Mostrar mensagens com a etiqueta El País. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta El País. Mostrar todas as mensagens

sábado, 24 de maio de 2025

A Ditadura em Curso nos Estados Unidos

No mesmo dia, duas entrevistas a duas artistas dos Estado Unidos na imprensa espanhola. Joan Baez e Coco Fusco e as duas vão no mesmo sentido: a ditadura já está em marcha.



"No documentário I Am a Noise (2023), Joan Baez fez um exercício de honestidade ao revelar segredos da sua vida, como o facto de, aos 50 anos, ter percebido através de hipnose que possivelmente tinha sido abusada em criança pelo pai, um reputado cientista mexicano — o que talvez explique as crises de ansiedade, as insónias, os ataques de pânico e o transtorno dissociativo de identidade que a acompanharam durante a adolescência e juventude.

Dois anos depois, a lendária poeta, cantora e activista publica agora "Quando vires a minha mãe, convida-a para dançar", uma colectânea de poemas escritos ao longo da vida pelos seus múltiplos “eus” - as várias Joans jovens que observavam o mundo com um olhar poético. A mãe guardou todos esses pedaços de papel com escritos e desenhos, e um dia ela decidiu mergulhar nessas experiências vitais. A “rainha da canção de protesto” conversa com La Vanguardia por videoconferência, desde a sua casa em Woodside, São Francisco.

Neste livro aparecem as suas irmãs, a sua mãe, o pai, amizades... Sente que é uma forma bonita de reunir uma vida?

Sim, estou contente por ele ter saído. Parte é escrita pelo “eu” adulto, mas basicamente são as outras entidades. É como apreciar a escrita de outra pessoa. Algumas assinam com nomes, outras apenas reconheço. Mas desde que me tornei uma pessoa inteira, já não consigo escrever assim, com essa magia que vinha das outras entidades dentro de mim — o que me entristece. E também me faz feliz ler.

Publica-o como terapia?

Não tinha um objetivo claro. Não me lembro se alguém me disse: “Vais publicar isto num livro?”. Mas montá-lo foi uma loucura: a poesia estava por todo o lado - no armário, debaixo da cama, no escritório, no armazém... Foi um processo longo. Acho que não me apercebi da profundidade que isso tinha para mim e de quão problemático foi para aquelas “pessoas interiores”, porque tive reações diferentes. Mas, sobretudo, não tive reação nenhuma - o que não fazia sentido, dada a natureza do material. Foi um desafio. E só percebi quão desafiante tinha sido ao vê-lo com alguma distância.

Que tipo de reações teve?

A maioria inconscientes. Sentia-me bem, e de repente já não me sentia assim tão bem, e pensava: “Porquê?”. Grande parte estava relacionada tanto com o filme como com o livro, e com expor toda a minha vida. Mas não faz sentido voltar à terapia à procura do detalhe. Não quero gastar energia nisso. Vivo a minha vida sem regressar a esse passado.

Esteve brevemente casada. Sente-se bem sozinha...

Já são 50 anos. E acho que cada vez é mais aceite. Quero dizer, já não é estranho nem mau que uma mulher diga que prefere estar sozinha. Se tivesse sido capaz de manter uma relação, teria sido bom. Mas não fui. Por isso, estou confortável sozinha. Tenho amigos por perto. O meu filho, pelo menos por algum tempo, esteve por perto. E tenho outras pessoas na minha propriedade que cuidam de mim. Viver sozinha para alguém sem qualquer ligação com o mundo seria outra coisa - não sei como me sentiria nessa situação.

O livro é também uma ode à sua mãe, que veio da Escócia com dois anos. No poema final pede a Jussi Björling, o tenor de que ela tanto gostava, que a convide para dançar. De onde vem essa fantasia?

Eu também volto sempre a esse tenor. A minha mãe dizia que ele tinha lágrimas na voz. E quando visitei o pequeno museu dedicado a ele nos arredores de Estocolmo, vi que era conhecido por isso - mas nós não tínhamos acesso a essa informação, simplesmente era assim que o sentíamos. Aos cinco ou seis anos, a sua música enchia a casa. E eu via - como aparece no poema - que a minha mãe largava tudo, suspirava fundo, e parava para ouvir. Foi daí que surgiu essa fantasia. A sua tristeza ligava-a àquela música. Porque naquela idade, e onde vivíamos, não lhe era permitido sentir essas tristezas.

Não tinha tempo.

