quarta-feira, 25 de julho de 2018

Lado B: Está bonita a dona Irene

Quase dez anos depois encontrei a Dona Irene...  


Foi mais ou menos dez anos antes que, precisamente entre Setembro e Outubro, eu haveria de ficar bastante doente, acamado e de baixa. Foi também por essa altura que a filha haveria de me escrever por mensagens enviadas para o telemóvel que eu era mesmo o companheiro de vida que ela precisava e que só mesmo eu é que a compreendia. Mais ninguém. Mas isto no fundo - ficaria eu a perceber meses depois - foi mais ou menos aquela conversa de presidente de clube de futebol que quando as coisas começam a correr mal, além de culparem os árbitros pela incompetência própria, vêm também logo afirmar convictamente que mantêm toda a confiança no seu treinador. Mas já se sabe, semanas depois despedem-no após novo mau resultado.

O treinador tem sempre as costas muito largas e é sempre o culpado de tudo (ainda que às vezes até seja mesmo). Mas às vezes as costas do treinador são tão largas que ele até é culpado dos remates que os avançados falham com a baliza escancarada; culpado das bolas que batem no poste mas não entram; culpado dos penaltis ou fora-de-jogo que os árbitros não marcam ou culpado até dos frangos que o guarda-redes-maravilha deixa entrar. E claro, no meu caso, semanas depois eu deixaria de ser o "Paulo-Bento-Forever" e seria substituído por um novo treinador, certamente tão cheio de melhores qualidades, ambição desmedida e de novos conhecimentos e táticas prontas a ser postas em prática num novo projeto que durante tantos anos foi o meu projeto de vida.  

Ser trocado não é lá muito bom. Nem nos faz lá muito bem à auto-estima. Ninguém nos troca e acha que vai de cavalo para burro não é? As pessoas mudam (seja lá no que for) porque acham sempre que vão para melhor, ou pelo menos quando o fazem têm essa convicção. E afinal que é que esta nova pessoa tem assim de tão espetacular, tão melhor que nós que justifique mandar às malvas uma amizade e uma relação de tantos anos? E depois a constatação. Afinal não era "para sempre"? E então não ia ser eu que, por ser quase uma espécie de Deus Grego (pelo menos aos vinte anos era o que ela achava) e que eu é que a ia deixar por outra mulher qualquer, lá está, sempre mais qualquer coisa que ela?

Foi num certo domingo de manhã, cedo, que percebendo que se estavam a arranjar desculpas só para discutir, porque mais parecia que de repente somos culpados por todos os males do mundo, do cancro, das guerras e da corrupção, em que parece que tudo está errado só por nossa causa (cá entre nós porque se calhar não se tem coragem de colocar as cartas na mesa e dizer a verdade), que então eu decidi premir o botão da bomba atómica fazendo a pergunta sacramental que nunca havia pensado fazer:

- "Existe outra pessoa"?
"Sim".
E o meu mundo, tal como eu o conhecia, acabava de ruir nesse momento. 

No pior momento possível, (claro que nunca há bons momentos para sermos preteridos) uma nova realidade paralela estava a acontecer-me. Só depois percebi como afinal tudo se encaixa na perfeição. O porquê disto, o porquê daquilo. Tudo ficava claro. Depois percebi também o porquê de tanto cansaço...
Percebi então o porquê de, num certo dia me ter vindo ver quando eu estava doente e mal me ter falado, de ter quase acabado a dormir do meu lado esquerdo, virada para a janela de costas para mim, como que não me querendo olhar, ou enfrentar os seus demónios. Percebi também o porquê de me dizer que me vinha ver no dia seguinte, mas afinal depois não apareceu. E de dia seguinte em dia seguinte, o cansaço acumulado já era tanto que  acabou mesmo por passar toda a semana sem me  vir ver.   

Há formas diferentes de encarar as situações. Claro que sendo multi-resistente não faltei um só dia ao trabalho. Ela acabou por ficar toda uma semana inteira de baixa e andou a tomar uns compridos quaisquer. Eu não tomei nada mas deixei de dormir. Bem que tomei infusões mas nada fez efeito. E haveria de estar mais de um mês sem pregar olho e sempre a trabalhar em modo automático no momento em que, ainda por cima, acabava, finalmente, de ser promovido. Cheguei ao cúmulo de chegar ao trabalho às seis da manhã porque já não aguentava mais estar na cama. E durante alguns anos, sempre que chegavam os primeiros dias mais frios de inverno e saía cedo de manhã para ir para o trabalho, ainda sentia as lágrimas gélidas a escorrer-me pela cara abaixo tal como em todos aqueles primeiros dias de Dezembro daquele ano.

