sábado, 17 de maio de 2014

O que ando a ler II

O vazio

"Se eu ao menos pudesse sentir alguma coisa!": esta fórmula traduz o "novo" desespero que fere um número cada vez maior de sujeitos. Sobre este ponto, o acordo dos psi parece unânime, desde há vinte e cinco ou trinta anos, são as desordens de tipo narcísico que constituem a maior parte das perturbações psíquicas tratadas pelos terapeutas, enquanto as neuroses "clássicas" do século XIX, histerias, fobias, obsessões, a partir das quais a psicanálise, deitou corpo, já não representam a forma predominante dos sintomas. As perturbações narcísicas apresentam-se menos sob a forma de perturbações com sintomas nítidos e bem definidos do que sob a forma de "perturbações caracteriais", caracterizadas por um mal estar difuso e invasor, um sentimento de vazio interior e de absurdo da vida, uma incapacidade de sentir as coisas e os seres. Os sintomas neurológicos que correspondiam ao capitalismo autoritário e puritano deram lugar, sob impulsão da sociedade permissiva, a desordens narcísicas, informes e intermitentes. Os pacientes já não sofrem de sintomas fixos, mas de perturbações vagas e difusas; a patologia mental obedece à lei do tempo cuja tendência é para a redução da rigidez bem como para a diluição dos pontos de referência estáveis: à crispação neurótica substitui-se a flutuação narcísica. Impossibilidade de sentir, vazio emotivo, a dessubstancialização toca aqui o seu termo, revelando a verdade do processo narcísico como estratégia do vazio. 

Mais ainda: segundo Christopher Lasch seria a um desprendimento emocional que os indivíduos cada vez mais aspirariam, em razão dos riscos de instabilidade que as relações pessoais conhecem nos nossos dias. Ter relações interindividuais sem ligação profunda, não se sentir vulnerável, desenvolver a sua independência afetiva, viver sozinho, tal seria o perfil de Narciso. O medo de ser dececionado, o medo das paixões incontroladas, traduz ao nível subjetivo o que Chr. Lasch chama de the flight from feeling - "a fuga ao sentimento" -, processo que se manifesta tanto na proteção íntima como na separação, que todas as ideologias "progressistas" pretendem realizar, entre o sexo e o sentimento. Quando se prega o cool sex e as relações livres, quando se condenam o ciúme e a possessividade, trata-se do facto de climatizar o sexo, de o expurgar de toda a tensão emocional e de conseguir assim um estado de indiferença, de desprendimento, não só a fim de de o indivíduo se proteger contra as deceções amorosas, mas também contra os seus próprios impulsos, que podem sempre ameaçar o seu equilíbrio interior. A libertação sexual, o feminismo, a pornografia trabalham para um mesmo fim: erguer barreiras contra as emoções e manter afastadas as intensidades afetivas. Fim da cultura sentimental, fim do happy end, fim do melodrama e emergência de uma cultura cool onde cada um vive no seu bunker de indiferença, ao abrigo das suas paixões e das dos outros.


Certamente Chr. Lasch tem razão ao sublinhar o refluxo da moda "sentimental" uma vez que esta se mostra destronada pelo sexo, pela fruição, pela autonomia, pela violência espetacular. A sentimentalidade sofreu o mesmo destino que a morte; torna-se incómodo exibir os próprios afetos, declarar ardentemente o fogo íntimo, chorar, manifestar com demasiada ênfase os impulsos internos. Tal como a morte, a sentimentalidade tornou-se embaraçosa; é preciso ser-se digno em matéria de afeto, quer dizer: discreto. Mais longe de designar um processo anónimo de desumanização, o "sentimento interdito" é um efeito do processo de personalização, que trabalha aqui na erradicação dos signos rituais e ostentatórios do sentimento. O sentimento deve chegar ao seu estádio personalizado, eliminando os sintagmas inteiriçados, a teatralidade melodramática, o kitsch convencional. O pudor sentimental é exigido por um princípio de economia e de sobriedade, constitutivo do processo de personalização. Deste modo, é menos a fuga perante o sentimento que carateriza o nosso tempo do que a fuga perante os signos da sentimentalidade. Não é verdade que os indivíduos procurem um desprendimento emocional e se protejam contra a irrupção do sentimento; a esse inferno povoado de mónadas insensíveis e independentes, devemos opor os clubes de encontros, os "pequenos anúncios", a "rede", todos esses milhões e milhões de esperanças de encontros, de ligações, de amor, que precisamente se realizam com cada vez mais dificuldade. É aqui que o drama é mais profundo do que o pretenso desprendimento cool: homens e mulheres continuam a aspirar tanto como antes (ou talvez nunca tenha havido até tanta "procura" afetiva como nesta época de deserção generalizada) à intensidade emocional de relações privilegiadas, mas quanto mais forte é a expectativa mais raro parece tornar-se o milagre fusional, ou, em todo o caso, mais breve. Quanto mais a cidade desenvolve as possibilidades de encontros, mais sós se sentem os indivíduos; quanto mais livres e emancipadas das coações antigas as relações se tornam, mais rara se faz a possibilidade de conhecer uma relação intensa. Por toda a parte encontramos a solidão, o vazio, a dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si: de onde uma fuga para a frente de "experiências", que mais não faz do que traduzir esta busca de uma "experiência" emocional forte. Porque não posso amar e vibrar? Desolação de Narciso, demasiado bem programado na sua absorção em si próprio para poder ser afetado pelo Outro, para sair de si - e, no entanto, insuficientemente programado, pois que deseja um mundo relacional afetivo.

A Era do Vazio - Gilles Lipovetsky - 1983

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