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domingo, 24 de agosto de 2025

Outrovertido ou Antissocial Sociável

Sempre me considerei um antissocial sociável. É estranho porque não sou introvertido, bem pelo contrário! mas depois não gosto nem um pouco de festas e ajuntamentos ou até de muito barulho. 

Não sou propriamente envergonhado, sou até muito sociável e tomo a iniciativa. Sempre me achei um pouco estanho, mas, afinal, parece que há muitos outros por aí, tal como eu e agora até lhe arranjaram um nome, porque há uma necessidade muito grande de meter as pessoas dentro de gavetas.

O artigo é do The Guardian "Don’t like joining in? Why it could be your superpower" publicado hoje e a propósito também do livro "The Gift of Non Belonging" do psiquiatra Rami Kaminski.

Este texto também me lembrou de uma pessoa que chegou a dizer-me, quando eu me queixava que estava sozinho, que se sentia sozinha no meio da multidão. 

"Não consigo explicar. Ele é um doce. Um rapaz lindo, por dentro e por fora, e tão brilhante.” Foi assim que começou, há alguns anos, uma sessão com N, uma paciente minha de longa data. O filho dela, A, era um adolescente, e apesar de vir de uma família calorosa, amorosa e com pais atentos, tinha começado a ter dificuldades sociais.

Ele não estava a ser vítima de bullying, nem era excluído na escola. Não estava deprimido, mal-humorado ou ansioso. Na verdade, era popular, querido e estava constantemente a ser convidado para festas, jogos de basquetebol e convívios com grupos de jovens. O problema era que recusava todos esses convites – e N não percebia porquê.

Três semanas depois, sentei-me com A no meu consultório. Pedi-lhe que descrevesse a experiência de ir a festas e outros eventos sociais. “Sinto-me estranho”, disse ele, “como se não fizesse parte daquilo, o que é esquisito porque são todos meus amigos. Sei que gostam de mim e que ficam contentes por eu estar lá, mas continuo a não me sentir ligado. Só me sinto sozinho ou aborrecido quando estou com muita gente, e não quando estou com um ou dois amigos próximos ou quando estou sozinho.” Depois acrescentou: “Não gosto de dizer estas coisas porque faz-me soar como um extraterrestre. Acha que há algo de errado comigo?”

Não achava. Nos meus mais de 40 anos como médico e psiquiatra, trabalhei com líderes mundiais, artistas e profissionais no topo das suas áreas. Muitas vezes, surgia a mesma descrição de vida que A me dera.

São pessoas que preferem sempre jantar a sós com um amigo a participar num jantar de grupo. Quando têm de estar em grandes reuniões, ficam de lado, em conversa profunda com uma pessoa, em vez de “andar a circular”. Preferem fazer trabalhos individualmente do que em grupo, detestam desportos colectivos e acham as tradições e rituais da vida comunitária – festas de empresa, cerimónias de graduação, até feriados religiosos – difíceis ou até desconcertantes. São solistas incapazes de tocar numa orquestra. E eu conto-me entre eles.

A grande maioria destas pessoas não tem diagnóstico psiquiátrico. Não são socialmente desajustados, nem socialmente ansiosos. Depois de muitos anos a observar e a investigar estas características, compreendi que estão enraizadas num traço presente em pessoas de todas as etnias, culturas e géneros: a ausência de impulso comunitário – em outras palavras, o não-pertencimento.

Ao começar a escrever sobre isto, procurei uma palavra que descrevesse este tipo de personalidade tão mal compreendido. A maioria conhece os conceitos de Carl Jung: extrovertido (“virado para fora”) e introvertido (“virado para dentro”). Mas a orientação fundamental do não-pertencente define-se pelo facto de raramente estar na mesma direcção que os outros. Assim nasceu o termo “otrovert” (em espanhol, otro significa “outro”).

Muitos otroverts passaram a vida a assumir que a falta de interesse por festas e outras actividades sociais significava que eram introvertidos. Mas diferem destes em vários pontos essenciais: enquanto os introvertidos tendem a ser reservados e calados, os otroverts, como o meu paciente A, podem ser muito sociáveis e expansivos. Um introvertido dificilmente seria a primeira pessoa a intervir de forma assertiva numa reunião de trabalho. Já um otrovert fá-lo sem problema. Ao contrário dos introvertidos, que ficam exaustos depois de horas de conversa com um amigo, os otroverts ganham energia com essas conversas profundas. Gostam de tempo a sós, mas não para recarregar baterias: sim, para evitar a solidão e desconexão que sentem quando estão rodeados de muita gente.

Para os pais, crianças como A são frequentemente fonte de preocupação. Como a maioria foi educada para ver a pertença a um grupo como pilar de uma vida bem-sucedida, muitos pressionam os filhos a serem mais “sociais”. Na escola, onde os professores são treinados para identificar alunos “mal-adaptados socialmente”, uma criança que não se junta aos colegas no recreio pode motivar chamadas para casa, consultas com psicólogos ou mesmo terapia.

A nossa cultura valoriza imenso o “participar”. Desde cedo aprendemos a partilhar, a brincar bem com os outros e a alinhar o nosso comportamento com o dos que nos rodeiam. Quando outros fazem fila, somos ensinados a ficar nela. Quando falam baixo, somos ensinados a baixar a voz. Ao longo da vida, este condicionamento social reforça um princípio cultural imutável: a pertença a um grupo é requisito para uma vida rica e plena. Para muitos, isto é verdade – mas não para os otroverts.

Damos tanto valor à comunhão que uma postura diferente é entendida como patologia. Otroverts são vistos como estranhos ou errados por preferirem a solidão ao convívio, e sofrem pressão de colegas bem-intencionados que querem a sua companhia ou temem que “percam” a diversão. O que não percebem é que, para os otroverts, há grande liberdade e realização em ficar à margem.

Com esta consciência, podemos permitir-nos recusar o que nos causa desconforto e abraçar quem realmente somos.

Nos últimos anos, tem-se falado muito sobre os níveis recorde de solidão, alienação e polarização da sociedade. Políticos, pensadores e até o cirurgião-geral dos EUA apontam o declínio da vida comunitária como causa principal de problemas de saúde mental, sugerindo soluções como sair das redes sociais ou reforçar as redes de apoio social. Em teoria, são ideias válidas. Na prática, falamos cada vez mais da importância da comunidade, enquanto nos tornamos mais solitários e divididos do que nunca.

Os otroverts não só estão preparados para prosperar neste mundo fragmentado e zangado, como também podem mostrar o caminho aos outros. A razão é simples: vêem as pessoas como indivíduos, não como membros anónimos de um grupo. É fácil odiar um colectivo abstracto que nos ensinam a ver como diferente, inferior ou ameaçador. É muito mais difícil generalizar a hostilidade quando olhamos para as pessoas como realmente são.

Porque não se sentem obrigados a alinhar com a posição ou opinião colectiva, os otroverts são independentes, criativos e pensadores “fora da caixa”. Abordam os problemas de ângulos novos, chegando muitas vezes a descobertas originais e contributos únicos. Como definem o sucesso pelo que alcançam, e não em comparação com outros, são também mais realizados criativa e profissionalmente.

Para um otrovert, aceitar a frase feita “Está tudo bem em seres tu mesmo” representa uma mudança monumental. Muitos viveram a vida toda a sentir-se incompreendidos. Quando finalmente percebem que não há nada de errado em serem como são, é uma catarse profunda.

Com esta compreensão, podemos dar-nos permissão para recusar o que nos incomoda, criar relações ainda mais fortes e autênticas com os que nos são próximos, e abraçar quem realmente somos. Descobrimos então aquilo que Friedrich Nietzsche, o otrovert por excelência, escreveu: “Ninguém pode construir por ti a ponte sobre a qual terás de atravessar o rio da vida, ninguém a não ser tu, tu mesmo.”

Hoje, A floresceu verdadeiramente. Com 24 anos, está a fazer doutoramento em psicologia, ficou recentemente noivo da namorada da universidade e mantém-se próximo dos amigos de infância. De certa forma, continuará sempre a ser observador de grupo e não participante pleno. Mas é participante total da sua própria vida: profundamente satisfeito com o que escolhe fazer e com quem escolhe estar. Num mundo feito para os que aderem, este é o caminho ideal do otrovert.

Dr. Rami Kaminski é psiquiatra e autor de The Gift of Not Belonging

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

A Fome e a Miséria em Portugal na Ditadura Fascista de Salazar

Depois das memórias de Henrique Galvão e Camilo Mortágua, eis que terminei agora as memórias de Humberto Delgado, candidato presidencial em 1958, e que afirmou "obviamente demiti-lo-ei" referindo-se a Salazar e, posteriormente, assassinado pela PIDE em 1965. 

Bastante revelador o estado de pobreza do país, após várias décadas de ditadura fascista do governo de Salazar. para ler e refletir. 


"De alto a baixo, Portugal é um país de pobres, que pedem pão, ou trabalho, ou protecção, e isto inclui, não só os pedintes sem um tostão de seu, mas também o futuro professor que jamais terá o seu lugar se a P.I.D.E. se opuser à sua nomeação, o comerciante que tem de pertencer ao Grémio apropriado se quiser vender alguma coisa e que fracassa com certeza se houver a mínima presunção de que partilha opiniões políticas pouco recomendáveis, e até mesmo o médico que precisa de se treinar nos hospitais civis e que corre o risco de ser reprovado se não pertencer à «ordem estabelecida».

A situação foi analisada há pouco tempo em «The Reporter», nos Estados Unidos. E o artigo concluía: «Qualquer português só pode exercer a sua profissão, seja ela qual for, desde que esteja sujeito ao poder político do Estado», o que não é mais do que outra forma de apresentar o que o próprio ditador disse a um amigo meu: «Serão simplesmente aquilo que queremos que sejam».

Típico desta maneira de ver é o exemplo de Aquilino Ribeiro, o grande escritor, que, aos setenta anos, foi perseguido pela polícia, só porque no seu livro «Quando os Lobos Uivam» critica a sociedade criada por Salazar e sublinha a estupidez e malefícios do sistema totalitário.

MISÉRIA EM PORTUGAL 

Quando se estuda o mecanismo humano, é conveniente começar pela substância que o faz trabalhar. O Português subsiste com uma média de cerca de 700 calorias por pessoa, menos do que o mínimo fixado pela F.A.O. Mas como poderia ser de outra forma, com os salários miseravelmente baixos e a notória desigualdade na distribuição da riqueza, que concede ao trabalhador rural no Alentejo 16 escudos por dia, para os poucos dias da semana em que consegue arranjar trabalho?

(,,,)

Quando, entretanto, em 1958, a minha campanha eleitoral me levou ao Alentejo, mulheres a chorar agarravam-se a mim dizendo-me que no Inverno anterior tinham recebido 8 escudos por dia e, mesmo assim, só durante parte da semana. Podia-se ver a verdade das suas palavras nas crianças que me rodeavam, pele e osso, com grandes olhos tristes que obrigariam qualquer pessoa, inevitavelmente, a dar-lhes um pedaço de côdea.

(...)

A minha secretária Brasileira, Sra. Arajarŷr Campos, disse-me um dia que tivera uma jovem criada Portuguesa, à qual ouviu dizer que em Portugal jamais comera carne, e que, só agora, na casa da sua patroa, podia finalmente comer uns bifes.

Esta esfomeada rapariga tocara num ponto muito importante, pois o consumo anual de carne em Portugal é, efectivamente, de 15 quilos por pessoa, contra 69 quilos nos Estados Unidos, 61 na Inglaterra, 43 na Alemanha Ocidental. Quanto ao leite, o Português bebe 1 litro por mês, em contraste com 20 a 40 litros nos países menos atrasados.