Exactamente. À medida que falo, apercebo-me de mais coisas, porque nunca o tinha pensado assim.

Diria que os abusos em criança foram a origem da sua falta de auto-confiança, se nem sequer conseguia torná-los conscientes?

É que não te lembras durante o dia do que aconteceu à noite. Vives a vida como os outros miúdos… mas eu estava sempre exausta na escola e não fazia ideia porquê. Nessas situações sentes-te diferente. Os outros parecem ser o que devias ser, mas não há forma de o conseguires. Sentes-te inferior. Uma das coisas mais tristes que resulta do abuso é essa sensação de não seres suficiente. Porque só te lembras do tempo entre acordar e adormecer. E é depois que as coisas acontecem. É complicado, porque amas os teus pais. Ele era mais difícil de perdoar. Ela estava naquele papel que muitas esposas acabam por assumir: não conseguem travá-lo nem ajudar os filhos. A minha mãe não nos protegeu. Não podia.

Começar a sua carreira aos 17 anos foi uma forma de escapar à escuridão?

Acho que sim. Era o mesmo que me acontecia com o desenho. Comecei aos cinco. Há um desenho maravilhoso que encontrei no sótão: uma menina parada ao vento, a pipa vai numa direção com o vento e o cabelo noutra. Só me apercebi desse detalhe depois dos 50 anos. Mas é um bom desenho. Também fazia vacas com úberes enormes, uma atrás da outra… com um índio sentado num tipi. Desde pequena que ficaram muito sofisticados. Depois veio o ukulele, que recebi aos 13: tocava dia e noite, debaixo do cobertor, na cama… Depois passei à guitarra e foi igual. Era um prazer perceber que tinha jeito. A minha voz só se desenvolveu aos 15 ou 16. Era doce, mas ainda não forte.

Cantava em casa com as suas irmãs?

A minha irmã mais velha era muito tímida, não participava. Mas a Mimi e eu sentávamo-nos juntas durante horas. Há muito poucas pessoas com quem a voz se sente assim tão confortável. Só conheci mais duas com quem isso aconteceu. Era algo orgânico, fluía. Depois, o meu pobre pai… queria que a família se juntasse a cantar cânticos de Natal. Mas não queríamos estar em modo “família feliz”. Fazíamos tudo para o evitar: cantar mal, ir preparar leite quente, o que fosse.

Suponho que viu A Complete Unknown, sobre Bob Dylan (e também sobre si).

Bem, o importante é lembrar que é um filme. Porque os meus amigos estavam a defender-me, a verificar os factos, e eu dizia: “É um filme”. Algumas coisas estão bem feitas, outras não. O único problema é que isto acontecia em plena luta pelos direitos civis. Era 1963, o país estava a explodir, e não há qualquer referência. Mas por outro lado, era assim quando estavas perto do Bob: não havia mais nada, o resto não importava. O que provavelmente explica por que não me sentia confortável lá.

Mas a autenticidade que transmitem em palco fascina as novas gerações, saturadas de impostura.

Nesse sentido tem sido muito útil, sim, ficam boquiabertos. Qualquer miúdo com um mínimo de sensibilidade musical fica maravilhado com a música do filme. Mas a minha visibilidade é enorme - chega a ser ridículo. Mas tudo bem, dá-me uma segunda vida entre os jovens. Adoro, se algum miúdo me quiser fazer perguntas, respondo com todo o gosto.

Quando era jovem estava muito envolvida com o Vietname, os direitos civis, Martin Luther King... Onde está a juventude nesta América de Trump?

Estamos em estado de choque. Muitos começam a perguntar-se se isto está mesmo a acontecer. Os maggots [em alusão aos apoiantes do Make America Great Again] fizeram como tinham planeado. Todos os dias há algo novo, repugnante, prejudicial, cruel. Estamos a tentar manter-nos firmes e ser decentes num tempo em que até a palavra “empatia” virou insulto - para eles significa pena, fraqueza. Eu trabalho com um grupo de apoio a famílias de deportados, já não têm o homem que trazia o sustento. As comunidades ficaram espalhadas: latinos que trabalham aqui na aldeia assistem à Fox News. “Vai ser difícil por um tempo, mas depois tudo ficará bem”, dizem. Eu distribuo cartões: “Conheça os seus direitos”. E quero trabalhar com advogados - são o nosso único muro de contenção. Ainda podem entrar nas prisões, visitar os deportados. E em breve vou partilhar no meu Facebook formas de ajudar, locais onde fazer voluntariado, para tirar as pessoas deste estado de paralisia. O problema é que o risco é alto... “Junta-te à marcha, se fores preso, ótimo”, dizíamos nos anos 60. Na prisão cantávamos e dávamos flores aos polícias. Hoje, se incentivares alguém a correr riscos, tens de ter cuidado: pode acabar num buraco de cimento para o resto da vida. É isso que está a acontecer. Não é que venha uma ditadura. Uma ditadura, com outro nome, já está em andamento.

