quarta-feira, 28 de junho de 2023

Quando Você For Embora Me Leve

 


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar

Os Papa Mesadas


 Interessante como as coisas mudam. A Ritalina dava-se a velhos e a atletas, agora dá-se a crianças. Os outrora Papa Reformas, carros feios e que andavam na estrada só a estorvar são agora atraentes e os mais novos querem-nos. Passaram de Papa Reformas para Papa Mesadas.


domingo, 25 de junho de 2023

O Triângulo das Infidelidades


 Num dos últimos "O Amor é" discutiu-se um artigo publicado na revista Visão intitulado "Porque se escolhe certas pessoas e não outras na hora de ter um ‘caso’ e apeteceu-me tirar algumas notas com a minha parca experiência dessa figura geométrica que é o triângulo amoroso mas baseado também em em tudo que se vai passando à minha volta e nas minhas perceções. 

A pergunta para um milhão de euros é: afinal, porque é que as pessoas traem? Dá-se voltas e mais voltas e os especialistas tentam explicar porque é que, a partir de determinado momento as pessoas deixam de comer o feijão com arroz que tanto adoravam para, não raras vezes e a percentagem é muito alta, de irem petiscando outras coisas. Se calhar o problema é as pessoas serem omnívoras, não sei!

E este é um ponto básico para mim. O ser humano não é naturalmente monogâmico! As pessoas forçam-se a uma monogamia voluntária, tal como os padres forçam-se à abstinência sexual, com os resultados que conhecemos. A verdade é que a ciência descobriu que já nem arganazes são fieis! A ideia de um homem para uma mulher, a invenção do casamento, a monogamia, tudo isso são para mim evidentes construções sociais. 

E o mais curioso é que nem sequer conseguimos concordar inequivocamente sobre o que é traição. Se para uns (mais os homens) a coisa é muito simples e trair implica sempre envolvimento físico. Para outros (mais para as mulheres) o simples facto de desabafar mais com a colega do trabalho ou andar a conversar com alguém na net já é traição.

Em que ficamos então? De repente lembro-me do pecado e do que aprendi na catequese que, segundo a visão cristã podemos pecar por pensamentos, palavras, atos e omissões! Se pudermos trair por pensamentos, palavras, atos e omissões, então desculpem lá, mas andamos todos as trair permanentemente! Também o pecado foi uma construção social. Uma mulher bonita era pecado; um ruivo ou um esquerdino (como eu) era obra de Satanás. Tudo era pecado e tudo é pecado para a Igreja. A única coisa que certamente não é pecado é violar crianças, isso não, pois se fosse pecado, os padres que conhecem como ninguém os desígnios do Senhor não o fariam. 

Se calhar convém então cada casal definir o que é traição e escrever uma espécie de Constituição com as regras fundamentais da relação. E então se ambos concordarem assina-se o compromisso!

Volto à monogamia. Se o ser humano fosse realmente monogâmico não precisaria de ir jurar (falso) ao altar ou assinar um papel em como ficará com aquela pessoa para o resto da vida, na sua e na doença. Se o ser humano fosse realmente monogâmico teria um parceiro para o resto da vida e nunca o trairia. 

A Inês Menezes perguntou ao Júlio Machado Vaz porque procuramos uma pessoa para ter um caso. E eu acho que muitas vezes nem sequer se procura. Muitas vezes simplesmente acontece.

Já agora fazer uma declaração de interesses: eu nunca traí. Pelo menos fisicamente não! Ou pelo menos com outro ser humano não! Sim, porque ainda me lembro de ouvir um "as tuas árvores deveriam morrer". Talvez ela se sentisse traída por causa da atenção que eu dava às minhas árvores. 

Não sei se é a sua comédia romântica preferida mas o Júlio Machado Vaz menciona muitas vezes Nothing Hill, tal como menciona Meg Ryan. Já eu menciono muitas vezes Before Sunrise que não é propriamente uma comédia romântica. (e talvez devesse também mencionar mais vezes Eternal Sunshine of the Spotless Mind que de facto é um tremendo filme).

Jason e Celine, protagonistas de Before Sunrise (Antes do Amanhecer) são dois desconhecidos em viagem que se encontram num comboio e creio que eram os dois comprometidos, e se não neste primeiro, mais à frente eram seguramente. E passam o primeiro dia e noite juntos, até ele apanhar o avião para os Estados Unidos...

Eu acho é que há pessoas que intrinsecamente não podem ver um rabo de saia ou um chumaço nas calças. Está-lhes no sangue e podem gostar muito da pessoa com quem estão mas vão andar sempre a pular a cerca. Terão sempre esse comportamento. Tal como há pessoas violentas e agressivas. E quem chega de novo ilude-se e acha que consigo será diferente. Mas não. Será sempre igual. E as traições suceder-se-ão.

E depois há quem, quer esteja numa relação mais ou menos estável ou numa relação mais conturbada e as coisas simplesmente propiciam-se. Muitas vezes nem é preciso andar à procura de nada para as coisas acontecerem. Porque não vivemos isolados do mundo. Não é preciso decidir registar-se no Tinder ou noutra coisa qualquer de engates para as coisas acontecerem. Nós não vivemos isolados. 