Tudo isto prova que as proteínas fundamentais são um luxo para as classes pobres e médias. Basta olhar para as populações rurais, para se ver como, em pouco tempo, se tornam num simples saco de ossos; as mulheres, entre os quarenta e os cinquenta anos, envelhecem precocemente, e os homens começam a ficar curvados e com as pernas arqueadas, perdendo ambos os sexos, muito cedo, os dentes. A carência de vitaminas origina magreza, ou pelo excesso de carbo-hidratos, obesidade doentia.

Acertadamente, embora com dolorosa acuidade, o consumo de proteínas em Portugal foi assim descrito: «Um pequeno copo de leite por dia, um bife por semana, três ovos por mês, uma galinha por ano». Considerando que muita gente come três ovos por dia e uma quantidade proporcional de outros alimentos, não é de surpreender que, tal como constatei, haja muitas pessoas, tanto nos meios rurais como na cidade, que nunca comem tais alimentos, excepto em dias de festa. No campo, não comem ovos nem galinhas, pois que, mal dando o seu rendimento para se alimentarem, só vendendo estes pequenos extras conseguem comprar alguma coisa para além das necessidades básicas.

Contudo, o trabalhador Português gasta 67 a 87% do seu rendimento na alimentação, e, por consequência, vive pouco melhor do que um animal. Se fizermos uma comparação com um país semi-socializado do tipo democrático-progressivo, como a Suécia, constatamos que somente 31% do orçamento familiar são consagrados à alimentação. Se tomarmos a França como exemplo, o mais politicamente amadurecido e socialmente progressivo dos países latinos, constatamos que 49% do rendimento é consagrado ao mesmo fim.

SALÁRIOS

Um salário só pode ser avaliado com relação ao seu poder de compra. Assim me recordo claramente das lições de estatística que segui, há mais de cinco anos, quando me matriculei na Universidade Americana de Washington, muito embora não passasse de um curioso, interessado somente em aprender um pouco mais acerca de economia. Um trabalhador americano trabalhava cinquenta horas para comprar uma camisa de algodão, um fato e um par de sapatos, enquanto um trabalhador russo precisava de cinco vezes mais para adquirir as mesmas coisas. Isto diz-nos mais do que qualquer declaração em rublos ou em dólares, que falharia certamente, ao darmos qualquer informação acerca do respectivo poder de compra.

Uma análise similar da situação em Portugal dá-nos resultados alarmantes. É difícil calcular o salário do trabalhador rural, porque é geral o desemprego, mas ascende provavelmente a dois terços da média do trabalhador na indústria, que é de cerca de 24 escudos. Uma comparação do rendimento deste último mostra que, para comprar um quilo de carne, ele tem de trabalhar quase um dia inteiro (6 a 7 horas) em contraste com hora e meia na Inglaterra. Quanto ao leite, um inglês só precisa de trabalhar um quarto de hora para comprar um litro, enquanto o trabalhador Português, que, de qualquer forma, nunca bebe leite, teria de trabalhar quatro vezes mais. Um quilo de batatas, um dos ingredientes do «cavalo verde», dieta típica dos habitantes subalimentados do norte, requer quase uma hora do tempo do trabalhador Português, contra cinco minutos na América. Que pode ele fazer se tiver uma família a alimentar, especialmente porque um quilo de pão, alimento básico em Portugal, não custa menos do que uma hora de salário?

Isto prova que o nível nutritivo do Português é equivalente ao de um Tunisiano ou de um Congolês, como acentua o «New Scientist» de 21 de Julho de 1960. Os salários portugueses, que desceram cerca de um terço entre 1938 e 1958, só podem comprar fome, e por isso, na falta de pão, os únicos luxos possíveis são os equivalentes Salazaristas do circo Romano - futebol, fado e Fátima. (O fado é uma canção nacional melancólica e Fátima é uma localidade onde se supõe que tenha aparecido Nossa Senhora em 1917).

O PROBLEMA DA SAÚDE

Na verdade, o Português nasce em circunstâncias pouco usuais, dado que em muitas aldeias jamais se ouviu falar de parteiras ou de médicos e 50% das mães dão à luz sem assistência.

A taxa de mortalidade durante o primeiro ano de vida é de 88 por mil, contra uma média de 50 por mil em 102 países. Durante o reinado de Salazar a posição com relação à Checoslováquia, Japão e Singapura, por muito estranho que pareça, foi invertida, pois, em 1925, era o dobro da de Portugal enquanto agora é precisamente o contrário («W.H.O.», Relatório das Estatísticas Vitais e Epidemiológicas).

Mesmo que o Português não morra no berço, é-lhe quase impossível conseguir cuidados médicos, uma vez que tem de escolher entre comer e receber tratamento; este é muitas vezes demasiado caro, não deixando outra alternativa além da morte. Em Portugal há apenas 1 médico por cada 1 400 habitantes, contra 1 por 800 na Itália; similarmente, existe uma enfermeira por 3 000 habitantes, contra 1 por 500 nas democracias ocidentais. As consequências são inevitáveis e significam que 58 pessoas em cada 1 000 morrem de tuberculose, contra 5 por 1 000 na Holanda, e que, por cada criança que morre de tosse convulsa na Inglaterra, morrem quatro em Portugal, enquanto a percentagem de sarampo nestes dois países é de 1 para 9.

HABILITAÇÃO E ASSISTÊNCIA PÚBLICA

Suponhamos que um Português consegue sobreviver a tudo isto e que pretende comprar uma casa, para casar. O último recenseamento mostra que, num total de 2 047 398 famílias, 2 592 não tinham acomodações, 10 596 viviam em casas temporárias, 2 583 em habitações impróprias, 193 221 em partes de casa. Dos factos que me foram fornecidos por pessoas que vivem no país, posso assegurar que estas estatísticas oficiais ficam muito aquém da verdade.

Não se pode ler à luz de uma lâmpada nem ouvir o rádio, porque, tal como descobri quando passei um Verão em Cela, não há electricidade, apesar das promessas feitas há uns doze anos. Quando finalmente ia ser instalada, visitei a localidade na minha qualidade de candidato à Presidência, e então o Presidente da Câmara de Alcobaça, sob cuja jurisdição se encontra aquela povoação, informou os pobres desgraçados que ali viviam de que, ao fazerem-me um tão entusiástico acolhimento, tinham perdido o direito àquele luxo. Em 1953, só 1 251 das 3 374 freguesias de Portugal, possuíam electricidade, e, ainda assim, 484 já a tinham em 1935, o que implica portanto um singelo aumento de 42 freguesias por ano.

Quando chega a velho e já não pode trabalhar, o Português sem meios pessoais tem de depender dos filhos, ou, como acontece na maioria dos casos, acaba por viver da caridade, porque a assistência pública e as pensões de velhice só raramente são mais do que simples benefícios teóricos.

A situação respeitante à assistência nacional Portuguesa mostra até que ponto o país precisa de sangue novo e de novas ideias. O Estado, muito embora pague muito menos, tira muito mais ao empregado e ao patrão do que em qualquer outro país Europeu; dos 7% ao empregado e 18% ao patrão, 25% cabe ao Socorro Social, contra 5,3% na Inglaterra, 18,66% na Alemanha e 18% na Espanha.

(...)

Não admira, pois, que, no período 1948/53, a esperança de vida média do Português fosse de 49 anos, contra 71 na Suécia, 69 na Holanda e 68 na Inglaterra.

RENDIMENTO NACIONAL

Depois de apreciar o aspecto individual, gostaria de me dedicar à situação mais geral. O trabalhador não tem direitos. O sindicato não passa de uma pequena engrenagem na roda totalitária. O trabalhador não pode estabelecer qualquer opção e mal se atreve a expor as suas opiniões, não sendo pois de surpreender que somente 40% da produção industrial seja consagrada ao pagamento de salários, deixando os outros 60% para lucros de capital, em contraste com os respectivos 70% e 30% dos países democráticos mais avançados. Em Portugal não existem Keynes nem Marx.

Não é igualmente de espantar que, por causa desta medieval estagnação, o rendimento do país per capita não ultrapasse os 182 dólares, contra 1 453 dólares nos Estados Unidos, 342 na Argentina, 209 na Turquia, e isto apesar da sua grande fonte de matérias-primas nas colónias, as quais são, pelo menos, 23 vezes mais importantes do que as da mãe-pátria.

O Regime de Salazar descrito por Henrique Galvão

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O Livro é Uma Arma de Defesa

Excerto  da entrevista do Jornal de Negócios ao escritor brasileiros Jefferson Tenório, publicada no dia 1 de agosto de 2025


Contou numa conversa literária que ter um livro na mão quando ia na rua o livrou várias vezes de abordagens policiais mais violentas. Tornou-se uma espécie de escudo?

Com 17 anos eu comecei a sair à noite com os meus amigos. E, sendo um jovem da periferia, as abordagens policiais começaram a ficar mais frequentes. Percebi que quando carregava um livro era dispensado da abordagem ou recebia uma abordagem menos violenta. Era como se o livro me protegesse e mostrasse para aqueles policiais que eu era uma pessoa de bem, não era uma pessoa perigosa. Então, passei a andar com um livro para todo o lado.

Essas abordagens tinham a ver com a cor da sua pele?

Eram pelo facto de ser jovem e negro. Aconteceu estar num grupo com três amigos, sendo que um deles era branco e foi o único que não foi revistado. Estamos a falar de uma realidade quotidiana no Brasil. Se eu ficar parado numa esquina durante 30 minutos, provavelmente vai parar um carro da polícia e vai-me revistar. Ainda hoje. Vão perguntar o que eu estou fazendo ali, para onde vou. O que não aconteceria com uma pessoa branca.

Há um racismo estrutural no Brasil?

Não é assumido. Mas há um racismo estrutural que entrou no inconsciente das pessoas. É como se fosse uma espécie de vírus que se instalou no inconsciente coletivo social e que enxerga pessoas negras como pessoas perigosas. Isso já vem de muitos séculos.

O racismo tem-se sofisticado, tem encontrado novas formas de exercer a sua violência nas pessoas.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

O Fascismo Germina na Ignorância do Passado

"Quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo" (George Santayana)

"A única coisa que aprendemos com a História é que não aprendemos nada com a História." (Hegel)

"Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado." (George Orwell)





"Contam-se agora cerca de dezassete milhões de jovens, entre 18 e 21 anos, nos Estados Unidos. Ou sejam, 11% do novo corpo eleitoral. Ora, para 92% deles, a Primeira Guerra mundial é desconhecida. A crise económica de 1929 não desperta qualquer eco em 82% deles. E 62% não podem dizer o que se passou em Pearl Harbour em 1941; 56% nada sabem da guerra da Coreia, 40% ignoram tudo sobre o assassínio de John Kennedy. Em cada dez, três já se esqueceram de que em Julho de 1969 um americano, Neil Armstrong, se tornou o primeiro homem a pisar o solo lunar. Esta sondagem data de Maio de 1976. Compreende-se que nos seus discursos os políticos americanos avisados limitem as suas referências ao passado. Para muitos eleitores, falariam patagão ou swahili, uma língua desconhecida.

Do livro "Estes doentes que nos governam" de Pierre Accoce e Pierre Rentchnick

domingo, 1 de junho de 2025

Que Alguém os Mate

Entrevista de Xavier Mas de Xaxás (La Vanguardia) a Patricia Evangelista, jornalista, acerca do seu  livro "Alguém que os mate". É nas Filipas mas poderia bem ser em Portugal. O meu discurso populista, as mesmas soluções fáceis para problemas difíceis. O perigo de em democracia se acreditar em salvadores da Pátria que vêm com discursos de ódio. 

"A partir de julho de 2016 e durante seis anos, Patricia Evangelista cobriu a guerra contra a droga nas Filipinas, uma campanha de violência e populismo lançada pelo presidente Rodrigo Duterte para chegar ao poder e consolidá-lo. Até ao momento, mais de 30 mil pessoas foram assassinadas por justiceiros e polícias à paisana, embora o governo só reconheça 6252. Evangelista publica agora Que alguém os mate, um relato arrepiante sobre a violência impiedosa exercida pelo Estado - um testemunho que também revela o perigo que qualquer democracia corre e o enorme valor do jornalismo para a salvar.