Entrevista de Maricel Chavarría a Joan Baez, publicada a 23 de Maio no jornal La Vanguardia



"À artista e escritora Coco Fusco (Nova Iorque, 64 anos) não surpreende o silêncio da cultura norte-americana perante as políticas repressivas de Trump. “Os americanos não têm experiência com a censura. Embora pessoas como Robert De Niro, Bruce Springsteen ou Taylor Swift estejam a falar, a maioria dos meus colegas está naquela fase do ‘isso não é verdade’ ou ‘isso não me vai acontecer’. É lógico. Quando chega o sistema autoritário, se algo acontecer, pensamos sempre que será com os outros”, contou ontem a norte-americana de ascendência cubana, sentada num sofá numa das salas da retrospetiva que reúne 30 anos da sua obra e que hoje é inaugurada no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba).

As suas obras já passaram pela Bienal de Veneza, pela Bienal do Whitney em Nova Iorque ou pela de Sidney, e agora inaugura a sua primeira monografia em Espanha, mas Fusco sabe que, por muito reconhecimento internacional que receba, nada é garantido neste mundo. “Há artistas que acham que estão a salvo por terem uma grande exposição num grande museu ou por estarem a vender obras por um milhão. Para além de egoísta, é pouco racional. Nos anos 30 também havia muitos judeus ricos e o dinheiro não os protegeu”, acrescenta. A sua é uma atitude de resistência ativa que define até o nome da mostra, Aprendi a nadar em seco, uma metáfora sobre a sobrevivência face a tudo e que homenageia a primeira frase de Natação, um conto de 1957 do autor cubano Virgilio Piñera.

Comissariada pela diretora do Macba, Elvira Dyangani Ose, em colaboração com o Museu del Barrio de Nova Iorque, a exposição permanecerá até 11 de janeiro. A monografia reúne mais de 100 obras de uma carreira multidisciplinar em que Fusco cruza antropologia, desobediência ativa e denúncia política através da performance, vídeo-arte e ensaio. A sua obra é um megafone contra a censura política, a degradação dos valores democráticos, a perversão das políticas migratórias e o peso da alteridade na herança colonial. “Os seus 30 anos de investigação sobre aspetos como identidade, pátria ou comunidade, bem como o apoio à literatura, poesia e cinema cubano reprimidos, são fundamentais não só para compreender Cuba, mas para prestar atenção ao nosso presente. A sua obra é um remédio necessário para um momento tão duro como o que vivemos”, resume Dyangani Ose sobre a relevância da exposição.

Se Fusco diz estar vacinada contra o espanto face às políticas autoritárias, é porque a repressão definiu, literalmente, a sua vida. A mãe, uma cubana que concluiu os estudos de Medicina nos EUA nos anos 50 e não quis voltar após a Revolução, engravidou dela para conseguir os papéis quando o visto expirou. “Tenho uma foto com um mês a chegar a Havana nos braços da minha mãe. O Governo dos EUA disse-lhe que tinha de regressar a Cuba quando eu nascesse para formalizar os novos papéis. A minha mãe deu à luz, voltou à ilha, deixou-me nos braços da minha avó e foi diretamente para a fila para pedir o regresso”, explica.

A artista passou a adolescência a lidar com a burocracia migratória e viveu a explosão cubana em Miami, onde o tio se instalou com os oito filhos e onde passava parte dos verões. Mas na universidade quis conhecer Cuba. “Precisava de me confrontar com essas histórias de horror”. Fê-lo em 1985, graças aos voos de reunificação familiar e ao vínculo com três artistas cubanos que tinham exposto obras em Nova Iorque. “Havia coisas chocantes, claro. Na minha primeira visita roubaram-me o passaporte e nalguns restaurantes não nos deixavam entrar por causa da roupa, mas liguei-me ao sentido de humor e à forma como negociam com a realidade. Voltei e voltei.”

