar palavras para partilhar com o Ted, só as posso dizer a mim mesmo.”

Tentou contactar a prisão para saber se podia tratar dos restos mortais. Sem resposta. Escreveu:
Senhores, por favor, POR FAVOR, dêem-me o contacto de alguém. Ignorar-me assim é cruel.

Foi-lhe dito que Ted deixara instruções escritas e que teria de fazer um pedido oficial. Estava furioso.

“Denunciei o meu irmão ao FBI, salvando vidas,” escreveu. “Agora ignoram o meu pedido sobre os restos mortais dele? Isso é desumano.”

Ted tinha deixado um testamento manuscrito:

Dezembro de 2014
Nenhuma pessoa ligada a mim por sangue ou casamento deverá possuir ou controlar qualquer parte dos meus bens.

David ainda hoje não sabe o que foi feito do corpo do irmão.

"My brother, the Unabomber", publicado no The New York Times (International Edition), de 5 de Maio de 2025, por Serge F. Kovaleski (com investigação de Susan C. Beachy e Kirsten Noyes):

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Maria Teresa Horta no New York Times: "A Última das Três Marias de Portugal"

Maria Teresa Horta morreu a 4 de fevereiro e Patrícia Reis, escritora e autora da biografia a "Desobediente" escreveu no Diário de Notícias: 

"Maria Teresa Horta deixou-nos uma obra imensa que deveremos honrar e revisitar. Deixou-nos uma posição feminista que, ainda agora, é urgente manter. Deixou-nos boas ideias sobre jornalismo. Era uma mulher singular. Não era consensual e alimentava-se do conflito, nunca o escondeu. Dizia-me: “Sou uma chata, não me calo.” Ainda bem que não o fez. O que lhe devemos é tanto que não cabe num único texto. Portugal deveria ter sido mais generoso com a Teresa. Ela deveria ter uma lista imensa de prémios, não tem. Deveria ter ganhado o Prémio Camões. Deveria… tanto que lhe devemos e já não vamos a tempo de cumprir".

Hoje, dia 13 de fevereiro, dou de caras no New York Times com uma página sobre a "última das "Três Marias" de Portugal e o artigo lembra a importância que tiveram para chamar a atenção do mundo para o que se passava com a ditadura no nosso país. Como já por aqui escrevi antes, acho que tratamos muito mal os nossos artistas e não lhes damos o devido valor. Aqui fica o artigo:


 Maria Teresa Horta, uma escritora feminista portuguesa que ajudou a derrubar as restrições impostas às mulheres pelo seu país conservador, morreu a 4 de fevereiro na sua casa em Lisboa. Tinha 87 anos.

A sua morte foi anunciada no Facebook pela sua editora, Dom Quixote. O primeiro-ministro português, Luís Montenegro, prestou-lhe homenagem na rede social X, descrevendo-a como “um exemplo importante de liberdade e de luta pelo reconhecimento do lugar das mulheres.”

Maria Teresa Horta foi a última sobrevivente do célebre trio de escritoras conhecido como as “Três Marias”, que em 1972 publicou o marcante livro Novas Cartas Portuguesas. Composto por cartas que as três escritoras trocaram entre si sobre as dificuldades de ser mulher em Portugal, o livro abriu um novo mundo de expressão da sexualidade feminina reprimida, enfureceu a ditadura e levou à sua detenção e acusação criminal por indecência e abuso da liberdade de imprensa.

Para as feministas em todo o mundo, assim como para os defensores de uma imprensa livre, a ação policial contra as mulheres portuguesas em junho de 1972 foi um ultraje que, aos poucos, se tornou o foco de um movimento internacional de protesto”, escreveu a revista Time em julho de 1973.

As Três Marias - Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno (1939-2016) e Maria Velho da Costa (1938-2020) - tornaram-se heroínas do feminismo internacional, e a fama do livro alertou o mundo para a repressão sob a ditadura portuguesa. Simone de Beauvoir, Marguerite Duras e Adrienne Rich foram algumas das escritoras que declararam publicamente o seu apoio. A National Organization for Women votou para tornar o caso a sua primeira causa feminista internacional.

Este não foi o primeiro embate de Maria Teresa Horta com a controvérsia.

Em 1967, após a publicação do seu influente livro de poesia Minha Senhora de Mim, foi “espancada na rua”, contou à sua biógrafa Patrícia Reis em 2019. O livro, disse, “desafiava algo profundamente enraizado neste país: o silenciamento da sexualidade feminina.”

As visitas frequentes da polícia política portuguesa tornaram-se parte da sua vida.

Os temas da sua obra emergiam de uma dupla opressão: ser mulher numa sociedade dominada pelos homens e crescer num Estado policial.

Nasci num país fascista, um país que roubava a liberdade, um país de crueldade, prisões, tortura”, disse numa entrevista a um jornal italiano em 2018. “E cedo percebi que não podia aceitar isto.

Também não aceitava a opressão das mulheres na cultura tradicionalmente machista de Portugal. “As mulheres são espancadas ou violadas tanto por um médico, um advogado, um político, como por um operário, um camponês e assim por diante”, disse ao Diário de Notícias em 2017. “As mulheres sempre foram espancadas e sempre foram violadas. Não se considera a violência que ocorre na cama, no ato sexual com o marido.