Como trabalha?

No início da guerra contra a droga havia mortos todos os dias. Às vezes cinco, outras vezes vinte e cinco. Eu trabalhava para o jornal digital Rappler, em Manila, no turno da noite, com uma equipa de jornalistas e fotógrafos. Corríamos de um crime para outro, alertados pela polícia. Ao chegar, aprendi a ficar imóvel, em silêncio, à espera dos gritos que indicavam onde estavam os familiares. Então, com muita calma e humildade, perguntava-lhes sobre a vítima. Eram perguntas simples e diretas, porque não se pode perguntar como se sentem, nem se quer causar-lhes mais dor do que aquela que já estão a sofrer.

Imagino que os testemunhos ainda ecoam na sua mente.

Não posso nem quero esquecer, mas, ao mesmo tempo, tenho de continuar. E, sempre que a emoção me vence, digo a mim mesma que não sou eu quem está a sofrer, mas sim eles — os sobreviventes.

E sente então culpa, a sensação de os ter traído.

Exatamente. Penso que algo lhes pode acontecer por terem falado comigo. Eu posso entrar e sair do seu mundo, mas eles ficam, e não têm proteção. A maioria das vítimas da guerra contra a droga eram os mais pobres entre os pobres, e tu sabes que não podes ajudá-los. É um remorso que, como tantos jornalistas, ultrapasso com cafeína, nicotina e álcool. Também com a ajuda de outros colegas. O jornalismo é uma comunidade. Há outros repórteres a fazer o mesmo que tu, e apoiamo-nos uns aos outros.

Por que há tantas mulheres jornalistas nas Filipinas? Trabalhou com Maria Ressa, diretora do Rappler, que ganhou o Prémio Nobel da Paz por enfrentar Duterte.

O jornalismo nas Filipinas é feminino. Durante a ditadura dos anos 70 e 80 era mais masculino, mas os homens foram detidos, assassinados ou acabaram por ceder ao governo. As melhores histórias começaram a ser escritas pelas mulheres que trabalhavam nas secções de moda, estilo, e que mesmo assim entrevistavam dissidentes e denunciavam a corrupção e a violência do sistema.

É importante a sensibilidade feminina perante o trauma?

As mulheres sabemos o que sente uma filha, o medo e a responsabilidade que cai sobre ela ou sobre o irmão mais velho ao ver que os pais foram assassinados. As vítimas tendem a sentir-se mais à vontade com uma jornalista mulher. Sou sincera com elas e não lhes dou conselhos.

Acredita que o jornalismo ajuda a mudar as coisas?

Se acreditasse que o que escrevo ajuda a evitar mais crimes, sentiria um fracasso tão grande que já teria desistido há muito tempo. O jornalismo não ajuda a mudar nada.

A culpa: “Ultrapasso remorsos com cafeína, nicotina e álcool, como tantos jornalistas.”


Escrevo para registar o que aconteceu, e faço-o da forma mais honesta e precisa possível, para honrar as pessoas que me deram a informação. E, embora não sirva para mudar as coisas, é útil para preservar a memória.

E para preservar a dignidade das vítimas.

Duterte passou seis anos a dizer que as pessoas assassinadas por alegadas ligações ao narcotráfico e ao consumo de droga não eram humanas. E os familiares dos mortos tiveram de lutar muito para provar que eram. O jornalismo ajudou a deixar isso claro.

Duterte está agora numa cela do Tribunal Penal Internacional, em Haia.

Sim. As vítimas estão contentes, mas não totalmente, porque ainda há assassinos à solta.

O presidente Ferdinand Marcos entregou-o depois de se desentender com a sua filha, a vice-presidente Sara Duterte.

Sim, a política é muito turva. Esta semana houve eleições e, desde a sua cela em Haia, Rodrigo Duterte venceu as autárquicas em Davao. Ronald “Bato” dela Rosa, o arquiteto da guerra contra a droga, foi eleito senador. O povo considera que estas pessoas, mesmo acusadas de crimes contra a humanidade, merecem estar no poder.

A democracia não está no seu melhor momento.

Nas Filipinas sofremos o terror nas mãos de um autocrata democrata - e isto pode acontecer em qualquer democracia. Veja os Estados Unidos. A política reduziu-se a um homem carismático com uma história para contar a um povo que precisa de acreditar. Somos muito vulneráveis.

A droga não era um problema tão grave nas Filipinas quando Duterte fez campanha com a promessa de eliminar traficantes e consumidores.

Todo autocrata precisa de um inimigo. Com a sua narrativa, Duterte tocou em todos os medos e queixas dos filipinos nas últimas décadas: o fracasso das instituições e do Estado social, a corrupção e a pobreza extrema. E disse que tudo se devia às drogas, e que ele mataria para nos proteger desse mal. Votamos em narrativas, ou seja, em personagens imaginários. Foi assim que Duterte esmagou nas urnas e é por isso que a sua filha pode vir a ser presidente.

Como desmontar as narrativas dos autocratas?

Informando no terreno, a partir da rua, registando o que acontece.

Xavier Mas de Xaxás | La Vanguardia (28 de Maio de 2025) 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Onde se Queimam Livros

Porque hoje é o dia mundial do livro:


 No dia 10 de Maio de 1933, o Hitler fez a primeira queima de livros pública na Alemanha. A biblioteca inteira do Instituto de Ciências Sexuais da Alemanha foi juntada e ateada fogo. Perdeu-se qualquer coisa como entre doze e vinte e cinco mil livros. 

quarta-feira, 9 de abril de 2025

As Baratas que Votam no Chinelo e Comemoram com Inseticida

De manhã tive que passar no clube para arbitrar um jogo e depois fui almoçar ao restaurante lá perto. 

Já quando estava a levantar para ir pagar a conta, na mesa ao lado, dois trabalhadores, vestidos com roupa de trabalho e salpicada de tinta falavam de política. Um insistia com o outro:

"Deita no CH que vais ganhar mais e isto vai para a frente. Há 50 anos que é sempre a mesma coisa PS/PSD...." 



Não me choca nada que haja ricos a votar em partidos que defendem os seus interesses. Choca-me verdadeiramente que haja pobres a achar que se votarem nesses mesmos partidos que defendem os ricos, que a vida deles melhorará, quando esses partidos só os querem esmagar. 

Neste livro (que não li) intitulado "O pobre de direita", tenta-se explicar o porquê de milhões de pobres, terem deixado de votar no partido que lhes matou a fome e até permitiu terem televisão e colocar os filhos na escola, e que passaram a votar na extrema-direita de Bolsonaro que simplesmente os quis esmagar, como um chinelo esmaga uma barata.

É o que acontece agora, por todo o mundo. E em Portugal, as pessoas também se esquecem de quem lhes permitiu ter Serviço Nacional de Saúde, pata todos, Subsídio de Desemprego (que fez agora 50 anos pela mão do primeiro-ministro Vasco Gonçalves), férias pagas, e quatorze salários, a possibilidade dos pobres poderem estudar, mais até, de poderem ir para as universidades. 

Mas os pobres ignorantes, quais baratas, acham que se votarem no chinelo a sua vida melhorará imenso. E depois comemoram com inseticida. 

sábado, 8 de março de 2025

Bom Dia da Mulher, Se Conseguirem

O dia 8 de Março é para lembrar as desigualdades que ainda existem entre homens e mulheres, quer salariais, quer divisão de tarefas, quer na igualdade de oportunidades, e não tanto para lhes oferecer flores ou levá-las a comer fora. 

Posto isto, dizer que gostei muito da entrevista que a Luísa Sobral deu à Visão desta semana, em que se falou do seu livro "Nem todas as árvores morrem de pé", inspirado no suicídio combinado de um casal alemão que vivia em Real Real. 

A determinada altura da entrevista falou-se do crescimento da extrema-direita na Alemanha e sobre Portugal lembra algo que nos deveria fazer a todos pensar muito bem:

"Isto para mim é bastante assustador, ainda mais nos jovens. Ouvir pessoas mais velhas, que ainda têm resquícios do colonialismo, com esses pensamentos não me espanta tanto. Agora, ouvir pessoas da minha idade, ou mais novas, é terrível... Muitos dos militantes do Chega são miúdos com 20 e tal anos e isso faz-me muita confusão. Parece que ser rebelde, hoje, é ser de extrema-direita. Há podcasts de miúdos a dizerem coisas como: “Mulher minha não vai trabalhar!” Como assim? Que grande retrocesso, não consigo entender..."

Em pleno século XXI há alguns que querem que as mulheres regressem à cozinha, sejam obedientes aos seus maridos e cuidem da lida da casa.


 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Os Trogloditas e as Intelectuais

Diz-se agora que o mundo está cada vez mais fragmentado, de extremos. "Polarizado". Curiosamente também parece que assistimos a uma guerra de sexos na política, na reivindicação dos direitos, no acesso à igualdade. E também entre homens e mulheres assistimos a um afastamento ideológico. Mesmo entre os mais jovens, os rapazes estão agora cada vez mais sensíveis às ideias populistas de extrema-direita, ao passo que as mulheres, são muito mais sensíveis às questões sociais - pudera, em pleno século XX ainda querem mandar nos seus corpos!

Mas não só politicamente. Esta semana encontrei este artigo no New York Times, sobre o desaparecimento dos homens na literatura. Os homens estão a deixar de escrever e a deixar de ler, levando-me a refletir que os homens (não generalizando, obviamente) estão-se a tornar nuns trogloditas e as mulheres são agora as intelectuais. Cá fica o artigo traduzido em modo mais ou menos automático. 

O desaparecimento dos homens literários deveria preocupar-nos a todos


"Ao longo das últimas duas décadas, a ficção literária tornou-se, em grande medida, uma atividade feminina. Cada vez mais os romances são escritos por mulheres e lidos por mulheres. Em 2004, cerca de metade dos autores na lista de bestsellers de ficção do New York Times eram homens e a outra metade mulheres; este ano, a lista parece ser composta por mais de três quartos de mulheres. De acordo com vários relatórios, as leitoras representam agora cerca de 80% das vendas de ficção.

Observo o mesmo padrão no programa de escrita criativa onde leciono há oito anos. Cerca de 60% das candidaturas vêm de mulheres, e algumas turmas do nosso programa são inteiramente femininas. Quando fui estudante de pós-graduação num programa semelhante há cerca de 20 anos, as turmas estavam divididas de forma relativamente equilibrada por género. Como Eamon Dolan, vice-presidente e editor executivo da Simon & Schuster, me disse recentemente: “o jovem romancista masculino é uma espécie rara.”

A sub-representação masculina é um tema desconfortável num mundo literário que, de outra forma, está altamente atento a desequilíbrios deste tipo. Em 2022, a romancista Joyce Carol Oates escreveu no Twitter que “um amigo que é agente literário me disse que já nem consegue que os editores leiam os primeiros romances de jovens escritores brancos, por muito bons que sejam.” A resposta pública ao comentário de Ms. Oates foi rápida e mordaz — não sem alguma razão, visto que o mundo literário continua esmagadoramente branco. Mas a falta de preocupação com o destino dos escritores masculinos foi notável.

Para ser claro, dou as boas-vindas ao fim do domínio masculino na literatura. Durante demasiado tempo, os homens ocuparam o topo, frequentemente à custa de grandes escritoras que deveriam ter sido lidas. Também não acho que os homens mereçam estar melhor representados na ficção literária; eles não sofrem do mesmo tipo de preconceito que as mulheres enfrentaram durante tanto tempo. Além disso, os jovens deveriam estar a ler Sally Rooney e Elena Ferrante. Os leitores masculinos não precisam de ser emparelhados com escritores masculinos.

No entanto, se nos preocupamos com a saúde da nossa sociedade - especialmente na era de Donald Trump e das conceções distorcidas de masculinidade que ele ajuda a fomentar - o declínio e a queda dos homens literários deveriam preocupar-nos.