Nessa viagem sedimentou-se a suspeita em relação ao relato triunfal da Revolução. “Nas três primeiras décadas, a maioria dos cineastas fazia muitos trabalhos a celebrar os seus feitos, eu identifico-me mais com os intelectuais e artistas que aplicam um olhar crítico ao processo”, esclarece.

A exposição do Macba abre com A praça vazia (2012), um vídeo inspirado nos protestos que encheram as praças da Primavera Árabe de 2011, onde se vê Fusco, sozinha e minúscula, numa desolada Praça da Revolução de Havana, a questionar-se sobre porque é que esse espaço se tornou num anfiteatro inóspito pisado apenas por turistas que tiram selfies. “Essa praça foi o teatro político de Fidel, mas o tempo degradou-a. Agora só se enche quando há uma celebração oficial ou um desfile militar. As pessoas estão tão mal que, se aparecem, é porque lhes oferecem uma t-shirt ou uma sandes”, comenta a artista.

Décadas de dissidência

Na mostra, a dissidência é explorada por décadas, desde A confissão (2015), sobre a detenção e confissão forçada, em 1971, do poeta contra-revolucionário Heberto Padilla, até ao projeto em colaboração com outros artistas para reivindicar Luis Manuel Otero, o preso político mais famoso de Cuba.

A carreira de Fusco, definida pela “aspiração partilhada” com outras vozes e artistas, pode observar-se na colaboração com Nao Bustamante e a sua visão das fantasias sexuais coloniais na figura das jineteras cubanas (Stuff, 1996–1999), ou na série fotográfica Paquita e Chata (1996), a sua versão viva das bonecas mexicanas Lupita, usadas para representar prostitutas. Essa representação do outro marcou também a sua relação com Espanha. Em 1992, durante dois anos, representou com Guillermo Gómez-Peña a famosa performance Casal na jaula: dois ameríndios visitam o Ocidente, onde ambos se disfarçavam de ameríndios e se apresentavam como uma curiosidade exótica dentro de uma jaula. Embora a jaula esteja agora no MoMA, esta sátira sobre o exotismo e o primitivismo não foi compreendida na altura. “Naquela época celebrava-se o multiculturalismo de forma muito folclórica, parecia que cada um tinha de representar a sua cultura quase como num anúncio da Benetton. Nós quisemos denunciar a colonização e a história dos zoológicos humanos, mas o público não percebeu”, explica.

A sua missão de denúncia não se expressa apenas na arte e nos textos. Desde Brooklyn, Fusco continua a intermediar entre migrantes que procuram asilo político. “No meu bairro há muitos centros de acolhimento e eu trabalho como voluntária como intérprete. O medo do migrante foi instrumentalizado. Eu sei o que eles fazem para sobreviver. E garanto-te que nenhum branco americano vai fazer o trabalho que faz um imigrante recém-chegado”.

Noellia Ramirez | El País 23 de Maio de 2025

sábado, 10 de maio de 2025

Esperávamos o Apocalipse Mas Foi Apenas a Luz que Foi Abaixo

 Mais um texto excelente sobre a nossa sociedade atual publicado no El País no fim de semana passado e que aqui vou deixar.

"Vivíamos como se fosse realmente o fim da história. Como se a prosperidade e a abundância fossem um facto viral incontestável, capaz de garantir o fim dos grandes conflitos, da luta pela sobrevivência. Íamos acabar com a fome, com o cancro e com a pobreza. A guerra e os regimes autoritários eram apenas uma espécie em vias de extinção. Era o ponto final da nossa evolução ideológica. A democracia liberal ocidental era a forma definitiva de governo. Depois vieram os atentados, a crise financeira e os furacões; a pandemia, os genocídios, a crise energética e os vulcões em erupção. Vimos o assalto ao Capitólio em tempo real pela CNN e pelas stories que os próprios assaltantes publicaram no Twitter, Instagram e TikTok. O fim da história tinha-se transformado no fim do mundo — em modo paródia. Parafraseando o verso mais famoso de T. S. Eliot: É assim que o mundo acaba. / É assim que o mundo acaba. / É assim que o mundo acaba. / Não com uma explosão, mas com um meme.