Em 1971, essas preocupações levaram-na a reunir-se semanalmente com duas amigas e colegas escritoras, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, para partilharem reflexões escritas sobre os temas que as atormentavam.

Inspiraram-se numa obra clássica do século XVII, Cartas de uma Freira Portuguesa, supostamente escritas por uma jovem enclausurada num convento português para o oficial de cavalaria francês que a abandonara. Embora hoje os estudiosos acreditem que a obra seja ficção, a sua expressão poderosa de desejo reprimido e frustração ressoou nas Três Marias.

Tal como a freira do livro, usaram cartas entre si, bem como poemas, para expressar a sua insatisfação enquanto mulheres nos seus trinta anos, educadas por freiras, casadas e com filhos, numa Lisboa sufocada por uma ditadura de 35 anos, um catolicismo rígido e guerras coloniais mal planeadas em África.

Quando publicaram Novas Cartas Portuguesas, prometeram nunca revelar a ninguém, muito menos à polícia, qual delas escrevera cada parte.

“As suas visões e personalidades eram bastante distintas”, escreveu Neal Ascherson na The New York Review of Books ao analisar a tradução inglesa de 1975, intitulada The Three Marias. “Maria Isabel era a mais fria, Maria Teresa a mais exuberante, Maria Fátima a que se afastava do feminismo puro para uma análise social e psicológica da opressão de um povo inteiro.”

A obra - que Ascherson chamou de “um grande e complicado ramalhete” - está impregnada de uma raiva reprimida face à condição feminina.

Queriam que as três de nós nos sentássemos em salas de estar, bordando pacientemente os nossos dias com os muitos silêncios, as muitas palavras suaves e gestos que a tradição dita”, diz uma das cartas. “Mas, seja aqui ou em Beja, recusámos o claustro, estamos a despir-nos dos nossos hábitos, silenciosamente ou de forma desafiadora.

Outra carta afirma: “Ganhámos também o direito de escolher a vingança, pois a vingança faz parte do amor, e o amor é um direito há muito concedido na prática: praticar o amor com as nossas coxas, as nossas longas pernas que cumprem com mestria o exercício esperado delas.

Embora Ascherson considerasse o livro “por vezes exasperantemente impreciso, indulgente e prolixo”, reconheceu que “onde é preciso, o livro ainda fere” e “onde é erótico, não é exibicionista nem pudico, mas bem calculado para tocar a mente através da emoção.”

Alguns críticos portugueses elogiaram-no como “corajoso, ousado e violento”, como escreveu o autor Nuno de Sampayo no jornal A Capital. Previram, no entanto, que teria uma receção difícil.

O primeiro-ministro Marcello Caetano tentou prender as autoras, chamando-as de “mulheres que envergonham o país, antipatriotas.”

A 25 de maio de 1972, a censura estatal proibiu o livro. No dia seguinte, foi enviado para a polícia criminal de Lisboa. Quando o julgamento das autoras começou em 1973, a multidão era tão grande que o juiz ordenou a evacuação da sala.

Em maio de 1974, quase dois anos após a sua detenção e duas semanas após a queda da ditadura, as Três Marias foram absolvidas.

O juiz Artur Lopes Cardoso, que presidia ao caso, tornou-se um convertido de última hora, declarando que o livro “não era pornográfico nem imoral.” “Pelo contrário”, disse, “é uma obra de arte de alto nível, seguindo outras obras de arte produzidas pelas mesmas autoras.”

Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros nasceu em Lisboa a 20 de maio de 1937, filha de Jorge Augusto da Silva Horta, um médico proeminente e conservador que apoiava a ditadura, e Carlota Maria Mascarenhas. A sua avó paterna tinha sido uma figura destacada do movimento sufragista português.


Frequentou o Liceu Filipa de Lencastre, licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e publicou o seu primeiro livro de poesia aos 23 anos. Escreveu quase 30 outros, além de 10 romances.

Foi também crítica e repórter em vários jornais e editora literária de A Capital.

Nos anos 1980, dirigiu a revista feminista Mulheres, ligada ao Partido Comunista Português, do qual foi membro entre 1975 e 1989.

Considerava a escrita um dever público.

A obrigação de um poeta não é estar numa torre de marfim; não é estar isolado, mas sim entre as pessoas”, disse ela à revista online Guernica em 2014. “Como jornalista, nunca me isolei. Fui jornalista num diário e, todos os dias, saía à rua. Todos os dias tive contacto com as pessoas.

Venceu a maioria dos mais importantes prémios literários do seu país, mas gerou polémica em 2012 ao recusar o Prémio D. Dinis (das mãos de Passos Coelho), em protesto contra a orientação política de direita do governo.

Ela deixa o seu filho, Luís Jorge Horta de Barros, e dois netos. O seu marido, o jornalista Luís de Barros, antigo diretor do jornal O Diário, faleceu em 2019.

Perguntam-me porque sou feminista”, disse à revista Guernica em 2014. “Porque sou uma mulher de liberdade e igualdade e não é possível haver liberdade no mundo quando metade da humanidade não tem direitos.