Nas últimas décadas, os jovens regrediram educacional, emocional e culturalmente. Entre as mulheres que ingressam em universidades públicas de quatro anos, cerca de metade se formará quatro anos depois; para os homens, a taxa é inferior a 40%. Esta disparidade traduz-se certamente numa redução no número de romances lidos por jovens homens, à medida que se afundam cada vez mais em videojogos e pornografia. Os jovens que ainda demonstram curiosidade pelo mundo frequentemente procuram estimulação intelectual através de figuras do “manosphere”, como Andrew Tate e Joe Rogan.


A marginalização dos jovens parece ter sido um fator significativo na eleição presidencial dos EUA deste ano. Nenhum grupo de eleitores foi mais fiel a Trump do que os jovens brancos - e ele também obteve bons resultados entre homens hispânicos e continuou a ganhar terreno entre homens negros. Penso em 2024 como a eleição do “Fight Club”, na qual homens desiludidos descarregaram as suas frustrações e ansiedades num lutador que, um dia, se revelará não o seu herói, mas sim uma figura da sua imaginação.

Estes jovens precisam de melhores histórias

O que acontece se metade da população deixar de estar envolvida na leitura e na escrita? - e eles precisam de se ver como pertencentes ao mundo das narrativas. Os romances cumprem muitas funções. Divertem, inspiram, intrigam, hipnotizam. Mas ler ficção é também uma excelente forma de melhorar a inteligência emocional. Os romances ajudam-nos a formar as nossas identidades e a compreender as nossas vidas. Tal como muitos outros membros da Geração X ligados aos livros, não consigo conceber os meus anos de formação sem o romance de Douglas Coupland que deu nome à nossa geração. É por isso que precisamos de uma cultura literária mais inclusiva, que traga os jovens homens do frio.

Não estou a dizer que devemos dar por concluído o progresso das escritoras e agora focar-nos apenas nos homens. Para mim, a questão é: o que será da literatura - e, de facto, da sociedade - se os homens deixarem de estar envolvidos na leitura e na escrita? Os destinos de homens e mulheres estão interligados. É por isso, por exemplo, que faço questão de que os meus estudantes masculinos leiam “The Handmaid’s Tale”. Não é apenas a sua edificação que importa; as mulheres também beneficiam da existência de homens melhores.

Recordo-me aqui de algo que a académica feminista bell hooks escreveu uma vez: “Permanece uma pequena corrente de pensadoras feministas que acreditam fortemente que já deram tudo o que queriam dar aos homens; preocupam-se apenas em melhorar o bem-estar coletivo das mulheres. No entanto, a vida mostrou-me que sempre que um único homem ousa transgredir os limites patriarcais” - algo que estou convencido de que a literatura capacita os homens a fazer - “as vidas de mulheres, homens e crianças são fundamentalmente alteradas para melhor.

David J. Morris / The New York Times, 10 de dezembro de 2024

domingo, 1 de dezembro de 2024

O Deus Dólar

Eça de Queirós escreveu um artigo intitulado "O Miantonomah", inspirado pelo navio de guerra que fundeou em Lisboa em 1866 com o mesmo nome. E foi a desculpa para escrever sobre os Estados Unidos, um artigo publicado na Gazeta de Portugal, e que hoje pode ser encontrado no livro "Prosas Poéticas". Apesar de ter mais de 150 anos, olhando para os tempos atuais dos Estados Unidos, não poderia estar mais atual:




"(...) Tal é o Miantonomah, navio de guerra da América do Norte. 

Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações.

Entrevemo-la assim: movimentos imensos de capital: adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios; preocupação exclusiva do útil e do económico; doutrinas de uma filosofia e uma moral egoísta e mercantil; todo o pensamento repassado dessa influência; uma fria liberdade de costumes; uma seriedade artificial e brusca; dominação terrível da burguesia; movimentos, construções, maquinismos, fábricas, colonizações, exportações colossais, forças extremas, acumulação imensa de indústrias, esquadras terríveis, uma estranha derramação de jornais, de panfletos, de gazetas, de revistas, um luxo excessivo; e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar: depois a mesma temperatura e a mesma geologia da Europa. 

Assim entrevemos a América, ao longe, como uma estação entre a Europa e a Ásia, aberta ao Atlântico e ao Pacífico, com uma bela costa de navegação cheia de enseadas, molhada de grandes lagos, com os seus grandes rios que escorrem entre as terras, as culturas, as fábricas, as plantações, os engenhos, levados pomposamente pelo Mississipi para o golfo do México: e depois uma Natureza vigorosa, fecunda, eleita, desaparecendo entre as indústrias, os fumos das fábricas, as construções, os maquinismos, todas as complicações mercantis da América – como uma pouca de erva de uma campina fértil que desaparece sob uma amontoação. nervosa de homens.

A vida da América do Norte é quase um paroxismo.
Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante. Mas será vital, fecundo, cheio de futuro? Todos os dias dizem à Europa: «Olhai para os Estados Unidos, lá está o ideal liberal, democrático, e, sobretudo, a grande questão, o ideal económico.»
Mas a América consagra a doutrina egoísta e mercantil de Monroe, pela qual uma nacionalidade se encolhe na sua geografia e na sua vitalidade, longe das outras pátrias; esquece as suas antigas tradições democráticas e as ideias gerais para se perder no movimento das indústrias e das mercancias; alia-se com a Rússia; a raça saxónia vai desconhecendo os grandes lados do seu destino, enrodilha-se estreitamente nos egoísmos políticos e nas preocupações mercantis, cisma conquistas e extensões de territórios, subordina o elemento grandioso e divino ao elemento positivo e egoísta, e a grande figura sideral do Direito às fábricas, que fumegam negramente, nos arredores de Goetring. Isto dizem muitos.

Uma das inferioridades da América é a falta de ciências filosóficas, de ciências históricas e de ciências sociais. A nação que não tem sábios, grandes críticos, analisadores, filósofos, reconstruidores, ásperos buscadores do ideal, não pode pesar muito no mundo político, como não pode pesar muito no mundo moral.

Enquanto a superioridade foi daqueles que batalhavam, que lançavam grandes massas de cavalarias, que apareciam reluzentes entre as metralhas, o Oriente dominou, trigueiro e resplandecente. Quando a superioridade foi daqueles que pensavam, que descobriam sistemas, civilizações, que estudavam a Terra, os astros, o homem, e faziam a geologia, a astronomia, a filosofia, o Oriente caiu, miserável e rasteiro.

Há, sobretudo, na América um profundo desleixo nas ciências históricas. Inferioridade. As ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais. É a superioridade da Europa: sob a mesma aparência de febre industrial há uma geração forte, grave, ideal, que está construindo a nova humanidade sobre o direito, a razão e a justiça. O nosso mundo europeu é também uma estranha amontoação de contrastes e de destinos; é uma época esta anormal em que se encontram todas as eflorescências fecundas e todas as velhas podridões; políticas superficiais; grandes fanatismos: e ao mesmo tempo um desafogo das livres consciências, expurgação dos velhos ritos, e a alma moderna ligada na sua moral e na sua justiça às almas primitivas com exclusão da

Idade Média; políticas pacificas e transigentes, e um espírito de guerra surdo, aceso e flamejante: territórios violentos e conquistados, e a aniquilação pela política, pela história e pela filosofia dos conquistadores e dos heróis: nem são as influências monárquicas, nem é o individualismo; nem é o humanitarismo, nem são os políticos egoístas, não é a importância das individualidades, nem a importância dos territórios; é uma confusão horrível de mundos, e, em cima, triunfal e soberba, está a indústria, entre as músicas dos metais, as arquitecturas das Bolsas, reluzente, cintilante, colorida, sonora, enquanto no vento passa o seu sonho eterno que são fortunas, impérios, festas, empresas, parques, serralhos.

Ora em baixo, sob a confusão, sereno, fecundo, forte, justo, bom, livre, move-se em germe um novo mundo económico. Este germe é que a América não tem, creio eu. Mas vê-se que todos a apontam como o ideal económico que é necessário que os pensadores meditem, e todos os que no vazio fecundo das filosofias riscam as sociedades. Ora toda a América económica se explica por esta palavra – feudalismo industrial..

Diz-se, na América há um constante aumento de tráfico, de receitas, de riquezas: não há aumento; há deslocação, deslocação em proveito da alta finança – com detrimento das pequenas indústrias produtoras. Logo que na ordem económica não haja um balanço exacto de forças, de produção, de salários, de trabalhos, de benefícios, de impostos, haverá uma aristocracia financeira, que cresce, reluz, engorda, incha, e ao mesmo tempo uma democracia de produtores que emagrece, definha e dissipa-se nos proletariados: e como o equilíbrio não cessa, não cessam estas terríveis desuniformidades.

Mas o grande mal da predominância exclusiva da indústria é este: o trabalho pela repugnância que excita, pela absorção completa de toda a vitalidade física, pela aniquilação e quebrantamento da seiva material, pela liberdade em que deixa as faculdades de concepção – por isso mesmo sobreexcita o espírito, estende os ideais, abre grandes vazios na alma, complica as precisões, torna insuportável a pobreza: nas grandes democracias industriais onde as posições são obtidas pela perseverança, conquistadas pela habilidade, onde há mil motores – a ambição, a inveja, a esperança, o desejo, o cérebro aquece-se, espiritualiza-se, cria sonhos, ambições, necessidades impossíveis; o querer chegar torna-se uma verdadeira doença de alma: exageram-se os meios: e toda a seiva moral se altera e se deforma.

É o que vai acontecendo na América: debaixo da frieza aparente, move-se todo um mundo terrível de desejos, de desesperanças, de vontades violentas, de aspirações nevrálgicas. Depois, como no meio das indústrias ruidosas e absorvedoras muitas amarguras ficam por adoçar, muitas angústias por serenar, muitas fomes por matar, muitas ignorâncias por alumiar, tudo isso se ergue terrível no meio da febre da vida social, e toma-a mais perigosa. Londres dá hoje o aspecto desta luta.

De maneira que o trabalho incessante, enorme, irrita e exagera o desejo das riquezas; aferventa o cérebro, sobreexcita a sensibilidade, a população cresce, a concorrência é áspera, as necessidades descomedidas, infinitas as complicações económicas, e aí está sempre entre riscos a vida social. Entre riscos, porque vem a luta dos interesses, a guerra das classes, o assalto das propriedades e por fim as revoluções políticas.

E todavia a liberdade da América parece tão serena, tão confiada, tão assente, tão satisfeita!
No entanto há muita força fecunda nos Estados Unidos! Ainda há pouco deram o exemplo glorioso de uma nação que deixa os seus positivismos, a sua indústria, os seus egoísmos, o seu profundo interesse, e arma exércitos, esquadras, dissipa milhões, e vai bater-se por uma ideia, por uma abstracção, por um princípio, pela justiça.

O Sul quis corrigir a liberdade pela escravatura; desune-se; o escravo que trabalhe, que cultive, que produza, que sue, que morra sob a força metálica, baça e sinistra do clima e do Sol

Pois bem. A América do Norte quer a liberdade, o amor das raças, e bate-se pela liberdade, pela legalidade, pela união, pelo princípio, pela metafísica! E dispersa os exércitos da Virgínia!
Eram estas as coisas que me lembravam há dias, no Tejo, estando a ver o
Miantonomah, navio dos Estados Unidos em viagem pelo Sul, comandante Beaumont, fundeado no nosso Tejo..

Eça de Queiroz, 2 de dezembro de 1866 

domingo, 23 de junho de 2024

Boa Festa do Sol

"As preces públicas eram em Roma a Ambarvalia, e tinham também lugar em maio, através dos campos, pedindo para eles a proteção divina. No solstício do verão, celebrava-se a festa do Sol, que o cristianismo converteu na de João".

domingo, 26 de maio de 2024

O Regime de Salazar descrito por Henrique Galvão

Fui à estante, peguei num ou noutro livro, até que olho mais demoradamente para "O assalto ao Santa Maria" de Henrique Galvão (1895-1970). Abro e começo a ler. Sento-me e, rapidamente, devorei umas vinte ou trinta páginas. É um livro extraordinariamente interessante e que aconselho todas as pessoas a ler. Primeiro para se ficar a conhecer, na primeira pessoa, sobre o próprio Henrique Galvão, escritor, militar, político, mas, principalmente, herói esquecido (na sombra de Humberto Delgado) que lutou pela liberdade e contra o regime de Salazar. 