Começámos a fantasiar com um final abrupto. A comprar latas de conserva e comprimidos purificadores de água, ligaduras com antibiótico, canivetes suíços e lanternas LED. Queríamos aprender a fazer coisas com as mãos, sem usar a internet. Se tudo corresse mal, iríamos para a casa da aldeia cultivar uma horta com um cão, três galinhas e uma vaca. Os preppers (preparacionistas) recomendavam comprar uma espingarda, uma antena e um gerador. O apagão apanhou-nos todos desprevenidos, a escrever e-mails, comprar fraldas, esperar aviões e reciclar garrafas de plástico. Acabámos a ouvir o rádio a pilhas com os vizinhos numa praça ou varanda do bairro. Nas horas seguintes, a incerteza dissolveu-se no puro prazer de estarmos juntos, desligados do telefone, suspensos num estado colectivo de alegria e desamparo. Os sinais do apocalipse raramente são tão confusos. Esperávamos o apocalipse, mas apenas foi abaixo a luz.

Os sistemas que nos permitem aceder a água potável, eliminar águas residuais, comunicar instantaneamente com qualquer pessoa ou deslocar-nos rapidamente para qualquer lugar são invisíveis — até falharem. Quando falham, a crise deixa de ter ambiguidades. Quando se corta a eletricidade, deixamos de funcionar. A distopia é mais intuitiva e, durante muito tempo, manifesta-se sobretudo nas contradições. Por exemplo: a economia e a população crescem, mas o planeta está a desaparecer. As empresas mais lucrativas e com mais futuro são as que menos pessoas empregam. Porque é que a Apple tem menos de 200.000 trabalhadores, quando o El Corte Inglés emprega mais de 80.000, e paga menos impostos do que uma padaria de bairro? Vivemos saturados de notícias, mas cada vez é mais difícil saber o que está a acontecer. Os líderes políticos são as principais fontes de desinformação. Conseguimos editar ADN e prever a estrutura das proteínas, mas em países como os Estados Unidos, a esperança média de vida está a diminuir.

Geram-se mais dados do que nunca, mas o poder tornou-se completamente opaco. A inteligência artificial é intangível e infinita, mas trouxe-nos de volta formas de exploração vitorianas. Vivemos sob um regime de controlo e vigilância imposto pelos mesmos sistemas que prometiam salvar-nos. Entre os mais pobres, muitos votam em candidatos que prometeram acabar com o contrato social. Vamos conquistar Marte num futuro que fantasia com o passado mais retrógrado e imperial. É a vida de sempre, mas nada parece como antes. A resistência soa exagerada. Somos infinitamente adaptáveis — sabemos viver com a inquietação.

O apocalipse é um acontecimento revolucionário que muda tudo num instante. A vida que sobrevive tem de se reinventar do zero. Um regresso às origens, onde já não existe contrato social. A distopia é um processo muito mais subtil. É uma utopia que se torce até se tornar no oposto daquilo que afirma representar. O apocalipse é um acidente, um castigo divino, ou pelo menos a consequência lógica de um deteriorar irresponsável no qual todos participámos. A distopia é um exercício de destruição deliberada que se faz passar por degradação natural — e que pode passar despercebida se não estivermos atentos. 

A literatura distópica oferece-nos ferramentas para interpretar os sinais, e anticorpos para resistir à lógica implacável das suas engrenagens. Graças a George Orwell e Aldous Huxley, Philip K. Dick, Franz Kafka e Margaret Atwood, reconhecemos os ingredientes com que se constrói uma nova era de opressão.

Os sinais são inequívocos, uma vez identificado o padrão. Reconhecemos em 1984 as formas de controlo dos corpos através da vigilância permanente. A eficácia política do panóptico, cuja genialidade é fazer com que o povo vigie o próprio povo, interiorizando a sua própria repressão codificada como educação, ambição e outras expressões de estatuto numa hierarquia que todos querem escalar. Mas também as formas mais subtis de controlo do pensamento — através da manipulação da linguagem, da reescrita constante da história, do uso oportunista da nostalgia para justificar a violência. Quem controla o passado, controla o futuro. Entendemos a importância dos nomes e o ato de nomear como forma de resistência íntima. Como disse Ursula K. Le Guin ao receber a Medalha de Contribuição Distinta às Letras Americanas: “Precisamos de escritores que se lembrem da liberdade.”

Admirável Mundo Novo identifica o entretenimento, o consumo e outras iterações compulsivas típicas do nosso tempo como partes de um sistema de automedicação. Para quê amedrontar a população, se é tão fácil distraí-la com séries da Netflix, jogos de futebol e debates televisivos sobre género e transversalidade? Reconhecemo-nos nessas fórmulas massivas mas subtis de consolo — através do prazer imediato, do debate inconsequente, do sexo desligado e da prática de rituais sem comunidade. Nesse sentido, não há mundo mais feliz do que o estado de confinamento, quando as plataformas digitais expandiram os seus domínios sobre os escombros do colapso, estabelecendo os limites literais do possível em todos os aspectos da nossa vida: social, laboral, emocional, intelectual. Como explica Hannah Arendt em A Condição Humana, o espaço público é o espaço da aparição.