E, se é verdade que a tecnologia pode facilitar (ainda que as redes agora se tenham tornado verdadeiramente antissociais) há sempre o emprego, e todas as outras coisas que se fazem e onde se podem conhecer outras pessoas. E as coisas do nada podem acontecer. Empatia com alguém no trabalho, e refiro trabalho porque sempre achei que é um terreno fértil, mais até que a internet, para as facadinhas aconteçam. Porque as pessoas estão mesmo lá, não estão noutra cidade e a trocar mensagens pela internet. Por alguma coisa os moteis à hora de almoço estão cheios. Por alguma coisa eu mesmo fui substituído por um colega de trabalho.  

No "O Amor é" o professor lembra a vida dos médicos (ele é médico) e até dos enfermeiros. Mas ò professor, não são só os médicos que fazem noite! ou que se sentem próximo do colega de trabalho! Isso é geral! Eu nem imagino o que se passa nas fábricas! Tenho um colega de trabalho que já trabalhou numa e diz-me que aquilo era um grande regabofe!

“É duro de dizer e duro de ouvir, mas os terceiros são muitas vezes usados com muito pouca consideração genuína.”

Mas se é verdade que foi o vértice dum triângulo que rompeu a relação mais longa que tive, é bom não esquecer que eu já tinha sido sido o vértice do triângulo que a tinha levado a terminar a relação que tinha para depois começar comigo. E entre nós nunca se passou nada de íntimo. Bom, excetuando um abraço... Vários abraços marcaram a minha vida. Uns mais suaves, mais intensos ou de partir duas costelas!

Mas no fundo ela replicou o mesmo comportamento oito anos depois. O karma é fodido ou então não, é só, como dizia acima, as pessoas a replicarem quase sempre os mesmos comportamentos. E ela terminou uma relação para começar outra, e isso também demostra integridade (ainda que eu tenha outro tipo de sentimento, bem mais negativo, em relação ao que se passou). 

Depois disso, e por mais do que uma vez, acabei sendo ombro amigo, umas vezes mais virtual outras mais próximo de alguém que tinha uma relação. Aconteceu das mais variadas formas mas sempre pela internet, "porque a tecnologia o permite" mas nunca porque, voluntariamente, me quis envolver, fosse lá da maneira que fosse, com alguém que estava numa relação. 

Simplesmente aconteceu. De uma vez deixaram-me aproximar demasiado, ocultando a informação que havia outra pessoa lá em casa. Por outra vez eu fui o confidente, o conselheiro... houve um afastamento para coisa de um ano depois, voltarmos a falar e, de repente, estávamos a passar horas ao telefone (a telefonar! e convém esclarecer porque agora para esta malta mais nova falar ao telefone parece que é um bicho de sete cabeças!)... E por último simplesmente aconteceu e saímos um pouco chamuscados emocionalmente e decidimos, ou ela decidiu e eu aceitei, que o melhor seria um afastamento...

Nenhum dos dois se quis envolver. "Sabe, queria esclarecer, eu tenho namorado e amo-o muito". Ela foi extremamente correta e nunca escondeu nada. E eu acho que também fui... "Ainda bem que tem namorado, porque eu também não me sinto nada disponível..." porque vinha eu de um curto mas intenso enamoramento... Se no fundo se calhar talvez nos estivéssemos a querer enganar, não sei. 

Há o vício da descoberta do outro. Mais ainda quando nem sequer se conhece fisicamente o outro. Presta-se atenção a outros detalhes... A empatia vai crescendo e ela vai tornando-se parte das nossas rotinas, das nossas preocupações. E, pé ante pé, as coisas vão evoluindo, tomam proporções desmedidas e um dia damos por nós deitados numa mesma mantinha de um parque público, tão próximos que os lábios estão quase a tocar-se E eles querem tanto tocar-se mas não podem...  

Que cada casal faça as suas regras e que saiba aquilo que quer. E que tente ser feliz à sua maneira. Porque se não é fácil encontrar e gostar de alguém que também goste igualmente de nós, pode também não ser fácil estar com aquela pessoa de quem se gosta. Por vezes "não basta gostar". As diferenças, os ajustes e as cedências, as rotinas. E o sentimento de posse, o medo de perder, o ciúme... e também porque os casais não vivem numa bolha, isolados do mundo e, quando menos se espera, pode-se entrar num perigoso triângulo das infidelidades. 

domingo, 18 de junho de 2023

It's You That I Adore

 


Recordo de vez em quando o percurso que fazia todos os dias quando tinha quinze anos, da rua Barão de São Cosme até à Praça da Liberdade para apanhar o 3 para a Fontes Pereira de Melo. Todos os dias a mesma rotina, cruzando-me todos os dias pelas mesmas pessoas. 

De carro não é tão fácil rever quem passa. Se a pé cruzamo-nos mais à frente ou mais atrás com aquela pessoa, de carro é um instante mais fugaz, e os carros são todos mais ou menos iguais, mas, ainda assim há sempre este ou aquele detalhe que retemos. 

É o caso deste Peugeot AD00RA que passou por mim na sexta-feira em plena VCI!

sábado, 10 de junho de 2023

Como é Linda a Puta da Liberdade de Expressão


 Hoje em Espanha foi notícia que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou o Estado espanhol porque um tribunal condenou um sindicalista a uma multa de 1260€ porque disse que se "deveria queimar a puta da bandeira".