Depois porque narra, na primeira pessoa, todos os contornos do assalto ao paquete Santa Maria, golpe que, durante semanas, apaixonou o mundo e colocou sob os holofotes as ditaduras Ibéricas. Mas na primeira parte do livro, Galvão descreve o regime de Salazar e a personalidade do ditador. São alguns excertos dessa parte, até à Constituição de 1933 que aqui deixo (talvez posteriormente partilhe outros excertos, como por exemplo, a descrição da corrupção e podridão do regime) :


Estamos perante um livro de História.
Henrique Galvão foi, sem dúvida, um grande português, a quem o país ficou a dever inestimáveis serviços. Sofreu muito. Morreu pobre, esquecido, abandonado, como sucede, em geral, aos que lutam sinceramente pelas suas ideias. 

 "Embora a situação económica da nação durante o primeiro período da ditadura militar fosse desastrosa, o povo conservou uma certa dose de otimismo e confiança. Assim, apesar do seu descontentamento, evitou-se uma insurreição geral e preparou-se o caminho para o êxito de um Ministro das Finanças partidário do autoritarismo - um futuro ditador financeiro. Esta pasta, depois de ter sido declinada por vários reputados professores de Economia, foi confiada a um obscuro professor da Universidade de Coimbra, António de Oliveira Salazar, cujos artigos começavam a aparecer nas colunas de um jornal católico e que, em tímidos panfletos, proclamava direitos e liberdades que posteriormente negou ao povo Português, O professor Salazar tinha fama de ser honesto, temente a Deus e tecnicamente competente. 

Após a desastrosa administração fiscal dos militares, o povo concedeu imediatamente a Salazar um fundo de confiança ilimitada. Completamente liberto das dificuldades encontradas por outros peritos num regime parlamentar caótico, não lhe foi difícil obter, pela simples aplicação dos seus conhecimentos técnicos, um êxito fiscal que proclamou então como sendo o seu próprio. A sua vaidade nunca permitiu que se revelassem as verdadeiras razões por detrás deste facto, que era coletivo da nação como um todo. 

A sua vaidade, tanto mais perigosa quanto se gabava de ser modesto, experimentou assim assim a primeira grande satisfação. Ao mesmo tempo, a sua astúcia de camponês dizia-lhe que a melhor maneira de manter a ilusão popular e desfrutar o consequente estado de mito, era ser visto o menos possível, evitar o contacto com o povo e fugir assim ao risco de vir a conhecer-se a verdade sobre a sua personalidade. Isto Era-lhe bastante fácil, pois, para alcançar o seu tão desejado propósito e fonte de prazer - o poder arbitrário - teria apenas de sacrificar o que lhe era desagradável, ou pelo menos enfadonho: convivência, espetáculos, companhia de mulheres e outras diversões do homem vulgar. 

Assim, agarrou a oportunidade e começou a criar a máscara que, a partir daí, o protegeria, a ele e ao mito da sua infalibilidade. O povo, ingénuo, e isolado pela censura , das democracias que poderia esclarecê-lo, só muito mais tarde descobriria quanta malícia de campónio, quanto ódio reprimido e quanto orgulho mórbido estavam ocultos sob a capa de simplicidade e de modéstia que ele usava (...)

E assim aumentou a enorme mentira de Salazar. Se fosse realmente um homem modesto, simples e desinteressado, como a propaganda levava o povo a acreditar, ele teria declinado a tarefa (dar forma a uma Constituição a ordem e a liberdade) e confessado, nobre e patrioticamente , a sua incapacidade moral a intelectual para governar um povo livre e tradicionalmente democrático. E esta confissão teria tornado o seu trabalho teria tornado o seu trabalho, como dirigente das finanças, merecedor de respeito incondicional, por muito óbvias que se tornassem as circunstâncias que facilitassem esse trabalho e por muito peritos pudessem criticar os seus métodos.

Infelizmente, a sua personalidade era totalmente diferente. Ele era, por exemplo, devoto, mas não genuinamente religioso. Um professor de veterinária que acreditara nele, mas que veio mais tarde a conhecê-lo como realmente era, descreveu-o como se segue num artigo que escapou à censura por ter sido publicado clandestinamente:

"... um inconcebível amontoado de incongruências, tortuosidades e contradições, todas originadas por um estado psicológico nitidamente desiquilibrado, um imoderado amor de poder, e a repressão simultânea de tudo que pudesse impedir a realização dos seus planos".

Estes traços de carácter já se tinham manifestado no ditador financeiro, embora ele procurasse ocultá-los a todo o custo e o povo, na sua cegueira, se não apercebesse de tal. Consequentemente, ele não declinou a terefa que, na verdade, de há muito cobiçava, nem confessou a sua incapacidade, nem se preocupou com a justeza da sua posição. Preferiu alimentar a falsa conceção de si próprio que a Nação e o Exército tinham aceitado cegamente e completou-a com uma série de mentiras oportunas e atitudes místicas, às quais chamou, para cúmulo de tudo, uma "política de verdade". 

Foi assim obrigado a fabricar uma falsa personalidade, o que fez com evidente prazer. A falsa personalidade servir-lhe-ia de disfarce para ocultar a verdadeira, que era incapaz de atos democráticos. E assim, a fundação de instituições livres e a solução dos problemas de Portugal ficariam suspensas eternamente - o "eternamente" Salazariano. 

E não teve que inventar nada de novo. Primo de Rivera em Espanha, Mussolini na Itália, tinham já criado uma forma de ditadura, Estaline outra. Ele tinha apenas de fazer adaptações. Uma vez que, ao contrário dos seus mestres, ele nada arriscara para obter o poder, faltando-lhe até a aparência marcial daqueles que se expõem ao perigo, não podia copiar exatamente os seus antecessores. Completou-os com modelos da Idade Média, que foi buscar às suas apressadas mais influentes leituras de literatura antiga, criando assim uma cruel caricatura, uma miniatura híbrida, de Maquiavel, Estaline, Savonarola, Mussilini e Inquisidador do Santo Ofício. (...)

Mandou um projeto de uma Constituição a dois professores de Direito que considerou de confiança. Os pormenores foram elaborados em segredo. Em 1933, um plesbicito fraudulento, uma das primeiras lições aprendidas nas escolas nazi e fascista, permitiu-lhe apresentar a sua Constituição como a expressão da livre vontade duma Nação e a estrutura conceptual de um estado republicano - isto por parte de alguém que nunca escondera antes os seus sentimentos monárquicos! Para todos os fins práticos era apenas a base estatutária de uma nova disfarçada forma de ditadura. 

Foi uma rude deceção. A imprensa portuguesa, amordaçada pela censura, não pôde revelar o logro, mas este depressa foi descoberto nos sectores da imprensa estrangeira que seguiam a situação em Portugal. Martin Serrano, na revista francesa Temps Mordernes, comentou como se segue a Constituição imposta por Salazar:

... é poder absoluto, poder fascista encoberto com Cristianismo, o que constituiu a única ficção original do sistema de Salazar. O elemento essencial da Constituição (...) é a concentração do poder absoluto nas mãos do Executivo. O parlamento, pomposamente chamado Assembleia Nacional, é uma pura ficção".

(...)
Escolhe um imbecil e nomeia-o para esse cargo (Presidente da República) através do mecanismo de uma "eleição", onde os votos são contados em segredo por agentes de confiança de Salazar. 

Quando a Constituição foi imposta, uma grande parte da nação ainda acreditava em Salazar, tal como acreditava em bruxas". 

domingo, 19 de maio de 2024

E se eu te Disser que a Bíblia é uma Fraude e que Cristo Nunca Existiu?

Por estes dias, pensava no porquê de um ateu como eu continuar a ler livros sobre religião. Mas a resposta tem todo um sentido inverso: tornei-me resistente à religião por sempre tudo ter questionado e não aceitar o que me diziam como sendo verdade absolta e universal. Sempre quis saber, sempre quis que as coisas me fizessem sentido e não me limitei a ser uma ovelha obediente.


Nasci num tempo em que se acreditava que se iria morrer no ano 2000. Fui uma criança que cresceu a achar que nunca chegaria aos vinte e cinco anos porque "aos mil chegarás, dois mil não passarás". Nascia-se, ia-se para a escola, fazia-se a tropa, começava-se a trabalhar, casava-se, e claro, ia-se todos os domingo à missinha e rezava-se a Deus Nosso Senhor, criador de todas as coisas, para viver para sempre ou então arder no fogo eterno do inferno.

Como já por aqui contei diversas vezes, o único livro que existia em casa quando era criança era uma Bíblia. E, depois, aos dez anos, recebi outra bíblia mas só com o Novo Testamento, oferecida pelo padre, aquando da comunhão solene.

Lembro que, em pelo menos dois diferentes momentos da adolescência ter tentado ler a bíblia, a tal palavra de Deus. Li e forcei-me a tentar. Mas nunca aquilo fez o mínimo sentido para mim. Aquele Deus ali retratado nunca poderia ser o meu Deus. Nada fazia qualquer sentido para mim.

E até que, tantos anos depois, e depois de muito tempo à procura do livro, que não é propriamente fácil de encontrar, consigo adquirir "Cristo Nunca Existiu" de Milesbo (pseudónimo de Emilio Bossi), e para mim, tudo o que ali está faz todo o sentido. 

Aqui deixo alguns excertos ao longo do livro e que possa persuadir alguém que por aqui passe a lê-lo:


CAPÍTULO I - O SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO

"De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a história não nos conservou documento algum, prova alguma, demonstração alguma. Cristo nada escreveu.

Sem levar em conta a Bíblia que, além de não dar nenhuma prova sobre a personalidade real do Cristo, ainda demonstra o contrário. Dos muitos autores profanos que foram contemporâneos de Cristo, nenhum nos deixou o menor vestígio acerca dele.

Ernesto Renan, o mais célebre dos cristólogos, que cometeu o erro de fazer da Vida de Jesus uma biografia quando não passa de uma engenhosa lenda, vê-se obrigado a reconhecer o silêncio da história em volta do seu herói. Ele escreve que os países gregos e romanos nunca ouviram falar de Cristo. Mesmo com os movimentos sediciosos provocados pela sua doutrina e as perseguições de que foram alvo os seus discípulos, ainda assim o seu nome não aparece nos autores profanos durante o primeiro século depois da sua morte, sequer indiretamente.

No judaísmo, Jesus não deixou impressão duradoura. Fílon, que morreu no ano 50, nada sabe acerca dele. 

Um escritor hebreu, Justo de Tiberíades, que narrou a história dos hebreus desde Moisés até fins do ano 50 da era cristã, não cita sequer o nome de Cristo, segundo atesta Fócio. Juvenal, que fustigou com a sátira as crenças do seu tempo, fala extensamente dos hebreus, mas não dedica uma única palavra aos cristãos como se eles não existissem. Plutarco, nascido 50 anos depois de Cristo, historiador eminente e consciencioso, que decerto não poderia ignorar a existência de Cristo e dos seus prodígios, nem uma só vez alude, em suas numerosas obras, quer ao chefe da nova fé, quer a seus discípulos.

Séneca, que por seus escritos cheios de máximas perfeitamente cristãs faz duvidar se foi cristão ou teve relações com os discípulos de Cristo, no seu livro sobre as crenças, extraviado ou destruído, dado a conhecer por Santo Agostinho, não diz uma única palavra acerca de Cristo, e, falando dos cristãos, aparecidos já em muitos pontos da terra, não os distingue dos hebreus, a quem chama de um povo abominável. 