Adam Nossiter | New York Times

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Catarina e a Beleza de Ficar a Arder sem Bilhetes para o Teatro

Por uma ou outra vez tinha pensado ido ir ver a peça "Catarina e a Beleza de Matar Fascista" mas, por causa da pandemia a peça acabou cancelada. Até que, subitamente, foi noticiado agora que voltaria a Viseu e Penafiel. Bom, é desta pensei. E no dia seguinte preparei-me para comprar bilhetes... E não é que, para os três dias, daqui a mês e meio, já estava tudo esgotado? No dia seguinte a ter sido anunciado?

Pá, eu sei que o New York Times considerou a pela do Tiago Rodrigues como sendo uma das melhores da Europa, mas esgotar as três data para Penafiel no dia seguinte a ser anunciado? Por favor! Que é feito daquela coisa dos portugueses deixarem sempre tudo para a última?


Os Trogloditas e as Intelectuais

Diz-se agora que o mundo está cada vez mais fragmentado, de extremos. "Polarizado". Curiosamente também parece que assistimos a uma guerra de sexos na política, na reivindicação dos direitos, no acesso à igualdade. E também entre homens e mulheres assistimos a um afastamento ideológico. Mesmo entre os mais jovens, os rapazes estão agora cada vez mais sensíveis às ideias populistas de extrema-direita, ao passo que as mulheres, são muito mais sensíveis às questões sociais - pudera, em pleno século XX ainda querem mandar nos seus corpos!

Mas não só politicamente. Esta semana encontrei este artigo no New York Times, sobre o desaparecimento dos homens na literatura. Os homens estão a deixar de escrever e a deixar de ler, levando-me a refletir que os homens (não generalizando, obviamente) estão-se a tornar nuns trogloditas e as mulheres são agora as intelectuais. Cá fica o artigo traduzido em modo mais ou menos automático. 

O desaparecimento dos homens literários deveria preocupar-nos a todos


"Ao longo das últimas duas décadas, a ficção literária tornou-se, em grande medida, uma atividade feminina. Cada vez mais os romances são escritos por mulheres e lidos por mulheres. Em 2004, cerca de metade dos autores na lista de bestsellers de ficção do New York Times eram homens e a outra metade mulheres; este ano, a lista parece ser composta por mais de três quartos de mulheres. De acordo com vários relatórios, as leitoras representam agora cerca de 80% das vendas de ficção.

Observo o mesmo padrão no programa de escrita criativa onde leciono há oito anos. Cerca de 60% das candidaturas vêm de mulheres, e algumas turmas do nosso programa são inteiramente femininas. Quando fui estudante de pós-graduação num programa semelhante há cerca de 20 anos, as turmas estavam divididas de forma relativamente equilibrada por género. Como Eamon Dolan, vice-presidente e editor executivo da Simon & Schuster, me disse recentemente: “o jovem romancista masculino é uma espécie rara.”

A sub-representação masculina é um tema desconfortável num mundo literário que, de outra forma, está altamente atento a desequilíbrios deste tipo. Em 2022, a romancista Joyce Carol Oates escreveu no Twitter que “um amigo que é agente literário me disse que já nem consegue que os editores leiam os primeiros romances de jovens escritores brancos, por muito bons que sejam.” A resposta pública ao comentário de Ms. Oates foi rápida e mordaz — não sem alguma razão, visto que o mundo literário continua esmagadoramente branco. Mas a falta de preocupação com o destino dos escritores masculinos foi notável.

Para ser claro, dou as boas-vindas ao fim do domínio masculino na literatura. Durante demasiado tempo, os homens ocuparam o topo, frequentemente à custa de grandes escritoras que deveriam ter sido lidas. Também não acho que os homens mereçam estar melhor representados na ficção literária; eles não sofrem do mesmo tipo de preconceito que as mulheres enfrentaram durante tanto tempo. Além disso, os jovens deveriam estar a ler Sally Rooney e Elena Ferrante. Os leitores masculinos não precisam de ser emparelhados com escritores masculinos.

No entanto, se nos preocupamos com a saúde da nossa sociedade - especialmente na era de Donald Trump e das conceções distorcidas de masculinidade que ele ajuda a fomentar - o declínio e a queda dos homens literários deveriam preocupar-nos.

Nas últimas décadas, os jovens regrediram educacional, emocional e culturalmente. Entre as mulheres que ingressam em universidades públicas de quatro anos, cerca de metade se formará quatro anos depois; para os homens, a taxa é inferior a 40%. Esta disparidade traduz-se certamente numa redução no número de romances lidos por jovens homens, à medida que se afundam cada vez mais em videojogos e pornografia. Os jovens que ainda demonstram curiosidade pelo mundo frequentemente procuram estimulação intelectual através de figuras do “manosphere”, como Andrew Tate e Joe Rogan.