É extremamente interessante ter conhecimento disto hoje, dia 10 de junho, feriado de Camões e dia de Portugal e das comunidades e do dia em que o Alcino Monteiro foi assassinado por um bando de nazis de extrema-direita em pleno Bairro Alto, e é interessante porque há não tantos anos assim, era o senhor Cavaco Silva, aquele sujeito que com 15 mil € não conseguia viver e que não sabia quantos cantos tinha os Lusíadas e, precisamente num 10 de junho, um senhor disse-lhe "vai trabalhar mas é" e o tribunal português, porque "o respeitinho é muito lindo", aplicou-lhe uma multa de 1300€!

Não é linda a puta da liberdade de expressão?

As "Pessoas de Bem" da Extrema-Direita


Boris Johnson, Donald Trump, Jair Bolsonaro, André Ventura. 
O que têm em comum todas estas pessoas de países tão diferentes como Reino Unido, USA, Brasil e Portugal? São todos pessoas de bem! São todos religiosos e tementes a Deus , todos conservadores e defensores da moral e dos bons costumes e politicamente todos da extrema-direita populista. Resumindo, todos a mesma escumalha! 

Numa só semana, alguns até no mesmo dia, foram todos acusados de crimes, coisinhas menores como planear golpes de Estado, falsificação, mentir ao parlamento, apropriação de documentos classificados e ódio e perseguição a jornalistas! 

A extrema-direita populista é isto: corrupção, ódio, violência, mentira, perseguição. Deve ser isto que significa "pessoas de bem", expressão que anda sempre na boca deles. 


sexta-feira, 9 de junho de 2023

O Que é Ser de Esquerda?

Edgar Morin, 101 anos, um dos últimos grandes pensadores do século XX numa interessantíssima entrevista ao El País a 23 de Abril.




"Edgar Morin é um homem com uma missão. Uma missão inacabada, inadiável, inevitável: transmitir suas ideias, compartilhar seus conhecimentos, oferecer o legado mais rico possível. A produção intelectual o mantém lúcido e alerta aos 101 anos. Isso alimenta-o. Isso preserva-o: ele vê-se "possuído" diante do computador toda vez que se depara com um livro ou artigo. No seu livro Lessons from a Century of Life, ele confessa que foi um péssimo filho e um péssimo pai. Não é um mau marido, diz. Não é um mau pensador, é o sobrevivente de uma espécie em extinção: a dos grandes intelectuais do século XX. É autor de mais de 20 livros (além de outros pequenos, entrevistas, etc.) e na França acaba de publicar De guerre en guerre: de 1940 à l'Ukraine, um ensaio dissidente, “dissidente”, como ele mesmo diz, alheio à corrente de pensamento que domina a mídia clássica ocidental, no qual faz um claro apelo à paz na guerra que abalou o mundo desde fevereiro de 2022. Em junho, planeia publicar outro trabalho, Encore un peu (ainda um pouco mais). E em setembro, para não baixar a guarda, mais um, co-escrito com a mulher que o sustenta e lhe dá vida, Sabah Abouessalam, socióloga marroquina de quem é próximo desde que se conheceram numa conferência em 2009. 

Um intelectual de referência para a esquerda francesa, inspirador (junto com Stéphane Hessel) para aqueles jovens que saíram às ruas do mundo no ano de 15 de Março, este descendente de judeus sefarditas espanhóis (nascido como Edgar Nahoum) é um humanista que sempre gostou de intervir no debate público. No entanto, no campo do pensamento, é reconhecido pela publicação entre 1977 e 2004 dos seis volumes de El método, onde desenvolve as chaves do pensamento complexo, uma metodologia de reflexão multidisciplinar e panorâmica, alheia a gavetas estanques. num dos seus recantos preferidos de Marrakech (ele vive a meio caminho entre Paris, Montpellier - sul da França - e a cidade marroquina), no Es Saadi Palace, um pomar de pássaros e palmeiras transformado em hotel: o ar condicionado avariou na casa dele e você não pode ficar, o calor enfraquece as suas forças. O peso nos ombros dos 101 anos vividos desaparece repentinamente assim que o gravador é ligado. Ele começa a falar e brilha. O ímpeto quebra-se na voz, meio entrecortado, e as mãos começam a acompanhar as inflexões das suas palavras. 

Você inicia o seu novo livro evocando os primeiros bombardeamentos da Luftwaffe que aniquilaram Roterdão em maio de 1940. Você foi designado para o Estado-Maior do Primeiro Exército comandado por Lattre de Tassigny. É o facto de ter vivido o horror da guerra que o levou a escrever mais um livro, com mais de 100 anos?

 As imagens da guerra na Ucrânia, os prédios destruídos, os cadáveres de civis... Tudo isso lembrou-me as guerras que vivi e em particular a Segunda Guerra Mundial. Eu vi cidades como Hamburgo, como Mannheim, completamente destruídas.

Você diz que qualquer guerra em nome do bem na verdade envolve o mal. Isso acontece na Ucrânia?