Mas sobretudo expressivo e decisivo é o silencio de Fílon acerca de Cristo. Fílon, que contaria de 25 a 30 anos, quando apareceu Cristo, e que morreu alguns anos depois deste, nada sabe ou diz acerca dele. Como escritor distintíssimo que foi, ocupou-se especialmente de estudos sobre filosofia e religião, e, por certo, não esqueceria Cristo, seu compatriota de origem, se Cristo realmente tivesse aparecido sobre a face da terra e levado a cabo uma tão grande revolução do espírito humano.

Uma circunstância de grande relevo torna mais eloquente o silêncio de Fílon em torno de Cristo: é que todos os ensinamentos de Fílon podem passar por cristãos, de tal sorte que Havet não hesitou em chamar a Fílon um verdadeiro Padre da Igreja. 

Por outro lado, Fílon preocupou-se especialmente em conjugar o judaísmo com o helenismo tomando do Antigo Testamento as partes mais edificantes, depois de distinguir o sentido alegórico do literal, enxertando na árvore da religião hebraica o misticismo dos neoplatónicos alexandrinos. Deste modo, chegou a formar uma doutrina platónica do Verbo ou Logos, que tem muita afinidade com a do IV Evangelho, na qual o Logos é precisamente o Cristo.

Pois bem: não é isto uma grande revelação? Fílon, que vive no tempo de Cristo, que já é célebre antes do nascimento dele, e que morre ainda alguns anos depois; Fílon, que realiza com o Judaísmo a mesma transformação, helenização e platonização idêntica à que os Evangelhos promovem, sobretudo o IV; Fílon, que fala do Logos ou do Verbo do mesmo modo que o IV Evangelho, porque não cita Cristo uma única vez sequer em suas numerosas obras? Porventura, não prova este fato eloquentíssimo que Cristo nunca foi pessoa histórica e real, mas sim pura invenção ou criação mitológica e metafísica, para o que contribuiu mais do que ninguém o próprio Fílon, que escreveu, como se fosse um cristão, sem saber nada de tal nome, que fala do Verbo sem conhecer o Cristo, e que ensina a mesma doutrina atribuída Cristo?

Por outro lado, Fílon, o Platão hebreu, alexandrino, contemporâneo de Cristo fala de todos os acontecimentos e de todos os personagens principais do seu tempo e do seu país, sem esquecer Pilatos. Conhece e descreve os essênios estabelecidos junto de Jerusalém nas ribeiras do Jordão. Foi como delegado a Roma para defender os hebreus no reinado de Calígula, o que faz supor nele um profundo conhecedor das coisas e nomes da sua terra. Se Cristo tivesse existido, Fílon certamente ver-se-ia obrigado a, no mínimo, a referir-se a ele.

Nós não conhecemos mais do que um único Jesus: o dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. Este personagem não deixou nenhum vestígio em Jerusalém, contra o que pretende Salvador; a sua vida não foi mesquinha, em oposição ao que supõe Stefanoni, ao contrário, a vida de Cristo, segundo a Bíblia, foi de tal forma rumorosa e extraordinária que nenhum outro Ser Humano viveu algo semelhante. Jesus deu causa a alvoroços públicos, a prisão, a um processo, a um drama judicial seguido de morte trágica.

Realizou prodígios maravilhosos, desde a visita dos anjos até as estrelas que marchavam para indicar o lugar do seu nascimento aos soberanos vindos da Ásia expressamente para o visitar; desde a degolação dos inocentes às discussões que sustentou aos doze anos com os doutores; desde a multiplicação do número e a transformação da natureza dos elementos à cura dos enfermos e à ressurreição dos mortos; desde a dominação dos elementos às trevas e terremotos, que assinalaram a sua morte até à sua própria ressurreição.

Ora, perante um personagem tão extraordinário e acontecimentos tais que atrairia a atenção das pessoas mais indiferentes e excitaria a curiosidade dos cronistas, analistas e historiógrafos, o silêncio da história é absolutamente inexplicável. Inverossímil e singularíssimo, como acertadamente notou Dide. Este silêncio constitui, por irrespondível, uma grande presunção contra a existência histórica e real de Cristo. Outros elementos críticos nos provam que só a inexistência de Cristo pode explicar o silêncio da história em volta dele, e que, por sua vez, este silêncio demonstra aquela não existência.

O mesmo silêncio da História acerca de Jesus revela-se também a respeito dos apóstolos, sobre os quais não existem outros documentos senão os eclesiásticos, destituídos de todo o valor provativo, pois que nô-los apresentam, não como homens naturais, mas como personagens sobrenaturais, ou pelo menos, taumaturgos, o que vem a dar na mesma.

Os únicos fatos históricos que se atribuem aos apóstolos, tais como a viagem de S. Pedro a Roma e as suas disputas com Simão Mago, o encontro de S. Pedro com Jesus e o famoso Quo vadis, Domine?, morte de S. Pedro e outros fatos, são narrados exclusivamente em livros declarados apócrifos pela própria Igreja. Outro tanto pode afirmar-se de José e de Maria, progenitores de Cristo, e bem assim de seus irmãos e de toda a sua família. Todas estas circunstâncias aumentam a significação do silêncio da história em volta de Cristo, circunstâncias que adquirem maior valor quando se vê que Cristo, Maria e os Apóstolos são puras criações místicas.

CAPÍTULO I A BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA

Demonstramos que Cristo não é pessoa histórica, porque a História, a verdadeira, não o conhece nem dele fala. Vamos demonstrar, agora, que a própria Bíblia, única fonte que dele nos fala, nada prova a seu favor, antes confirma a nossa tese. Cristo nunca existiu!

Maurice Vernès, numa antevisão genial e muito convincente assegura que aquilo que os livros do Antigo Testamento narram são, em geral, de feitura sacerdotal e profética, sem caráter algum histórico, mas apenas simbólico e teológico. Se tal é o resultado da exegese bíblica, pelo que respeita ao Antigo Testamento, lógico é que tal consequência se aplique também ao Novo Testamento, pois este, do princípio ao fim se apoia naquele.

Estamos convencidos de que a crítica chegará um dia a confirmar esta hipótese, porque é dentre todas, a mais racional. Por agora, basta saber que o edifício bíblico se fundamenta todo em terreno duvidoso, incerto e vago. De qualquer dos modos, a crítica já demonstrou o Novo Testamento não apresenta os requisitos necessários para autenticar a veracidade do que diz.

Todos os livros do Novo Testamento são anónimos. Cingindo-nos aos Evangelhos, as palavras precedidas pelas frases consagradas, segundo Mateus, segundo Marcos, etc., não só não provam que foram realmente dos Apóstolos ali citados, mas até indicam que foram redigidos por outros. Ignora-se, em absoluto, a época precisa em que os Evangelhos foram escritos.

A referência mais antiga que temos sobre este ponto é de Papias, bispo de Yerápolis, que se supunha martirizado no tempo de Marco Aurélio (161 - 180). O seu livro, porém, não chegou até nós. De seu testemunho relativo a Marcos e a Mateus, conserva-se apenas alguns fragmentos em Irineu e Eusébio, que demonstram não se referir aos atuais Evangelhos. Os testemunhos dos Evangelhos, que datam do III e IV século, que fé podem eles merecer?

O que é indiscutível, é que nenhum dos Evangelhos foi escrito no tempo em que Jesus Cristo viveu; e que nunca se tiveram à mão os pretendidos originais, mas sim e apenas, cópias dos mesmos e cópias das cópias. Quem nos garante, pois, que tais originais tenham existido? Tudo são trevas nos dois primeiros séculos do cristianismo.

Em tudo vemos, neste ponto, o anonimato e a falta de certeza, principais características dos livros do Novo Testamento, que bastariam para lhes tirar toda a autoridade. Mas, há mais. Os Evangelhos atuais não foram escolhidos pela Igreja com critério que revelasse maior autoridade nesses que em outros muitos Evangelhos que então andavam em voga: destes foram escolhidos quatro ao acaso, diz Santo Irineu, porque quatro eram as regiões do mundo e quatro os ventos.

E não é tudo. Antes do concílio de Niceia, a Igreja e os próprios Santos Padres serviam-se indiferentemente dos Evangelhos, que mais tarde foram declarados apócrifos, porque era igual a autoridade de todos. E mais ainda. A Igreja conservou muitas lendas que se encontram apenas nos Evangelhos apócrifos. No Novo Testamento acham-se mesmo passagens que se referem a lendas contidas unicamente nos referidos Evangelhos apócrifos. Resumindo: anonimato, incerteza nos originais, seleção ao acaso e falta de critério na pretensa autenticidade conferida pela Igreja aos Evangelhos atuais – eis aí ao que se reduz a autoridade do Novo Testamento!

Como se tudo isto fosse pouco, outras circunstâncias a diminuem ainda mais. Entre elas, as numerosas alterações a que estiveram sujeitos os Evangelhos atuais, devido à inépcia dos copistas, e especialmente à falsificação das diversas seitas. Isto nos explica, como diz Baur, a manifesta contradição das doutrinas englobadas no Novo Testamento, em luta contínua entre si.

Temos, por outro lado, a diversidade dos exemplares sobre os quais se fez a tradução do Novo Testamento em língua latina – diversidade tão grande e tão grave, que S. Jerônimo temia passar por falsário ao constituir-se em árbitro para escolher entre a profusão de tantos e tão diversos exemplares dispersos pelo mundo. E declarava ter-se visto obrigado a acrescentar, trocar e corrigir.

Juntemos ainda a demonstração feita já pela crítica, relativa à falta específica de autenticidade em não poucas partes do Novo Testamento. O último argumento contra a validade dos livros do Novo Testamento está no fato das irreparáveis contradições e das discordâncias numerosíssimas que ainda hoje contém, para não falar nos seus erros, na sua imoralidade e absurda puerilidade, apesar de a Igreja ter declarado que foram inspirados, palavra por palavra, pelo Espírito Santo!

Mateus e Lucas dão a Jesus duas genealogias diversas. Devendo Jesus nascer, segundo muitas profecias, da estirpe de Davi, Mateus pretende demonstrar que se cumpre o vaticínio, fazendo descender José, pai de Jesus, da linha de Davi. Por outro lado, porém, o mesmo Mateus afirma que Jesus fora concebido por obra do Espírito Santo. Parece, pois, que se Jesus foi concebido desse modo, não podia descender de Davi, ao passo que, descendendo de Davi, por via de José, não podia de modo nenhum ser concebido por obra do Espírito Santo.

Quanto ao ano em que Jesus nasceu, há contradição formal entre Mateus e Lucas, os únicos evangelistas que dele falam. Confrontando as circunstâncias históricas com que os dois relacionam o nascimento de Jesus, depreende-se de um modo incontroverso que o Cristo de Mateus devia ter pelo menos 11 anos quando veio ao mundo o Cristo de Lucas.

Em Mateus, José e Maria partem de Belém sem irem a Jerusalém e fogem para o Egito precipitadamente depois da adoração dos Magos, para salvarem Jesus da degolação dos inocentes, ordenada por Herodes. Pelo contrário, em Lucas, José e Maria vão publicamente ao templo de Jerusalém, onde tem lugar a cena de Simão e Ana, e depois, em vez da fuga para o Egito, voltam tranquilamente para Nazaré.

É assim que a narração de Lucas não só contradiz materialmente a de Mateus, mas até exclui, implicitamente, a famosa degolação dos inocentes, narrada por aquele. O fato de levarem Jesus ao templo de Jerusalém, onde é publicamente reconhecido por Simão como o Messias não se harmoniza, em ponto algum, não digo já com a fuga para o Egito, mas ainda mesmo com a matança dos inocentes, pois que, em tal caso, Herodes teria podido apoderar-se dele, sem tocar em um cabelo de nenhum outro menino.