Apóstolo da paranoia, Philip K. Dick antecipou a pós-verdade em todos os seus contos, descrevendo a tecnologia e os meios de comunicação como veículos para impor realidades paralelas sobre a percepção humana. Propôs a depressão e a loucura como os nossos únicos anticorpos num mundo interpretado e corporativo de consciências artificiais, antes de Mark Fisher as classificar como sintomas estruturais do capitalismo tardio. The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), de Margaret Atwood, identifica o ataque aos direitos reprodutivos e sexuais como o canário na mina de uma regressão iminente. Também nos lembra que até as redes mais pequenas são actos políticos capazes de projectar a liberdade para lá dos seus limites. O oposto do totalitarismo não é a sobrevivência, mas a solidariedade.

Todos os relatos distópicos alertam para a sua temporalidade enganadora. “Disseram que seria temporário, mas nada muda de repente”, diz Offred, a protagonista do romance de Atwood, para explicar como deixaram que a democracia colapsasse sem oferecer resistência. É o mesmo processo de adaptação que descreve Hannah Arendt — uma mistura de indiferença calculada, baseada em princípios de cortesia e conforto. Tudo parece avançar gradualmente, num processo de mudanças tão incrementais que se infiltram silenciosamente no quotidiano, reconfigurando a realidade enquanto fazemos maratonas de Netflix e debatemos sobre nadadoras trans ou a saudação nazi de Elon Musk. A continuidade e acessibilidade das rotinas superficiais tranquilizam-nos até que, subitamente, há uma aceleração vertiginosa e tudo parece desencadear-se de uma vez. Parece um acontecimento, mas é a conclusão lógica de um processo muito anterior.

Os grandes apagões funcionam como elemento simbólico, mas também nos ajudam a diagnosticar — porque revelam algo sobre as ordens sociais. Dizem que o famoso apagão de Nova Iorque, no verão de 1977, originou saques generalizados que expuseram as tensões sociais de uma cidade marcada pelo desemprego e pela crise económica. Como muitos notaram esta semana, não foi isso que aconteceu aqui. Seguindo a linha mediática das semanas anteriores, pareceria que ficámos sem luz nas piores circunstâncias: ausência de futuro, de valores, de sentido; num estado de incerteza e desamparo. Um mundo onde a tecnologia nos ultrapassa, a política nos satura, a comunidade nos enfurece. Quando mais ansiávamos por uma explosão. E, no entanto, Espanha conseguiu ultrapassar o apocalipse sem lutas, pilhagens ou acidentes de viação — sentados à volta de um rádio que nunca parou de emitir. Nas suas Teses sobre a Filosofia da História, Walter Benjamin diz que cada segundo é “a pequena porta no tempo por onde pode entrar o Messias”. Há muita luz nesta escuridão.

"Luzes para entender as nossas fanasias distópicas" | Marta Peirano | 4 de Maio 2024 | El País

sábado, 22 de março de 2025

Ter Salários Dignos Não Arruína a Economia ou O Último Prego no Caixão do Neoliberalismo

Como introdução a mais um artigo que aqui quero deixar (principalmente para mim mas que, por certo também poderá interessar a outro qualquer leitor fantasma) poderia começar por dizer que não percebo nada de economia, mas, se calhar, a grande maioria dos economistas da nossa praça também não!

Depois de anos com a mesma ladainha de sempre "ai, não, não se pode aumentar os salários porque isso é mau para a economia e as empresas não aguentam" e lembrar aquele arauto da economia portuguesa, formado pela Católica, João César das Neves a dizer o aumento do salário mínimo é muito mau para os pobres, como pudemos ver nos últimos anos, tudo isso era um mito absurdo.


"O salário mínimo aumentou 61% em Espanha desde 2018, um crescimento vertiginoso que - apesar da recente explosão da inflação - supera em cerca de 40 pontos percentuais a evolução dos preços desde então. De 736 para 1184€ brutos por mês em 14 pagamentos, alcançando, segundo as estimativas do Governo, 60% do salário médio dos espanhóis. 