A marginalização dos jovens parece ter sido um fator significativo na eleição presidencial dos EUA deste ano. Nenhum grupo de eleitores foi mais fiel a Trump do que os jovens brancos - e ele também obteve bons resultados entre homens hispânicos e continuou a ganhar terreno entre homens negros. Penso em 2024 como a eleição do “Fight Club”, na qual homens desiludidos descarregaram as suas frustrações e ansiedades num lutador que, um dia, se revelará não o seu herói, mas sim uma figura da sua imaginação.

Estes jovens precisam de melhores histórias

O que acontece se metade da população deixar de estar envolvida na leitura e na escrita? - e eles precisam de se ver como pertencentes ao mundo das narrativas. Os romances cumprem muitas funções. Divertem, inspiram, intrigam, hipnotizam. Mas ler ficção é também uma excelente forma de melhorar a inteligência emocional. Os romances ajudam-nos a formar as nossas identidades e a compreender as nossas vidas. Tal como muitos outros membros da Geração X ligados aos livros, não consigo conceber os meus anos de formação sem o romance de Douglas Coupland que deu nome à nossa geração. É por isso que precisamos de uma cultura literária mais inclusiva, que traga os jovens homens do frio.

Não estou a dizer que devemos dar por concluído o progresso das escritoras e agora focar-nos apenas nos homens. Para mim, a questão é: o que será da literatura - e, de facto, da sociedade - se os homens deixarem de estar envolvidos na leitura e na escrita? Os destinos de homens e mulheres estão interligados. É por isso, por exemplo, que faço questão de que os meus estudantes masculinos leiam “The Handmaid’s Tale”. Não é apenas a sua edificação que importa; as mulheres também beneficiam da existência de homens melhores.

Recordo-me aqui de algo que a académica feminista bell hooks escreveu uma vez: “Permanece uma pequena corrente de pensadoras feministas que acreditam fortemente que já deram tudo o que queriam dar aos homens; preocupam-se apenas em melhorar o bem-estar coletivo das mulheres. No entanto, a vida mostrou-me que sempre que um único homem ousa transgredir os limites patriarcais” - algo que estou convencido de que a literatura capacita os homens a fazer - “as vidas de mulheres, homens e crianças são fundamentalmente alteradas para melhor.

David J. Morris / The New York Times, 10 de dezembro de 2024

sábado, 9 de novembro de 2024

Eleições nos Estados Unidos - O Sequestro dos Eleitores

Tal como vaticinei e, contrariamente à opinião de grande parte dos especialistas cá do burgo, Trump venceu as eleições nos Estados Unidos. E na ressaca dos resultados fui lendo muita coisa. Por cá agora alguns comentadores ajustam a argumentação à nova realidade e dão verdadeiras piruetas - mais ou menos como Marques Mendes fez aquando da pandemia, em que primeiro elogiou as medidas do governo de Costa, mas depois, perante a realidade dos mortos, afirmou que se estava mesmo a ver que ia dar mau resultado! 

Mas fui lendo também algumas coisas na imprensa internacional e este artigo em particular, do New York Times, foi dos que mais gostei e aqui vai ficar para memória futura:

"Nas vésperas das eleições de terça-feira para o próximo presidente dos EUA, uma grande maioria dos eleitores americanos afirmava que o país estava a seguir um caminho errado e que se sentiam desapontados com os candidatos. Uma pluralidade de eleitores afirmou que, independentemente de quem fosse eleito, o próximo presidente pioraria a situação. Quase 80% dos eleitores disseram que as campanhas presidenciais não lhes inspiravam orgulho na América.

A responsabilidade por este estado deplorável de coisas recai sobre os partidos Democrata e Republicano, que não apresentaram uma visão capaz de atrair a maioria dos americanos. Trump e Kamala Harris jogaram à roleta com o eleitorado, recorrendo frequentemente a ameaças apocalípticas sobre o fim da democracia para convencer as pessoas de que não tinham escolha senão votar conforme lhes era indicado.

Ambos os candidatos ofereceram políticas impopulares até entre os seus próprios apoiantes, servindo um banquete para os seus doadores enquanto distribuíam migalhas aos seus eleitores. Para um dos candidatos, essa estratégia de desdém resultou. Mas, no geral, falhou com o povo americano.

Apesar de toda a sua postura populista, Trump propôs reduções de impostos que favorecem os ricos, defendeu tarifas que quase certamente aumentariam o custo dos alimentos, criticou o pagamento de horas extraordinárias, elogiou o despedimento de trabalhadores em greve e permaneceu em silêncio enquanto os seus aliados falavam em destruir o Affordable Care Act. Insistiu que a questão do aborto fosse decidida pelos estados, apesar de a maioria dos americanos, incluindo muitos republicanos, acreditar que o aborto deveria ser legal em todo o país. E comprometeu-se a opor-se a novas restrições sobre armas, embora a maioria esmagadora dos americanos apoie leis mais rigorosas.

E o que recebiam os apoiantes de Trump em troca de apoiarem essa agenda impopular? Elon Musk prometia um período de sofrimento económico. Tucker Carlson dizia que Trump daria “uma lição” ao país. Por que razão alguém se comprometeria com isso? Porque, disseram-lhes, a alternativa era a guerra nuclear sob Kamala Harris. Que grande escolha.