Mas claro que nunca ninguém me haveria de ver chorar. Um homem é forte, aguenta tudo e não chora. Chorar é coisa do sexo fraco, coisa de mulher. Os homens são frios e não têm sentimentos. Não foi assim que a sociedade nos ensinou? E só muitas semanas depois, quando estava a almoçar no restaurante do costume e um colega me pergunta por ela, é que, pela primeira vez, tive que pronunciar a muito custo, tive que me ouvir a mim mesmo dizer, com voz de derrota, que não fazia ideia pois já não estávamos juntos. E para mim era o assumir, pela primeira vez, da vergonha da derrota pessoal. Porque para mim sim, foi uma derrota pessoal. Afinal nós não éramos o casal perfeito apontado como exemplo. Afinal éramos como todos os outros, pois também a nossa relação tinha ido pelo esgoto abaixo depois de uma descarga de água em cima.

E claro que quando duas pessoas gostam mesmo uma da outra, uma relação não acaba assim, do nada, só porque alguém decide olhar para o lado. Como é lógico já existiam problemas que iam fragilizando e criando fissuras na fuselagem da relação. Claro que só se dá espaço para que alguém ronde as nossas janelas quando as coisas não estão bem. E logo eu, que sempre fui muito atento aos gatos vadios que gostavam de rondar. E eu nunca menosprezei nenhum gato vadio, precisamente por ter a humildade suficiente para não me achar melhor do que ninguém, ainda que, como é lógico, também soubesse reconhecer o meu valor.

Pensei em suicidar-me até porque como Nietzsche disse: "a ideia do suicídio é uma grande consolação: ajuda a suportar muitas noites más". Porque quando a dor é insuportável e queremos que ela cesse, sabemos sempre que temos uma forma de o conseguir. Debati-me até, muitas vezes, a pensar sobre se ao não fazê-lo se tratava de ser corajoso ou um cobarde. Acho que até hoje nunca encontrei a resposta. Certo dia até me contaram a história verdadeira que determinada mulher também deixou um homem. Este, certo dia, ligou-lhe, ela atendeu o telefone, e do outro lado do telefone só ouviu o som de um tiro. Poético.

Durante todo este tempo, e apesar de, ao que parece, até termos vivido sempre tão perto, nunca nos cruzamos. E foi muito melhor assim. Passei sim inúmeras vezes pelos pais, maioritariamente de carro, nunca tendo no entanto passado ao lado deles na rua e sido obrigado a cumprimentá-los. Mas dela nem sinal. Mas lá haveria de chegar o dia em que me haveria de cruzar cara-a-cara com a mãe.

Esse foi um dia foi cheio de imprevistos, de coisas que queria fazer mas em que outras ficaram por fazer. E vá lá saber-se porquê, haveria de andar às voltas, ali pela sede do município, sem me lembrar que era a festa do santinho padroeiro da terra, e que as ruas já estavam cheias de comes e bebes. E acabei por dar umas quantas voltas até conseguir estacionar o carro, mas ainda assim cismei que haveria de passar na biblioteca. E quando dobrei a rua dou de caras com ela. 

E claro que eu sou (por norma) um cavalheiro. Logo me dirigi a ela e, genuinamente sorri e cumprimentei-a com dois beijos. Estes encontros imediatos, mesmo tantos anos depois, nem sempre são fáceis. Perguntou-me se estava tudo bem comigo e começamos a falar normalmente. Segundos depois do desconforto inicial já estávamos a falar das nossas maleitas. Entretanto pouco tempo depois o seu telemóvel tocou. Apressei-me a despedir-me, de novo com dois beijos, e a desejar-lhe tudo de bom para ela e para a família.

Virei costas a sorrir e a pensar: "Está bonita a Dona Irene".

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Lado B: Textos que por vezes ficam anos  nos rascunhos do blogue mas que um dia vêem a luz do dia.
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