Sim, mas a um nível muito menos massivo. Embora a Rússia de Putin seja culpada de ter atacado e até tentado anexar a Ucrânia, há crimes de guerra que podem ter sido cometidos por ambos os lados, há propaganda de guerra de ambos os lados. A guerra favorece a mentira, a informação falsa, esconder o que é negativo para o seu lado... Queria que os nossos contemporâneos soubessem disso. Tanto mais que na França, por exemplo, houve uma espécie de beatificação da Ucrânia, ao mesmo tempo em que intenções diabólicas foram atribuídas a Putin.

As intenções de Putin não são diabólicas? 

O que há de diabólico em Putin, acima de tudo, é sua repressão interna aos seus opositores e a ditadura que mantém na Rússia. Você está no meio de uma guerra, que evidentemente tem aspectos criminosos. Mas somos informados das ações dos russos pelos ucranianos. Há uma névoa de informação.

No seu livro, ele faz um apelo claro pela paz. Mas a paz significa fazer concessões a um invasor, a Putin.

Quando as forças dos dois adversários são iguais, podem ser alcançados acordos de compromisso. A Crimeia, em 2014, tinha 1.400.000 russos, 500.000 ucranianos e 400.000 tártaros no censo. Dada a história e a demografia, um acordo pode encontrado nessa área. Não está claro por que a Ucrânia está pedindo o monopólio da Crimeia, um compromisso pode ser buscado. Donbas é uma região extremamente rica em minerais que começou a ser industrializada pela Rússia czarista no final do século XIX. E foi a URSS de Stálin que a hiperindustrializou, grande parte dos engenheiros e operários são de origem russa. Pode-se levantar a questão de que a riqueza de Donbass foi explorada em comum.

Esses tipos de concessões devem ser feitos? 

Poderia ser uma solução de compromisso para obter a soberania da Ucrânia, sua adesão à União Europeia e sua neutralidade militar. Não podemos esquecer que os americanos tiveram um papel fundamental em toda a cronologia que conduziu à guerra, com o alargamento da NATO. Há um novo imperialismo russo de caráter pan-eslavo. Mas há também um imperialismo estadunidense que está presente de forma política, económica e militar. A Ucrânia, na sua busca por independência e soberania, é palco de um conflito entre dois imperialismos. Com este livro, eu sabia que não estava no mainstream, sei muito bem que sou dissidente nas circunstâncias atuais. E, no entanto, eu estava em perigo, em perigo de ser atacado. Você sabe, na França, qualquer um que discorde é imediatamente rotulado de Putinista… 


Você está preocupado? 

Não gosto disso. Mas meu dever é dizer o que penso ser útil. Estamos em uma época em que o pensamento maniqueísta e as alternativas simplistas se disfarçam de conhecimento ou pensamento. E nas condições atuais, é cada vez mais difícil defender uma visão complexa das coisas.

Mudando de assunto, você diz que é o herdeiro de Montaigne e Spinoza.R. 

Sim, porque Montaigne aconselhava a prática da dúvida e do autoconhecimento. Ele tinha um espírito muito humano. Ele disse: "Todo homem é meu compatriota." Ele é o primeiro anticolonial. E Spinoza fez a grande revolução no pensamento moderno ao acabar com a ideia de um Deus superior e externo ao mundo que é seu criador e dono. Ele deu soberania criativa à natureza.

Permita-me uma pergunta, senhor. Morin: o que o senhor faz para manter tão bem suas faculdades intelectuais aos 101 anos? 

Eu persevero em meu ser, como diria Spinoza. A idade afeta-me, ando pior do que antes, tenho vários problemas físicos, mas felizmente mentalmente continuo o mesmo. Guardo toda a minha curiosidade, meu interesse pelo futuro da humanidade.

E como você vê esse futuro? 

Não acredito que estejamos caminhando para um amanhã brilhante. O futuro é sombrio. Sei que muitas vezes o inesperado acontece na história, estou atento e vigilante. Mas estou muito preocupado com o futuro da humanidade. 

No seu livro Lessons from a Century of Life, você diz que é essencial ter uma vida poética. 

Você não pode viver poeticamente o tempo todo. A vida é uma luta entre a prosa e a poesia. A prosa é a coisa chata, a coisa que você tem que aguentar. A poesia é esse estado de encantamento, de comunhão, de gozo, aquele que dá amor ao outro, amizade coletiva, obra de arte... Cada um de nós deve procurar cultivar a parte poética da vida porque isso é viver. O outro é apenas sobrevivência.

O que mais o surpreende no modo de vida contemporâneo? 

Nas grandes cidades, acima de tudo, o anonimato. Vivi na minha juventude uma época em que os vizinhos não só conversavam, mas se ajudavam, você conversava com a pessoa do balcão... Hoje assistimos à destruição da convivência. Algo permanece, com os amigos, com a família. Para além do anonimato, há a robotização da vida, as obrigações cada vez mais rigorosas no trabalho... Tudo isto leva a uma degradação da civilização, da civilidade e das relações humanas. 

Você costumava dizer que em nossas sociedades está ocorrendo uma metástase do ego. 