Entretanto, Biden e os seus aliados ignoraram a crença do público de que ele era demasiado velho para um novo mandato. Quando finalmente decidiu afastar-se — apenas após um desastre televisivo que arruinou a sua campanha cambaleante — o Partido Democrata contornou a democracia, simplesmente coroando a sua sucessora. Em várias políticas — especialmente no que diz respeito aos direitos reprodutivos — Kamala Harris está alinhada com os eleitores. Mas rapidamente começou a dar sinais de que não iria avançar com políticas económicas progressistas que Biden havia conseguido arrancar das amarras do neoliberalismo.

Recusou-se a afirmar que manteria Lina Khan, a presidente da Federal Trade Commission, conhecida pelo seu combate aos monopólios e altamente popular entre democratas e até alguns republicanos (mas não, essencialmente, entre os seus doadores). Recusou-se a apoiar um embargo de armas contra Israel, embora uma sondagem de Junho tenha revelado que 77% dos democratas e 62% dos independentes o desejavam. E ao mesmo tempo ignorava os eleitores árabes e muçulmanos, aproximava-se da indústria das criptomoedas e exibia orgulhosamente o seu apoio de Dick Cheney, um homem que deixou o cargo com uma taxa de aprovação de apenas 13%. Harris fez uma aposta de alto risco: como Trump realmente representava uma ameaça para a democracia, quando chegasse a hora da verdade, a maioria dos americanos superaria a sua frustração com ela.

Durante a maior parte da última década, o discurso americano tem sido dominado por uma política de emergência: uma insistência coletiva de que estamos à beira do colapso, uma ansiedade que ambos os partidos exploraram para manter os eleitores reféns. Este ano, esse impulso atingiu o seu apogeu.

O que a nação acabou de viver não foi uma eleição; foi uma situação de reféns. Os nossos principais partidos representam os interesses de magnatas do streaming, da indústria de armamento, dos barões do petróleo, dos “gurus” do Bitcoin e da indústria do tabaco, muitas vezes sem sequer fingir ouvir os eleitores. Um sistema político assim está fundamentalmente falido.

Uma sondagem da primavera passada indicou que cerca de metade dos eleitores com menos de 30 anos acredita que não importa quem ganha as eleições. Descrevendo o crescente niilismo desta geração, um analista disse à Semafor: “Os jovens eleitores não vêem figuras boas na nossa política. Vêem um império em declínio, liderado por pessoas que não prestam.”

A teórica cultural Lauren Berlant observou que “as épocas políticas intensas geram devaneios”, períodos breves de romance em que mudanças súbitas parecem possíveis. Esses devaneios não se baseiam em verdadeira esperança, mas numa espécie de “otimismo cruel” que figuras e processos políticos inevitavelmente traem. Uma forma de entender o estado de espírito do país hoje - e o cinismo daqueles que atingiram a maioridade política após 2008 - é como uma longa ressaca do otimismo cruel da Era Obama: a euforia de uma campanha de “esperança” e “mudança” que acabou por se desmoronar, seguida por três eleições presidenciais de “aceitar ou rejeitar”. Contudo, esta década de desespero pode ser, à sua maneira, uma oportunidade.

“O remédio pode vir da mesma fonte do mal”, escreveu o filósofo Edmund Burke, refletindo sobre a disfunção política do seu tempo. Se alguma vez quisermos sair do ciclo de emergência em que estamos presos - onde Republicanos e Democratas se acusam mutuamente de horrores apocalípticos enquanto impõem políticas que só beneficiam as respetivas elites - precisamos de estar dispostos a exigir mais.

Uma ameaça à democracia não isenta os líderes de apresentar aos eleitores um plano para o futuro, que atenda às suas preocupações e reflicta a América que desejam. De facto, quanto maior a ameaça, mais importante se torna o trabalho de ganhar a confiança dos eleitores, em vez de lhes dar um ultimato.

Se os americanos querem sair deste impasse, precisamos de deixar de permitir que os candidatos se aproveitem de desculpas alarmistas. Quando os candidatos nem sequer têm a decência de nos vender ilusões, e nos dizem que simplesmente não temos escolha a não ser votar neles, precisamos de fugir na direção oposta.

E, no auge da frustração, mais de nós precisa de concorrer a cargos - contra os escolhidos, contra os incumbentes, como independentes, se necessário - mesmo que a derrota seja certa, mesmo que gritem que estás a “estragar” uma corrida que já estava estragada antes de alguém votar.

Dizer aos americanos que não têm escolha a não ser votar neles mostra um profundo desrespeito".

Tyler Austin Harper | The New York Times (7 de Novembro de 2024)

sábado, 24 de agosto de 2024

A Melhor Coisa Que Vais Ler Hoje..

... é esta entrevista do New York Times ao Pepe Mujica:



"José Mujica recusou-se a viver no palácio presidencial do Uruguai. “Tem quatro andares,” disse ele. “Para tomar chá, tens de andar três quarteirões. Inútil. Deviam transformá-lo numa escola secundária.”

Há uma década, o mundo teve uma breve fascinação por José Mujica. Ele era o presidente do Uruguai, conhecido pela sua simplicidade, que rejeitou o palácio presidencial da nação para viver numa pequena casa com telhado de zinco com a sua esposa e o seu cão de três patas.