Quanto à ultima ceia, que constituiu um fato capitalíssimo para o cristianismo porque nela teria Jesus instituído o mistério da Eucaristia, nem mesmo aí os Evangelhos se harmonizam. Os três primeiros colocam a última ceia no dia de Páscoa, enquanto João a coloca antes da Páscoa. Além disso, os primeiros fazem Jesus instituir nesta ceia o mistério da Eucaristia ao passo que João, absorto pela ideia eucarística narra a última ceia com inúmeros pormenores, mas sem dizer uma única palavra acerca dessa mesma ideia eucarística, sendo ele de resto, o único que teria valor testemunhal, pois assistiu a ela desde o princípio.

Repitamos aqui, pois vale a pena, que essa contradição, na qual muita tinta tem sido gasta inutilmente pelos estudiosos, não pode ser explicada exceto pela nossa dedução na qual, Cristo sendo um mito, e exatamente o mito do cordeiro pascal qui tollit peccata mundi é ele mesmo o alimento da ceia pascal.

CAPÍTULO VI ABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO

Eis as concepções fundamentais sobre as quais se funda o cristianismo: Um Deus proíbe ao primeiro casal humano que coma do fruto que lhes daria a conhecer o bem e o mal. Eles porém desobedecem e são castigados, embora nenhuma culpa tenham, visto que antes de comerem esse fruto não sabiam distinguir entre o bem e o mal. Contudo, Deus não só castiga os autores do fato, inocentes, como se vê, mas todos os seus descendentes, que em nada foram participantes desse mesmo fato.

Para salvar a Humanidade dessa pretendida falta, Deus recorre a outra vítima, sendo certo que, para isso, bastaria um ato simples da sua vontade. Esta vítima, também inocente, é o seu próprio Filho, o qual, se era Deus, não podia morrer, e se era homem, não podia ressuscitar. Enfim, para cúmulo de imoralidade, para que esse Deus fosse morto, faltava quem o matasse. Assim, obrigando um povo a um deicídio, Deus condena este povo à infâmia, tanto mais imerecida, quanto era uma necessidade determinada pelo próprio Deus a fim de realizar o seu plano.

E toda esta série de imoralidades para salvar, não a Humanidade inteira, mas apenas aqueles que vierem ao mundo depois de Cristo, e ainda destes, só uma pequena parcela, pois que o mundo, passados vinte séculos, ainda é bem pouco cristão. E mesmo dos que são cristãos, só se salva uma pequeníssima parte, aqueles predestinados por Deus, como se ouve todos os dias pela voz autorizada da Igreja. Isto tudo demonstra incontestavelmente que Cristo é, sim, uma invenção dos teólogos.

3a PARTE - CRISTO NA MITOLOGIA

Se Cristo nunca existiu, como e por que foi inventado ou imaginado? A esta pergunta responderá o presente capítulo do nosso trabalho, onde exporemos uma nova e luminosa prova contra a existência humana, real e objetiva de Cristo. Além disso, se demonstrarmos que outros personagens análogos, senão idênticos a Cristo, o precederam na história das ideias humanas ou nos tempos dos conceitos representativos.

Se provarmos que os predecessores de Cristo, os mesmos que deram a este todos os elementos da sua vida, do seu pensamento e da sua missão não foram mais do que simples mitos, teremos demonstrado também que Cristo não é apenas uma cópia, mas um mito igual, de onde se concluirá logo que nunca existiu, a não ser na imaginação daqueles que têm acreditado nele. Começaremos por passar uma rápida vista sobre a vida e milagres dos Deuses Redentores, que precederam Cristo e da qual veio o mito cristão, pois Cristo não é mais que a repetição do mesmo tema.

A antiga Índia teve mais de um Deus Redentor. Porque nessa região, onde o maravilhoso e o sobrenatural têm a sua origem, o Deus Redentor Vischnú encarnou nove vezes, tomando forma humana para redimir a Humanidade do pecado original. Para o nosso trabalho só é interessante a oitava e nona avatar ou encarnação de Vischnú, que na oitava assume a pessoa de Cristna e na nona se encarna como Buda. Cristna, o Redentor hindu, nasce de uma virgem, a virgem Devanaguy, e a sua vinda está vaticinada nos livros sagrados hindus (Atharva, Vedangas, Vedanta).

O mesmo Vischnú, o Deus bom e conservador aparece a Lakmi, mãe da virgem Devanaguy, para lhe revelar os futuros destinos daquela que estava para nascer e para lhe indicar o nome que devia impor à mãe do Redentor, recomendando-lhe, finalmente, que não una sua futura filha em matrimônio com pessoa alguma, atendendo a que se deviam cumprir os desígnios de Deus.

Isto teve lugar uns 3500 anos antes da era vulgar e no palácio do rajá de Madura, pequena província da Índia oriental. A menina recebe ao nascer o nome de Devanaguy, conforme o que estava escrito. O rajá teve um sonho em que se viu expulso do trono pelo filho que nasceria de Devanaguy. Por esta razão, o tirano de Madura faz encerrar Devanaguy numa torre e soldar a porta para evitar toda a possibilidade de fuga, colocando ainda um valente guarda à vista da prisão.

Tudo porém foi inútil. A profecia de Poulastya, não podia ser impedida: E o espírito divino de Vischnú atravessou as paredes para se unir a sua amada. Certa noite, enquanto a virgem orava, uma celeste música veio de improviso deleitar os seus ouvidos, iluminou-se a prisão e Vischnú apareceu diante dela com todo o esplendor da sua divina majestade.

Devanaguy foi ofuscada pelo espírito de Deus que queria encarnar-se, e concebeu. Na noite do parto e enquanto o recém-nascido exalava os primeiros vagidos, um vento fortíssimo desmoronou o muro da prisão e a Virgem foi transportada com o filho, por um mensageiro de Vischnú, à uma cabana de pastores pertencente a Nanda. O recém-nascido foi chamado Cristna. Quando os pastores souberam do depósito que tinha-lhes sido confiado prostraram-se diante do filho da Virgem e adoraram-no.

O tirano de Madura, sabedor do parto e da fuga de Devanaguy encolerizou-se em extremo e ordenou uma matança geral de todos os meninos, nascidos nos seus Estados durante a noite em que Cristna tinha vindo ao mundo. Um pelotão de soldados sai imediatamente para o aprisco de Nanda, mas Cristna escapa milagrosamente daquele ameaça. São quase inenarráveis os episódios dos primeiros anos de Cristna, que saia sempre vitorioso dos perigos e ciladas que lhe armavam os que queriam a sua morte, fossem homens ou diabos.

Aos dezesseis anos, Cristna abandona os seus parentes e começa a percorrer a Índia, pregando a sua doutrina. É o tempo dos seus grandes milagres: ressuscita mortos, cura leprosos, restitui a audição aos surdos e a vista aos cegos. Proclama-se a segunda pessoa da Trindade, isto é, Vischnú, descido à terra para salvar o homem do pecado original.

Os povos acudiam em massa avidamente para o ver e ouvir os seus ensinamentos, adorando-o como a um Deus e dizendo: Este é realmente o Redentor prometido a nossos pais. A sua moral é pura, elevada e completamente altruísta. Rodeia-se de discípulos que devem continuar a sua obra. Ensina por meio de parábolas. Um dia, em que o tirano de Madura enviara muitos soldados contra ele e seus discípulos, estes, tomados de pânico, quiseram fugir, especialmente Ardjuna, chefe dos discípulos, que parecia abalado na sua fé. Cristna, que estava orando perto, ouvindo os seus lamentos foi ter com eles, repreendendo-os pela sua pouca fé, aparecendo-lhes com todo o esplendor da divina majestade e com o rosto de tal modo iluminado nem os discípulos puderam resistir a tanta luz.

Em seguida a esta transfiguração, os discípulos chamaram-lhe Jezeus, que quer dizer nascido da pura essência divina. De outra vez em que se encontrava com os discípulos, acercaram-se dele duas mulheres da pior condição que lhe derramaram perfumes sobre a cabeça e o adoraram. Quando Cristna compreendeu que tinha chegado a hora de abandonar a terra e voltar ao seio de quem o tinha enviado separou-se dos discípulos proibindo-lhes que o seguissem e, transportando-se às margens do Ganges mergulhou no rio sagrado. Em seguida ajoelhou-se, e orando esperou a morte.

Nesta posição foi atingido por uma flecha e pregado a uma árvore. O que o matou foi condenado a vaguear eternamente sobre a terra. Quando se espalhou a notícia da morte do Redentor, os seus discípulos correram a recolher os sagrados despojos; estes porém, tinham já desaparecido, porque ele ressuscitara e subira ao céu. A nona encarnação de Vischnú é aquela em que aparece como Buda. Foi revelada em sonhos à sua mãe a grandeza do filho e o ascendente que teria sobre todos os seus semelhantes.

Escolhe, para nela nascer, uma casta principesca, assim como Cristo escolheu a de Davi, e desce à terra. Isto acontecia 628 anos antes de Cristo.

CAPÍTULO I CRISTO ANTES DE CRISTO

Os egípcios tinham também o seu Deus Salvador em Horus, convertido depois em Osiris ou simplesmente Serápis. Horus também nasceu de uma virgem no solstício do inverno e morreu no equinócio da primavera para depois ressuscitar como Cristo. Horus estava exposto no solstício do inverno sob a imagem de uma criatura à adoração dos fiéis, porque então, diz Macróbio, o dia era mais curto e este Deus não passava de um débil menino: o menino dos mistérios, cuja imagem os egípcios tiravam de seus santuários todos os anos e em um dia determinado (25 de dezembro).

Deste menino proclamava-se mãe a deusa de Sais, na famosa inscrição: O Deus que pari é o Sol. O deus Horus teve também a sua fuga, levado pela virgem Ísis, montada sobre um jumento. O mesmo mito foi aplicado no Egito ao rei Amenófis III, que convém recordar aqui por ser um documento da maior importância para demonstrar que, dezoito séculos antes de Cristo, os mistérios que se encontram no Evangelho de Lucas (c. I e II) já eram conhecidos.

Também Baco nasceu no solstício do inverno, depois de morto desceu aos infernos e ressuscitou, e a cada ano se celebravam os mistérios da sua paixão no equinócio da primavera. Chamava-se Salvador, como Cristo, e como ele, realizava milagres curando enfermos e prevendo o futuro. Na sua infância, ameaçaram matá-lo, como Herodes a Jesus, em uma emboscada. No templo de Baco operava-se o milagre da mudança de água em vinho, tal qual fez Jesus nas bodas de Canaã.

CAPÍTULO II A MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL 

De sorte que, se por um lado, Cristo é uma cópia dos Deuses Redentores do Oriente, e por outro, o mesmo Antigo Testamento, do qual Cristo depende, é pura cópia das mitologias orientais, teremos que, enquanto Cristo deriva dos Deuses Redentores, o mesmo Antigo Testamento, a que Cristo se adapta deriva das mitologias orientais criadoras dos mitos dos Deuses Redentores. Em outras palavras: sem o pecado original, que serve de base ao Antigo Testamento não teria acontecido a Redenção, que serve de base ao Novo.

Logo, se o pecado original deriva das mitologias orientais, com mais razão derivará Cristo, porque Cristo está para os Deuses Redentores, assim como o Novo Testamento está para as mitologias orientais, e por sua vez, Cristo está para o Antigo Testamento assim como os Deuses Redentores do Oriente estão para as mitologias orientais. Neste capitulo, demonstraremos que a mitologia do Antigo Testamento é uma imitação das mitologias precedentes.

A mitologia do Antigo Testamento baseia-se nestes conceitos fundamentais: Deus, a Criação, a queda dos anjos, o Éden, Eva, a Serpente e o Pecado Original, o Dilúvio, a Torre de Babel, os Anjos e os Demônios, o Paraíso e o Inferno, os Patriarcas, um legislador inspirado e os Profetas. Pois bem: esta mitologia não é original, porque outros povos a tiveram, muito antes dos hebreus.