O individualismo moderno desenvolveu aspectos positivos, como a conquista da autonomia. Mas também negativos, como a predominância de si mesmo sobre os outros. O ser humano é, por um lado, egocêntrico: deve defender-se, alimentar-se e pensar em si; mas também é aberto aos outros, é comunitário, há amor... O egocentrismo deve ser reduzido ao mínimo vital de conservação. Fraternidade é algo fundamental.

Você disse numa entrevista a Nuccio Ordine: "O desenvolvimento económico capitalista desencadeou os grandes problemas de nosso planeta". É assim? 

A hegemonia do lucro está a manifestar-se em todo o mundo e está a levar à degradação ecológica do planeta. Temos que resistir, tentar viver num oásis de fraternidade e convivência, porque neste momento não há força política capaz de criar uma nova política de civilização, um caminho. 

Neste ponto da sua vida, como você se define politicamente? 

Eu defino-me como um homem de esquerda. Mas desde minha ruptura com o comunismo em 1951, sou independente de qualquer partido e quero continuar assim. Estar à esquerda significa tomar elementos de três fontes principais, e de uma quarta: do anarquismo, o indivíduo livre; do socialismo, uma sociedade melhor; do comunismo, uma irmandade humana. Essas três noções foram separadas e opostas, e para mim essas três noções devem estar associadas. A quarta é a relação com a natureza que a ecologia nos ensina. 

E como a esquerda deve posicionar-se diante desse desenvolvimento económico capitalista? 

Devemos reverter a hegemonia do lucro em todas as áreas onde for possível. Na agricultura, deixar progressivamente o industrialização para ir para o ecológico. Devemos recuperar o sentido da solidariedade. O neoliberalismo económico tende a destruir os serviços públicos, devemos infundir-lhes vitalidade. As reformas são necessárias para transformar gradualmente a sociedade porque, na minha opinião, a revolução não é possível; pelo menos, como existiu, foi mais destrutivo do que construtivo, estou a pensar na União Soviética ou na China. Esta é uma missão coletiva progressista e, no momento, não há força política capaz de promovê-la. 

Não consegue encontrar uma força de esquerda em qualquer país que seja interessante para si? 

Houve tentativas, mas não duraram muito e fracassaram, como o Equador do presidente Correa; no Chile houve um impulso, mas não acabou; no Brasil, teve elementos positivos, mas não deu certo. O planeta vive um processo de regressão política generalizada: crise da democracia, regimes de fachada democrática e neoautoritários que se multiplicam... Não é só o caso da Rússia, Turquia ou Hungria. Na Europa existem outros países ameaçados, como a França.

Você vê a França ameaçada? 

Regressão económica, desigualdades crescentes, poder dos super-ricos, uma elite muito pequena enquanto o resto do mundo empobrece... Estamos em uma ladeira perigosa.

E como acha que a luta contra Macron nas ruas e o aumento da idade de reforma na França influenciaram tudo isso? 

Acho que o movimento que vai beneficiar com tudo isso será o Rally Nacional de Marine Le Pen, que está parado. Com a desintegração da direita clássica, a crise do macronismo, que era uma espécie de centrismo, e a crise da esquerda, corre-se o risco de que nas próximas eleições o Reagrupamento Nacional chegue legalmente ao poder e estabeleça um neo poder autoritário. 

Numa entrevista que deu durante a pandemia, disse: “Na minha idade, a morte está sempre à espreita. Portanto, é melhor pensar na vida e no que está acontecer. A morte é tabu na nossa sociedade, mas também é tabu aos 101 anos?

Acho que esse tabu enfraqueceu um pouco. Quando escrevi O Homem e a Morte, em 1951, era um assunto que parecia obsceno. Mas é verdade que quando se passa dos 100 anos chega-se a uma terra pouco conhecida e habitada, não há muitos centenários. É evidente que a proximidade da morte é permanente. É algo que pode me acontecer a qualquer noite, não se sabe. Enquanto sou possuído pelas forças da vida, da participação, da curiosidade e da ação, o espectro da morte se afasta. Mas devo dizer que há momentos de vazio em que, abruptamente, ela me aparece. E eu digo a mim mesmo: é isso? É o destino, não só de todos os seres vivos, mas de tudo no mundo: até as estrelas morrem. Às vezes, é claro, a ideia de eu desaparecer dá-me uma sensação de vazio; Eu sinto a presença de nada. Mas não sou obcecado, são momentos. Estou muito mais focado nas forças da vida que continuam a animar-me.” 

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Macron Não "Houve" Ninguém

Entrevista no Diário de Notícias ao escritor franco-marroquino Tahar Ben Jelloun.

De repente deparo-me com esta atrocidade:

"A França passa por um mau momento. Por um lado, há um chefe de Estado que não houve ninguém e é arrogante, e isso é muito mau".

Vamos acreditar que foi só a inteligência artificial, e que sendo artificial não sabe distinguir o verbo ouvir do verbo haver



quarta-feira, 7 de junho de 2023

ChatGPT - Risco de Extinção da Humanidade

Tenho lido dezenas de artigos de opinião sobre a Inteligência Artificial, quer artigos nacionais quer estrangeiros. Já ouvi também um ou outro programa sobre o assunto. Até fui rever o filme I.A. do Spielberg. Mas esta reportagem "A Próxima Palavra" de Isabel Meira na Antena 1 acho que é obrigatório ouvir.