Em discursos para líderes mundiais, entrevistas com jornalistas estrangeiros e documentários na Netflix, Pepe Mujica, como é universalmente conhecido, partilhou inúmeras histórias de uma vida digna de filme. Assaltou bancos como guerrilheiro urbano de esquerda; sobreviveu a 15 anos como prisioneiro, fazendo amizade com uma rã enquanto estava preso num buraco no chão; e ajudou a transformar a sua pequena nação sul-americana numa das democracias mais saudáveis e socialmente liberais do mundo.

Mas o legado de Mujica será mais do que a sua história colorida e compromisso com a austeridade. Ele tornou-se uma das figuras mais influentes e importantes da América Latina, em grande parte, pela sua filosofia franca sobre o caminho para uma sociedade melhor e uma vida mais feliz.

Agora, como diz o próprio Mujica, ele está a lutar contra a morte. Em abril, anunciou que iria submeter-se a radioterapia para tratar um tumor no esófago. Aos 89 anos e já diagnosticado com uma doença autoimune, admitiu que o caminho para a recuperação seria árduo.

Este mês, viajei para os arredores de Montevideu, a capital do Uruguai, para visitar Mujica na sua casa de três divisões, cheia de livros e frascos de vegetais em conserva, na pequena quinta onde cultiva crisântemos há décadas. Quando o sol se pôs num dia de inverno, ele estava agasalhado num casaco de inverno e num chapéu de lã em frente a um fogão a lenha. O tratamento tinha-o deixado fraco e quase sem apetite. “Estás a falar com um velho estranho,” disse ele, inclinando-se para me olhar de perto, com um brilho nos olhos. “Eu não me encaixo no mundo de hoje.”

E assim começámos.

Esta entrevista foi editada e condensada para maior clareza.

Como está a sua saúde?

Fizeram-me um tratamento de radioterapia. Os meus médicos disseram que correu bem, mas estou quebrado.

(Espontaneamente.)

Acho que a humanidade, como está, está condenada.

Porque diz isso?

Perdemos muito tempo inutilmente. Podíamos viver mais tranquilamente. Veja o Uruguai. O Uruguai tem 3,5 milhões de pessoas. Importa 27 milhões de pares de sapatos. Fazemos lixo e trabalhamos com sofrimento. Para quê?

És livre quando escapas à lei da necessidade - quando passas o tempo da tua vida a fazer o que desejas. Se as tuas necessidades se multiplicam, passas a tua vida a suprir essas necessidades.

Os humanos podem criar necessidades infinitas. O mercado domina-nos e rouba-nos as nossas vidas.

A humanidade precisa de trabalhar menos, ter mais tempo livre e estar mais ligada à terra. Para que tanto lixo? Porque tens de trocar de carro? Trocar de frigorífico?

Só temos uma vida e ela acaba. Tens de lhe dar um sentido. Lutar pela felicidade, não apenas pela riqueza.

Acredita que a humanidade pode mudar?

Poderia mudar. Mas o mercado é muito forte. Criou uma cultura subliminar que domina o nosso instinto. É subjetivo. É inconsciente. Tornou-nos compradores vorazes. Vivemos para comprar. Trabalhamos para comprar. E vivemos para pagar. O crédito é uma religião. Por isso, a bem dizer estamos fodidos.

Parece que não tem muita esperança.

Biologicamente, tenho esperança, porque acredito no homem. Mas quando penso nisso, sou pessimista.

No entanto, os seus discursos costumam ter uma mensagem positiva.

Porque a vida é bela. Com todos os seus altos e baixos, eu amo a vida. E estou a perdê-la porque é a minha hora de partir. Que sentido podemos dar à vida? O homem, comparado a outros animais, tem a capacidade de encontrar um propósito.

Ou não. Se não o encontrares, o mercado fará com que passes a vida a pagar contas.

Se o encontrares, terás algo pelo qual viver. Aqueles que investigam, aqueles que tocam música, aqueles que amam desporto, qualquer coisa. Algo que preencha a tua vida.

Porque escolheu viver na sua própria casa como presidente?

Os resquícios culturais do feudalismo permanecem. O tapete vermelho. A corneta. Os presidentes gostam de ser louvados.

Uma vez fui à Alemanha e colocaram-me num Mercedes-Benz. A porta pesava cerca de 3.000 quilos. Puseram 40 motas à frente e outras 40 atrás. Fiquei envergonhado.

Temos uma casa para o presidente. Tem quatro andares. Para tomar chá, tens de andar três quarteirões. Inútil. Deviam transformá-la numa escola secundária.

Como gostaria de ser lembrado?

Ah, como aquilo que sou: um velho louco.

Só isso? Fez muito.

Tenho uma coisa. A magia da palavra. O livro é a maior invenção do homem. É uma pena que as pessoas leiam tão pouco.

Não têm tempo.

Hoje em dia, as pessoas fazem grande parte da sua leitura nos telemóveis.

Há quatro anos, deitei o meu fora. Deixou-me maluco. Todo o dia a falar de disparates.