A lenda do fim do mundo, como se encontra na Revelação é uma cópia idêntica da lenda dos livros sagrados da Índia, que têm as mesmas imagens e os mesmos fenômenos que no do Apocalipse.

Brahma criou o homem e a mulher, dando-lhes a consciência e a palavra, tornando-os superiores a tudo que tinha criado, só inferiores aos Devas e a Deus. Ao homem chamou Adima (Adão, o primeiro homem) e à mulher Heva (Eva, a que completa a vida). Colocou-os em um paraíso terrestre em meio de uma esplêndida vegetação; ordenou-lhes que se unissem, procriassem e o adorassem por toda a vida, e proibiu-lhes de deixar o paraíso terrestre (Ceilão). Eles desobedeceram e logo o encanto da Natureza desapareceu. Brahma os perdoou, mas expulsa-os daquele lugar de delícias, e condena-lhes os filhos a trabalhar, prevendo que se tornarão maus influenciados pelo espírito do mal que invadira a Terra.

Na mitologia persa, Ormuz promete ao primeiro homem e à primeira mulher a felicidade eterna, desde que se mantivessem bons. Mas um demônio com a forma de serpente é enviado por Ariman. Nesse demônio acreditam, pois os persuade de que Ariman é o distribuidor de todos os bens, e começam a adorá-lo. Uma particularidade digna de nota é a semelhança entre o paraíso terrestre persa com o Éden do Gênesis. O paraíso persa chama-se Eren, em vez de Éden, tendo havido corrupção de uma letra na passagem da lenda persa para a hebraica. Em outros paraísos terrestres há os mesmos rios.

Para finalizar. No nome do anjo posto de guarda no jardim, vê-se a semelhança da cópia com o original: No Zend-Avesta ele se chama Chelub enquanto que no Genesis é Cherub (Querubim).

Os hebreus tomaram igualmente, dos persas, durante o seu cativeiro nas margens do Tigre e do Eufrates, a ideia da imortalidade da alma e da vida futura, e, consequentemente, a mitologia dos anjos e demónios. Os próprios nomes dos anjos (dividido em 7 ordens como as 7 órbitas dos planetas), - Gabriel, Miguel, Rafael, Querubins, Serafins, Tronos (Ofanins) e Dominações - foram copiados das religiões persa e caldaica.

Mesmo Asmodeu, que no Antigo Testamento foi causa de perturbações histéricas em mulheres (Tobias, III,8; VI,14) foi copiado do Aeshmodaeva persa, o deus da concupiscência. O Paraíso e o Inferno provêm dos mitológicos orientais. Paraíso, em persa, significa jardim. O Paraíso e o Inferno, já figuravam na mitologia dos hindus, persas, egípcios, gregos (Elísio), romanos (Tártaro), gauleses e escandinavos. Mas esses povos não conheceram a eternidade das penas. Isso estava reservado para ser proclamado pelo manso cordeiro de Nazaré.

O legislador da Bíblia é, enfim, um copista fiel das antigas mitologias.

Quer dizer que a criação, a queda de Adão, o próprio decálogo, o dilúvio, a semana de sete dias o descanso dominical, o próprio descanso de sábado e um grande número de prescrições rituais, morais e penais foram para o Antigo Testamento depois da civilização caldaica.

O decálogo de Moisés foi copiado de uma recopilação do rei Hamurabi, oito séculos anterior a Moisés. Na tábua recentemente descoberta em Susa, pelo sábio assiriólogo Morgan, o rei Hamurabi esta representado no ato de receber das mãos de Deus (o deus Sol) um livro das leis, cena que prova que a de Moisés no Sinai é uma cópia.

CAPÍTULO III ORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES 

O Sol é o manancial da vida do Universo; a sua luz é a fonte de toda a beleza o movimento que origina é a causa de todo o bem. Ele e só ele é o verdadeiro, o Belo, e o Bom: é uno e trino. A primeira adoração da Humanidade dirige-se ao ministro máximo da Natureza, ao distribuidor de todo o bem, à luz incriada e eterna, à força fecundante do universo. Do Sol deriva a primitiva ideia de Deus. As próprias investigações dos orientalistas estabeleceram que até mesmo a etimologia da palavra Deus procede de um atributo do Sol, de Devv e da raiz divv, que em sânscrito significa, precisamente, o luminoso. Da raiz divv se derivam quase todos os nomes da suprema divindade dos povos europeus: desde o theos dos gregos ao disvas dos lituanos, do deus latino ao dia irlandês, até ao dieu dos franceses, ao dio italiano, ao dios dos espanhóis, etc

A ideia de Deus é, pois, originária do simples conceito do Sol, este corpo luminoso que tão grande influência exerce na vida do homem e de toda a natureza.

Daí o mito de Perseu, que faz baixar o fogo do céu à terra; o de Prometeu, que o rouba do céu para salvação da Humanidade, sendo por isso condenado a permanecer no Cáucaso com os braços em cruz, e sobretudo, o mito hindu da Trindade primitiva de Savistri, Agni e Vayu, que indica claramente a sua origem, isto é: o Sol, o Fogo e o Ar.

No rito védico, celebrava-se todos os anos o nascimento de Agni, no solstício do inverno, (25 de Dezembro) isto é, na época que coincide com o renascimento anual do Sol.

Há os sacerdotes que sobre o altar derramam um licor sagrado, o espirituoso soma. Há a unção e Agni toma o nome de Unto (em grego Crisnos, Cristo). A oferta do pão e do vinho fazia-se ao fogo sagrado, sobre o altar. Agni é também o mediador da oferta, o sacrificador que a si próprio se oferece como vítima. Os sacerdotes e os fiéis recebiam, cada um, uma partícula da oferta (hóstia) e a comiam como um alimento onde estivera Agni, Esta antiga Trindade, composta do Sol (Savistri) o pai celeste; do Fogo (Agni) filho e encarnação do Sol, e do Espírito (Vayú) o sopro do ar, ficou como dogma fundamental das religiões de origem ariana.

No cristianismo, também o Cordeiro ocupou na cruz o lugar de Cristo durante seis séculos, até que o Concílio Quintesexto de Constantinopla (692 dC.) o mandou substituir pelo corpo de Cristo.(cânone-82).

Cristna, Mitra, Horus, Apollo, Adonis, como Cristo, todos nascem em 25 de dezembro e ressuscitam no equinócio da primavera. O Deus do dia foi, pois, personificado no Deus Criador, primeiro e Redentor depois, e submetido a todas as peripécias humanas. Que isto sucedera a respeito dos Deuses Redentores da antiguidade, não há a menor dúvida, porque a própria antiguidade o deixou escrito em caracteres claros e com palavras explícitas.

A teoria de Cristo foi, como a sua biografia, tirada inteiramente dos Vedas. É o Deus (o Sol), que oferece o seu único filho (o Fogo) para salvação dos homens. Cristo repete todas as circunstâncias dos outros Deuses Redentores que o precederam. Nem mais nem menos. Logo, estes Deuses Redentores, por confissão dos escritores pagãos, dos próprios padres da Igreja e dos primeiros escritores cristãos como Heródoto, Plutarco, Macróbio, Atanásio, Lactâncio e Julio Firmico, não representavam mais do que o Sol.

A Igreja conserva-nos ainda, no culto, várias provas de que Cristo é um mito solar. Por exemplo: a festa da Páscoa não cai nunca em dia certo, variando, segundo as circunstâncias e alternativas astronómicas, e isto não seria possível se Cristo fosse um personagem histórico, pois em tal caso seria fixo e incontestável o dia da sua morte.

CAPÍTULO I A MORAL CRISTÃ SEM CRISTO

Uma das glórias usurpadas pelo cristianismo é a de ter redimido a condição da mulher. É completamente falso. Eva, no Antigo Testamento é obra em segunda mão: foi tirada duma costela do homem. É ela que introduz o mal no mundo, e o Deus Judeu-cristão condena-a, por fim, a parir com dor e sujeita-a ao homem. (Gen. III 16).

Poderíamos intitular este capítulo, mistificação cristã, porque, tendo de provar que a moral cristã não é original no que tem de bom, forçoso será provarmos que é inferior, em muitos pontos, à das religiões orientais, que a precederam, inferior mesmo, sob este aspecto, ao judaísmo, e especialmente, inferior à civilização greco-romana. Comecemos pelas religiões orientais.

Confúcio, 500 anos antes, pregava já o preceito de não fazer aos outros o que não queremos que nos façam. Mêncio, outro filósofo chinês, repetia o mesmo preceito 300 anos antes de Cristo. A moral budista é imensamente superior à cristã, porque o amor do próximo pregado por esta não ultrapassa os confins do país nem as valas da seita. A moral budista tem ainda outra vantagem sobre a do pretendido Cristo: a de admitir a livre investigação da verdade, ao passo que, nos Evangelhos, em vão se procuraria uma palavra em favor da ciência.

É tempo de concluir. Vimos que a moral cristã se formou independentemente do pretendido Cristo e que já existia, no que tem de bom, antes do cristianismo. Isto é consolador para a Humanidade, pois demonstra que a moral humana não é monopólio de uma seita, mas obra da mesma Humanidade. E daqui pode concluir-se que ela é tão antiga quanto a Humanidade racional.

Na verdade, colocando a Bíblia, com a sua cosmologia errada e pueril, e seus muitos erros científicos como uma emanação da verdade divina, não é de estranhar que se repute infalível tudo o quanto nela é dito, mesmo no domínio científico, porque Deus não pode errar e portanto, a ciência não poderia avançar para além das Colunas de Hércules da Bíblia.

A liberdade de pensamento foi banida para plagas longínquas porque é inadmissível o debate de ideias numa igreja que se arvora depositária da verdade divina absoluta, preocupada apenas com o zelo religioso. Sabe-se quão funestos foram os efeitos que daí derivaram. Citamos como exemplo, a perseguição a Galileu, quando a mesma descoberta já havia sido anunciada na Grécia por Hiceta e Aristarco de Samos, (conforme Theophrastus) sem que eles tivessem sofrido qualquer tipo de constrangimento.

CAPÍTULO V - COMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO?

Já vimos que o culto cristão não é mais que uma amálgama de cerimônias tiradas dos cultos precedentes. Agora assistimos ao processo de integração deste culto, processo mediante o qual assimila as práticas e a própria divindade do paganismo romano, transformando-o e corrompendo-o.

As divindades do paganismo, que não foram declaradas infernais, como é costume e as religiões - que convertem em demónios os deuses das religiões contrárias - foram convertidas em santos cristãos. Os gregos celebravam festas em honra de Hermes (Mercúrio) e de Nícan (o Sol); estas festas passaram ao calendário católico, nas mesmas datas, com os nomes de S. Ermeto e S. Nicanor.

Baco era adorado sob o nome de Soter (Salvador) e Apolo com o de Efoibios. estas festas foram mantidas com os nomes de S. Sotero e S. Efebo ou Efésio. Festejavam Baco com a festa de Dionysios, a que se seguia outra em louvor de Demetrius; pois os dois nomes encontram-se na mesma data, no calendário cristão, com os de S. Dionísio e S. Demétrio.

A festa de Ceres, a loira (Flávia) é a de Santa Flávia; a festa da pudica Diana converteu-se em Santa Prudência; a do Palladium de Minerva veio a ser a festa de Santa Paládia. As Saturnais converteram-se em S. Saturnino; a festa de Afrodisia (Venus) corresponde a S. Afrodísio e Santa Afrodísia; o dia do signo da Virgem (15 de agosto), em que Astrêa aparece no céu, na dita constelação, converteu-se na Assunção da Virgem...

Portanto, se o cristianismo pôde triunfar e substituir o paganismo, foi somente mediante a perseguição, a farsa e a assimilação do culto pagão, favorecido por outro lado, pela desagregação do Império romano e pela invasão dos bárbaros. O cristianismo não foi apenas o herdeiro do império romano, de cuja decadência se aproveitou para se erguer sobre as suas ruínas, mas até contribuiu enormemente, mais que nenhuma outra causa, para produzir tal decadência.