"Agora poderia perguntar ao Chat GPT como fazer uma reportagem sobre o Chat GPT. Mas não o vou fazer.

"Quantas mais palavras conhecemos mais somos capazes de dizer o que pensamos e o que sentimos" (Saramago)

O silêncio quase absoluto aconteceu na vida de Catarina durante dez dias. 
"Quando a pessoa fica sem nada, ou seja, fico só eu comigo própria, sem qualquer outro estímulo. Catarina tem 26 anos, acaba de regressar de um retiro de silêncio em Espanha. 
"Uma pessoa entrega o telemóvel, não pode ler, não pode falar com os outros. São dez dias de meditação em silêncio, não é aceite sequer trazer cadernos para escrever. A pessoa tem que acordar às 4, 4 e meia começa a primeira meditação, depois duas horas de meditação e pequeno-almoço, um bocadinho de descanço, três horas de meditação, almoço, quatro horas de meditação lanche, não tínhamos jantar, eram duas peças de fruta, mais três horas dormimos. Esta rotina tem que ser mantida. Foi muito duro. 

Escolho falar sobre o silêncio e penso: "porquê falar do silêncio numa reportagem sobre o Chat GPT? A rádio não lida bem com o silêncio. O Chat GPT nunca fica em silêncio. Qual é o lugar do silêncio na vida?

Pequeno-almoço, almoço, jantar. Estava sempre com um livro ou um filme. Não podia estar comigo própria com os meus pensamentos no silêncio. Não para mim não existia. Tinha de ocupar a minha mente sempre com informação. Precisava de estar constantemente a consumir este tipo de informação.

O Chat GPT em particular foi treinado para uma coisa muito simples, que é prever a próxima palavra numa sequência de palavras. 

O que é que é diferente nestes modelos de linguagem? Eles foram treinados com grandes volumes de dados, quase com a internet toda, não é exatamente coma  internet toda mas com grande parte. Só para ter uma ideia o ChatGPT foi treinado com dados que, se um de nós fosse a ler durante 24 horas por dia demoraria cerca de 5 mil anos a ler. 

Esta noção da abrangência não é consensual. A investigadora Joana Gonçalves de Sá, um dos nomes mais destacados no estudo sobre enviesamentos e desinformação fala sobre desertos de dados e desconstrói a ideia de que o mundo está todo representado na internet. 

"Por exemplo, quando se diz "toda a internet" uma pessoa pensa logo em todas as redes sociais. Não é verdade. Tem uma grande preponderância duma rede social em particular, que se chama Reddit que se sabe que tem uma muito maior participação de jovens dos Estados Unidos. Portanto há uma grande sub representação da forma como pensam e falam e agem, esses jovens que estão nessa rede social. Que é uma minoria da população. Porque a internet também é enviesada e porque os sítios da internet escolhidos para treinar o modelo muitas vezes só porque os dados são disponíveis também são enviesados, estes modelos são naturalmente enviesados. Estes vão transmitir uma cultura particular, uma ideia particular, valores particulares e é muito mais fácil pensarmos que, se toda a gente está a usar esta ferramenta vai haver uma uniformização do tipo de informação a que eu tenho acesso e até quase do tipo de estrutura de pensamento e de comunicação a que eu posso chegar

A partir do momento que nós criamos um modelo de linguagem que fala como nós que faz o discurso estruturado que até pode usar vocabulário ou mais académico ou mais cuidado ao que nós tipicamente vemos na discussão do café, ainda mais credibilidade pode ter a informação que lá está. E existe muitas vezes a ideia que é muito difícil de combater que as coisas que são mais intuitivas ou que parece que fazem sentido, que é lógico, são erradas. Mas é fácil usar esse tipo de enviesamento de nós pensarmos "ah faz sentido" ou é provável para nós acharmos que é real. O que estes modelos de linguagem é provável. Portanto nós com facilidade podemos pensar que é real

E agora com o ChatGPT, escrevemos mais ou menos?
O filósofo e linguista norte-americano Noam Chomsky tem sido uma das vozes mais críticas considerando, numa das muitas entrevistas em que falou sobre o tema, que o ChatGPT serve apenas para evitar aprender e é basicamente uma forma de plágio de alta tecnologia

No senado norte-americano o presidente executivo da Open Ai foi questionado sobre o impacto do ChatGPT no mercado de trabalho. Aconteceu em todas as revoluções tecnológicas, normalizou-se diz Altman. O argumento é: muitas tarefas vão ser automatizadas com ganhos para os seres humanos. É uma espécie de mantra que tem acompanhado o norte-americano de 38 anos em digressão mundial. Sam Altman diz-se otimista mas pede aos governos que avancem com a regulação. Admite, por exemplo, que os modelos podem ser usados para manipular resultados eleitorais. O maior receio, diz, é que as tecnológicas causem um dano significativo ao mundo

Quatro meses depois de ter lançado o ChatGPT a Open IA apresentou o GPT4 e fez outra coisa para mostrar que já é tão bom ou melhor que os humanos em algumas profissões: passou o exame de admissão à Ordem dos Advogados norte-americana. 