Em paralelo, e impulsionado por um ciclo económico expansivo, a taxa de desemprego caiu de forma sustentada, o nível de emprego cresceu ligeiramente e a desigualdade salarial atenuou-se. Embora se registem algumas travagens moderadas na criação potencial de postos de trabalho, a maioria dos analistas concorda que os aumentos do SMI trouxeram mais consequências positivas do que negativas. Uma conclusão comum a outras geografias e que coloca em causa algumas ideias que pareciam imutáveis.

Espanha não é, de longe, o único país que aumentou o salário mínimo nos últimos anos. Em períodos marcados pela forte inflação pós-pandemia e pela escalada abrupta dos preços da energia, outros países também reforçaram os seus salários mínimos. De um modo geral, novamente, com mais vantagens do que desvantagens. O caso do México é um exemplo disso. Ou o da Califórnia, um dos estados dos EUA que mais aumentou este indicador. Ou, mais perto, o de vários países da Europa de Leste, com a Roménia e a Bulgária à frente, onde os aumentos de dois dígitos se tornaram norma, melhorando a vida de milhões de trabalhadores.

Os supostos efeitos negativos, amplamente teorizados por muitos economistas e empresários - e contestados apenas por alguns, com os laureados com o Prémio Nobel da Economia David Card e Alan Krueger à cabeça - não se concretizaram. Os preços subiram, sim, mas por razões alheias ao salário mínimo. E, longe de ser um inimigo do pleno emprego, o desemprego está próximo de mínimos históricos.

Manuais desatualizados


Essas ideias, firmemente enraizadas no imaginário coletivo da economia neoclássica e nos manuais com que se formaram (e continuam a formar-se) várias gerações de académicos, começam a desmoronar-se. “O caso do salário mínimo é mais um exemplo de conceitos que a ortodoxia económica tomou como certos nos últimos 50 anos e que caíram desde 2008; argumentos que, carregados de ideologia, eram considerados inquestionáveis e não o são”, afirma Xosé Carlos Arias, autor do recém-publicado O tempo é ouro. Economia política do nanosegundo. “Quer isto dizer que o salário mínimo pode subir indefinidamente? Não, claro que há um limite… Mas parece ser mais elevado do que se pensava”.

“Os modelos convencionais falharam, sobrestimando os impactos negativos e subestimando os positivos”, acrescenta Juan Carlos Moreno Brid, professor de Economia da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM). Porquê? “Em grande parte, porque assumiam que o mercado de trabalho funcionava como o das laranjas. E não é assim… O mercado laboral é, sem dúvida, onde a economia neoclássica mais falhou na sua compreensão.”

Uma linha de pensamento partilhada por Attila Lindner, investigador do instituto alemão IZA, especializado em economia do trabalho, e professor no University College de Londres, com inúmeras investigações sobre o tema. “A evidência empírica sobre o salário mínimo sugere que, nos níveis atuais [no Ocidente], esta política tem efeitos mínimos sobre o emprego, ao mesmo tempo que aumenta significativamente a remuneração dos trabalhadores com salários mais baixos”. Algo, conclui, “difícil de conciliar com a visão neoclássica dos mercados laborais que dominou a profissão até ao início dos anos 2000, e que revela limitações importantes da teoria económica tradicional”.

Ao contrário de tantas outras variáveis laborais em que Espanha costuma estar na cauda da Europa, no que toca ao salário mínimo está agora perto do topo. Os seus 1.184 euros mensais são o quinto valor mais elevado da Europa, superado largamente pelos 2.261 euros do Luxemburgo, 1.956 da Irlanda ou 1.880 dos Países Baixos, todos eles países onde o custo de vida supera em muito o espanhol. Nada a ver com a realidade de há alguns anos, quando o salário mínimo espanhol estava entre os mais baixos da União Europeia.

Se tomarmos como referência 2018 - antes da pandemia e do forte aumento do SMN em Espanha -, o salário mínimo cresceu 61% desde então, enquanto os preços subiram apenas 19%. Esta diferença é ainda mais notória em países do leste e norte da Europa: na Lituânia, por exemplo, os preços aumentaram 41%, mas o salário mínimo subiu 160% (de um valor inicial muito baixo, 400 euros em 12 pagamentos, para os atuais 1.038 euros). Em Montenegro, Albânia e Croácia verifica-se um fenómeno semelhante. Também na Alemanha (+19%) e nos Países Baixos (+11%) houve ganhos significativos no poder de compra do salário mínimo.