Devemos aprender a falar com a pessoa que está dentro de nós. Foi ele que me salvou a vida. Como estive sozinho durante muitos anos, isso ficou comigo.

Quando estou no campo a trabalhar com o trator, às vezes paro para ver como um passarinho constrói o seu ninho. Ele nasceu com o programa. Já é arquiteto. Ninguém o ensinou. Conheces o pássaro joão-de-barro? São pedreiros perfeitos.

Admiro a natureza. Quase tenho uma espécie de panteísmo. Tens de ter olhos para vê-la.

As formigas são dos verdadeiros comunistas que existem. São muito mais antigas do que nós e vão sobreviver-nos. Todos os seres coloniais são muito fortes.

Voltando aos telemóveis: Está a dizer que são demais para nós?

Não é culpa do telemóvel. Somos nós que não estamos preparados. Fazemos um uso desastroso dele.

As crianças andam com uma universidade no bolso. Isso é maravilhoso. No entanto, avançámos mais na tecnologia do que nos valores.

No entanto, o mundo digital é onde grande parte da vida é agora vivida.

Nada substitui isto. (Ele gesticula para os dois a conversar.) Isto é intransmissível. Não estamos apenas a comunicar com palavras. Comunicamos com gestos, com a nossa pele. A comunicação direta é insubstituível.

Não somos tão robóticos. Aprendemos a pensar, mas antes de mais somos seres emocionais. Acreditamos que decidimos com a cabeça. Muitas vezes, a cabeça encontra os argumentos para justificar as decisões tomadas pelo instinto. Não somos tão conscientes como parecemos.

E isso é bom. Esse mecanismo é o que nos mantém vivos. É como a vaca que segue o que é verde. Se há verde, há comida. Vai ser difícil desistir do que somos.

Disseste no passado que não acreditas em Deus. Qual é a tua visão de Deus neste momento da tua vida?

Sessenta por cento da humanidade acredita em algo, e isso deve ser respeitado. Existem perguntas sem respostas. Qual é o sentido da vida? De onde viemos? Para onde vamos?

Não aceitamos facilmente o facto de sermos uma formiga na infinidade do universo. Precisamos da esperança de Deus porque gostaríamos de viver.

Tens algum tipo de Deus?

Não. Respeito muito as pessoas que acreditam. É como um consolo perante a ideia da morte.

Porque a contradição da vida é que é um programa biológico destinado a lutar para viver. Mas a partir do momento em que o programa começa, estás condenado a morrer.

Parece que a biologia é uma parte importante da tua visão do mundo.

Somos interdependentes. Não poderíamos viver sem os procariotas que temos nos intestinos. Dependemos de uma série de bichos que nem sequer vemos. A vida é uma cadeia e ainda está cheia de mistérios.

Espero que a vida humana seja prolongada, mas estou preocupado. Existem muitas pessoas loucas com armas atómicas. Muito fanatismo. Deveríamos estar a construir moinhos de vento. No entanto, gastamos em armas.

Que animal complicado é o homem. Ele é ao mesmo tempo inteligente e estúpido.

Lições de um guerrilheiro assaltante de bancos que se tornou presidente | Jack Nicas


sábado, 25 de fevereiro de 2023

Tens as Mãos Manchadas de Sangue. É do Teu Smartphone

Crónica de hoje no El País. Por vezes a realidade dá-nos uma valente chapada nas trombas. Obrigatório ler, por isso dei-me ao trabalho de colocar aqui porque o artigo está disponível só para assinantes. 

Imagem roubada da net

Até pouco tempo, o cobalto era um mineral que interessava quase exclusivamente aos pintores: é dele extraído o pigmento luminoso chamado azul de cobalto. É agora uma das mercadorias mais valiosas que existem. O cobalto está nas baterias recarregáveis ​​dos aparelhos que usamos diariamente, smartphone, tablet, livro eletrónico, na scooter, na bicicleta elétrica, no carro elétrico. Grande parte da transição urgente para energias renováveis ​​e limpas dependerá do uso de cobalto. Trocar os biliões de carros movidos a gasolina que atualmente envenenam a atmosfera do planeta por elétricos seria uma tolice, porque a proliferação ilimitada do veículo particular é tão destrutiva quanto as emissões de gases tóxicos, e a primazia sobre qualquer outro meio de transporte. Mas a verdade é que num futuro próximo a procura de cobalto continuará a crescer, ditada pela necessidade mas também por capricho, por uma economia que exige, para se sustentar, o fabrico e consumo de inúmeros e fugazes produtos caros, por isso que assim se renova mais rápido possível o impulso de substituir o que foi descartado, seja o que for, uma peça de roupa, um par de chinelos, um aparelho eletrónico reluzente, um isqueiro de plástico que talvez vá parar no estômago de uma tartaruga marinha ou um belo albatroz.