A grande maioria destas revoluções que nós estamos a viver na era digital estão a ser lideradas por empresas privadas quase sem controlo nenhum dos Estados. 

Eu acho que é a primeira vez da era moderna em que nós estamos a desresponsabilizar-nos, nós cientistas e nós os Estados de ser atores muito participativos muito ativos em algo que é uma revolução científica e tecnológica. Portanto, estas empresas estão a conseguir fazer isto porque podem porque têm financiamento para ter acesso a estes dados, para ter capacidade computacional para os fazer e, eventualmente, até para toda a parte da curadoria humana. O ChapGPT depois tem humanos a corrigir não é? E eu não conheço centro de investigação nenhum que tenha este tipo de recursos. 

Para ilustrar o impacto que o fenómeno ChatGPT pode ter na sociedade a investigadora faz uma comparação simples: Nós lançarmos produtos destes para o mercado sem estarem regulados é quase como nós lançarmos medicamentos sem os testarmos antes. 

Eu tenho dado muitas vezes o exemplo da revolução industrial. Entre a descoberta da máquina a vapor e a primeira legislação a limitar o trabalho infantil nas fábricas passaram 70 anos. E esta primeira legislação ainda dizia coisas do tipo "crianças de 9 anos não devem trabalhar mais de 12 horas por dia. Coisas que para a nossa sensibilidade de agora são chocantes. E eu acho que quase sempre que aparece uma destas tecnologias e uma revolução tão grande nós temos um período que eu vou chamar a "idade negra" do desenvolvimento dessa tecnologia. Nós vamos fazer todas as coisas que nos vamos arrepender agora. E estamos a fazê-las muito rapidamente. Mas agora é a altura em que estamos a ter as crianças a morrer nas minas de carvão

Sam Altman avisa: se correr mal pode correr muito mal. E a tradução pode ser "risco de extinção da humanidade"

domingo, 4 de junho de 2023

No Princípio era o Amor

 No princípio era o amor

Veio depois o Império do Ter

auxiliado pela Religião e pelo Poder 

O Amor viu-se vilmente escorraçado 

e mais tarde sacrilegamente crucificado

Da Morte ergueu-se vigoroso

quando mais parecia destruído

No fim é também o Amor 

Agora é ainda o Tempo

a luta de classes 

onde o Amor progride

sempre que é escorraçado 

por Homens da Religião e do Poder 

estupidamente ao serviço do Império do Ter

Pelo Amor assim maltratado 

Jamais hei-de chorar 

mas por quem assim o maltrata 

soluço dia e noite inconsolável

(Mário de Oliveira / Janeiro 1980)



- "Tornei-me, um dia - disse, a dada altura, Judite - propriedade e proprietária de um homem mediante um contrato de casamento. Como quase todos os jovens, educados nesta e por esta sociedade informada pelo capitalismo e pela Cristandade que ideologicamente a aguenta e justifica, também eu confundi Amor entre homem e mulher com posse de um pelo outro. Possuí e deixei-me possuir. E, com isso, reconheço, hoje, à luz do que este acontecimento nos vem inundando que, afinal, matei o Amor, no momento em que convictamente o afirmava. Dez anos somo já, em que fui propriedade privada de um homem em nome do Amor que é, de sua natureza, dom gratuito. Vivi para a casa, para o marido e para os filhos que nos nasceram. Como o capitalista explorador vive para a fábrica, para os negócios e para o lucro".  

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Devíamos Experimentar Viver em Democracia. Funcionaria!

Quem me vai lendo por aqui sabe que digo constantemente que não vivemos em democracia. Vivemos sim numa ditadura das maiorias e da manipulação dos media. Chamem-lhe o que quiserem mas isto que temos não é democracia nenhuma. 

A seguinte entrevista que achei muito interessante saiu no El País no dia 21 de Maio: 


 A filósofa francesa Barbara Stiegler (52 anos) é uma revolucionária. Acredita que estamos mergulhados no neoliberalismo, que somos incapazes de ver o mundo sem esses óculos, e tem alguma esperança nos movimentos sociais que recentemente abalaram seu país. Professora de Filosofia Política na Universidade de Bordeaux Montaigne, ela estruturou o seu pensamento em torno dessa corrente e de Nietzsche, além de ser uma participante ativa no debate público francês. Como ativista, juntou-se aos coletes amarelos e escreveu "Du cap aux grèves". 

Apaixonada pela Grécia, ela frequenta o Instituto Francês, onde participa do debate La Noche de las Ideas. Ele fala rápido, com fluência latina. Na sua conta no Twitter postou o poster de um manifestante: "Leurs yachts échoueront sur nos grèves" (vossos iates vão encalhar em nossas greves). 

Pode explicar o cartaz?

Gostei. Os iates são o símbolo da predação neoliberal do mundo, da sua obscenidade.

Diz que estamos todos imbuídos de neoliberalismo. E que os partidos de esquerda também estão lá enquanto acreditam que estão a lutar contra isso.

Isso mesmo. A esquerda tem tido dificuldade em perceber as diferentes formas que o neoliberalismo assume. Para os partidos socialistas franceses, ingleses, alemães..., implementar políticas públicas significava lutar contra o neoliberalismo. Não entendiam que muitas políticas públicas estatais eram perfeitamente neoliberais. Estamos todos impregnados da sua hegemonia.