O que é preciso é uma ética da origem e do destino das coisas quotidianas que usamos: quem as fez e em que condições e que caminho percorreram até chegarem até nós; para onde vão quando deixaram de nos importar e parece que discreta e misteriosamente desapareceram de nossa vista. Tudo vai para algum lugar. Sabemos dos rios tingidos de corantes químicos que correm pelas regiões do Bangladesh onde as nossas roupas baratas são feitas. E uma breve busca no YouTube será suficiente para ver as montanhas de sucata eletrónica que desenham o horizonte da cidade de Accra, capital de Gana, sobre a qual escalam nuvens de mulheres e crianças, apanhando o cobre e outros metais que podem ser extraídos daqueles milhões de dispositivos fora de uso exportados ou melhor, deitados fora da Europa. Colunas de fumo sobem das encostas do lixo tecnológico, como fumarolas vulcânicas: é a fumaça tóxica dos cabos de plástico queimados para resgatar mais facilmente o cobre.

A leveza, a suavidade, a forma simples de um telefone ou tablet são calculadas para sugerir uma perfeição platónica ao olhar e ao toque, uma assepsia imune à porcaria, rugosidade e viscosidade. Uma forma tão pura quanto um prisma de alabastro, translúcida e sem peso. O cobalto entra: três gramas num smartphone, 30g num tablet. E ao lado, a escravidão, o sofrimento, a miséria das pessoas que arranham e cavam a terra no Congo e abrem túneis em busca dos reveladores pontos azuis do mineral. Os gigantes globais da tecnologia afirmam nas suas páginas da web, nas suas proclamações angelicais de bondade corporativa, que garantiram a origem limpa dos materiais que usam, a sustentabilidade da sua mineração, o respeito aos direitos humanos, a ausência de trabalho infantil. Tudo é mentira. A maior parte do cobalto produzido no mundo vem de regiões do Congo que também são prodigiosamente ricas em outros metais e matérias-primas que há mais de um século sustentam o desenvolvimento e a prosperidade dos países ocidentais, mas para o povo do país não deixou nada além de miséria e terror.

New York Times

Foi Joseph Conrad quem primeiro denunciou a exploração colonial promovida pelo rei Leopoldo II da Bélgica. No final do século XIX, a borracha do Congo tornou-se essencial para a produção em massa de pneus de carros e bicicletas. Os fios do telégrafo e do telefone e as balas dos exércitos europeus que se reuniram para o massacre de 1914 eram feitos de cobre do Congo. A condição de escravidão a que era submetido o povo do país e a ganância homicida dos colonizadores se refletiam em Heart of Darkness e nos relatos do cônsul britânico Roger Casement. “O horror, o horror”, exclama o protagonista de Conrad no final da vida. Estas são as mesmas palavras que nos vêm à mente quando lemos o relato definitivo da colonização do Congo, O Fantasma do Rei Leopoldo, do insuperável historiador Adam Hochschild.

Mas o horror não ficou no passado colonial. O que antes era borracha e cobre - e também o óleo de palma que enriqueceu os primeiros fabricantes do sabonete Palmolive - agora é cobalto. É contada por um corajoso repórter, Siddharth Kara, em um livro que fervilha com a dupla paixão da descoberta e da denúncia, Cobalt

Vermelho, escrito nos últimos quatro ou cinco anos, quando a demanda por cobalto disparou mais do que nunca, a vida das pessoas que o extraem da terra piorou ainda mais, e a devastação ambiental foi maior das explorações, e os benefícios das mineradoras, principalmente chinesas, e das empresas globais que nos vendem esses aparelhos que se tornaram essenciais para a vida.

Siddharth Kara escreve com a claridade alucinada de quem viu o inferno de perto e depois voltou para um mundo que lhe é muito próximo, mas egoisticamente consegue ignorar sua existência. Ele viu uma orografia depravada de montanhas e penhascos de escória e fossos como abismos ou crateras escalonadas através das quais milhares de seres humanos se movem como formigas numa névoa avermelhada de poeira venenosa. 

Ele já viu crianças cavarem túneis com ferramentas primitivas em busca de veios de cobalto, às vezes enterradas até a morte quando os túneis não escorados desmoronam, ou perdem braços ou pernas, e talvez ganhem um dólar ou dois depois de muitas horas de trabalho. envolve tudo, bebendo a água imunda das lagoas ou poças em que o mineral é lavado. Meninas e mulheres trabalham em condições semelhantes e também sofrem assédio sexual de capatazes e soldados. Os líderes de um governo corrupto enriquecem vendendo concessões de exploração a empresas chinesas e também ocidentais que buscam o máximo lucro pelo menor preço, sem se importar com a vida dos trabalhadores ou com um ambiente natural de luxuriante fertilidade que está sendo submetido a uma devastação tão irreparável quanto o da Amazónia. 

Onde havia paisagens imemoriais de milhões de árvores habitadas por todos os tipos de criaturas, agora existem desertos de crateras avermelhadas onde nada crescerá novamente, onde não haverá sustento para ninguém quando o mineral se esgotar. Sobre o sofrimento de todas aquelas pessoas e a destruição de seu mundo, o progresso tecnológico e o bem-estar do nosso são sustentados. É uma realidade tão cruel que não sabemos como aceitá-la. Cada um de nós corresponderia a pelo menos uma responsabilidade equivalente à das gramas de cobalto que há em cada um de nossos dispositivos eletrónicos.

Sobre o livro citado no artigo do El País, pode também ser interessante ler esta crítica do New York Times.