Poderia dar um exemplo?

Vamos falar de igualdade de oportunidades. Os responsáveis pela educação de esquerda dirão que ela é muito importante. E, se os ouvir, entenderá que eles se referem à igualdade para competir. A ideia é que, na linha de partida, todas as crianças tenham tido oportunidades iguais. Os mais pobres receberão mais meios, os mais ricos menos, e isso garantirá a vitória dos melhores. Isso é um olhar neoliberal! Significa acreditar que a educação é a seleção dos melhores. Mas para mim é emancipação, formação coletiva e de si mesmo. É um bom modelo? Não acredito. E certamente não é da esquerda.
Quando começou a debater o que é o neoliberalismo?
Houve um debate teórico na década de 1930 nos Estados Unidos, após a crise de 1929. Os liberais afirmavam que o liberalismo deveria ser refundado num Estado forte. É então que o sistema educacional se adapta à globalização. A princípio era apenas uma corrente teórica que não governava. Mas pouco a pouco eles prosperaram e nas décadas de 1970 e 1980 chegaram ao poder em todos os lugares. A partir dos anos 2000 – com a crise climática, a Grande Recessão – os cidadãos começaram a mobilizar-se. Por uma brilhante coincidência coincidiu com a publicação do curso do filósofo Michel Foucault Nascimento da biopolítica, em 2004, no qual identificou o objeto neoliberal. E quando você identifica algo é quando você consegue se distanciar disso. Se você não é como um peixe na água, você não vê a água. Teve um grande impacto nas universidades de todo o mundo.

Em que consistiu aquele debate entre Lippmann e Dewey sobre o qual fala no seu livro que levou a esse erro que afirma ainda existir?

John Dewey, que tinha muita influência, queria que os EUA iniciassem uma democracia. Eu achava que o sistema que eles tinham não era muito democrático, era tudo muito hierarquizado. Ele acreditava que a ideia de democracia deveria ser estendida a todos os lugares: escolas, locais de trabalho… Ele foi o mais afamado filósofo americano da primeira metade do século XX. Quando ele conhece Lippmann, que também foi um cronista muito influente, eles se chocam. Lippmann critica o excesso de democracia e afirma que isso supõe fabricar as ideias do povo em escala industrial. Será Lippmann quem vencerá esse confronto, já que Dewey morreu durante a Segunda Guerra Mundial e acabará sendo varrido por outros pensadores. E é esse olhar neoliberal e antidemocrático é o que prevalece. Hoje, em todas as universidades, o pragmatismo de John Dewey e sua exigência de democracia estão a ser redescobertos. 

Vê esperança nisso?

Venho de um ambiente comunista ao qual não aderi plenamente. Eu vi Brezhnev e o resto, eles me pareciam pessoas horríveis. Por anos eu estava politicamente entediada. Os anos noventa foram cinzentos para mim. E a partir de 2000, com a crise ecológica aproximando-se e a busca por democracia, comecei a ver que algo estava a acontecer. Em 2005, quando a França rejeitou o projeto de Constituição Europeia, senti que vivíamos um momento de debate muito emocionante. O meu país tem se tornado cada vez mais autoritário e eu e muitos temos desejado mais democracia. Tenho uma relação complexa com o meu país: é muito autoritário e felizmente também muito revolucionário.

Afirma que estamos em um momento incomum.

É um momento extraordinário. Estamos a viver coisas que eu nunca vi como cidadã, há violações do estado de direito que eu nunca vi. Aos 51 anos, nunca tinha visto um Presidente da República fazer coisas tão sérias quanto proibir ir a manifestação com instrumento de som. Juristas e intelectuais estão muito preocupados com esse desvio. E isso por si só já é extraordinário, assim como a revolta que causou. As pessoas pedem mais democracia. Sabe o que é uma democracia? Isso não é tão claro.

E o que é uma democracia?

É o governo do povo pelo povo que os atenienses puseram em movimento. Nos nossos países o povo não governa, o povo vota nos governantes que deveriam ser mais capazes. E o povo, ao votar, delegar, dá poder aos eleitos. O povo não decide. Portanto, não conhecemos a democracia como tal. E o que as pessoas agora estão a pedir é democracia. Alguns querem mais estado de direito, outros um governo mais representativo e outros realmente querem uma democracia.

Está no último grupo.

Vamos começar uma democracia ao estilo de Atenas. Ainda não o experimentamos. Funcionaria.

Expressaríamos a nossa opinião sobre tudo o tempo todo?

Não, os atenienses encontraram maneiras de fazer isso. As pessoas foram chamadas por sorteio para debater em um morro chamado Pnyx que os turistas nem sabem que existe. Entre 6.000 e 10.000 atenienses representavam toda Atenas. Havia trabalhadores, gente simples, nem todos eram privilegiados. Era o povo, embora sem mulheres nem escravas, e decidia absolutamente tudo. Se eles votassem para ir à guerra, todos iriam lutar. Aqui, um homem decide, no máximo com um punhado de representantes, mas eles ficam em Paris. O governo do povo para o povo é um assunto muito sério. Poderíamo-nos governar assim perfeitamente.