Um raio de esperança

No México, os resultados foram igualmente claros. Durante os seis anos de presidência de Andrés Manuel López Obrador, o salário mínimo - que partia de valores muito baixos, mais típicos de economias empobrecidas do que de um país de rendimento médio - mais do que duplicou. Isto pôs fim a décadas de estagnação e trouxe esperança a milhões de trabalhadores. E, mais uma vez, sem o temido “efeito cascata”, que pressupunha que qualquer aumento do salário mínimo levaria automaticamente a uma subida de todos os salários, o principal argumento dos economistas (e políticos) tradicionalmente contra essa medida.

Rosalía Vázquez-Álvarez, economista da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e especialista em salários, assinala que, entre 2021 e 2022, 57% dos países do mundo aumentaram o salário mínimo nominal. Entre 2022 e 2023, a percentagem subiu para 59%. “Isto representa um aumento substancial em comparação com anos anteriores, o que indica que, em muitos mais países do que se esperava, as políticas de salário mínimo responderam de forma firme ao aumento da inflação”, comenta.

Os aumentos coincidiram com novos estudos científicos sobre o impacto do salário mínimo, que se viram reforçados pelos dados dos últimos anos. Foi neste contexto que a Academia Sueca concedeu o Prémio Nobel de Economia a David Card, reconhecendo a sua tese que contrariava a crença generalizada de que aumentos do salário mínimo destruiriam empregos. “Os aumentos no salário mínimo não têm necessariamente de levar à destruição de emprego”, justificou a Academia.

A conclusão geral não é que o aumento do salário mínimo não possa ter efeitos negativos, mas sim que não há uma consequência automática e que os aumentos recentes têm trazido mais benefícios do que prejuízos. Como enfatiza Luis Ayala, professor de Economia na UNED, “os estudos mais recentes mostram que os efeitos negativos sobre o emprego são pequenos, enquanto os efeitos positivos sobre a desigualdade salarial são muito comuns”.

A evidência empírica sugere que um salário mínimo bem implementado reduz a desigualdade e melhora a vida dos trabalhadores, sem que isso resulte numa perda significativa de empregos. A economia evolui e, com ela, o entendimento sobre os impactos das políticas salariais.

"Tener sueldos dignos no arruina la economía" / El País 

--------

Editado:

Entretanto ficamos a saber que Espanha teve ser o maior superavit dos últimos trinta anos. E Ana Gomes partilha o meu post no Bluesky a satirizar o economista da Católica:

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O Amor Consumista

Passou mais um dia dos namorados e falou-se novamente de como 75% dos nossos jovens acham perfeitamente normal controlar, perseguir ou agredir psicologicamente. E depois o problema é as aulas de cidadania! Se calhar deveriam era aumentar a carga horária para aprender a respeitar o outro. E obviamente muito se escreveu na imprensa internacional sobre o preço dos chocolates e sobre o amor... Este artigo de José Nicolás do El País foi talvez dos que mais me chamou a atenção e aqui fica:


Se pensamos hoje numa pessoa que procura um parceiro, imaginamos frequentemente alguém que passa parte do tempo colado ao telemóvel, aprovando ou rejeitando perfis numa aplicação de encontros. Obviamente, nem toda a gente o faz, mas é muito comum. O Tinder é a aplicação mais utilizada em Espanha, com mais de três milhões de visitas por mês: agora, pode-se “namorar com toda a gente, a toda a hora e em todo o mundo”, escreve Liv Strömquist em "Não sinto nada". 

A internet e a sua utilização para encontrar um parceiro afastam-nos do momento romântico de começar a sentir algo por um colega de trabalho, de reparar na pessoa com quem coincidimos nos transportes públicos, de trocar olhares num bar… agora, tudo é escolhido. Acabamos por iniciar uma relação não por instinto, mas pela informação que um perfil escrito pelo outro nos fornece.

Strömquist acredita que optamos por esta forma racional de iniciar um relacionamento porque temos a tendência de querer compreender tudo: “A expansão da sociedade de consumo faz com que nos comportemos como consumidores racionais e que tentemos tirar o máximo proveito até mesmo das nossas relações pessoais.”

Neste excelente ensaio em forma de banda desenhada, a autora sueca cita pensadores como Byung-Chul Han, Eva Illouz e Slavoj Žižek, que argumentam que, devido à sociedade consumista e superficial em que vivemos, apaixonarmo-nos – cair de amor (fall in love em inglês ou tomber amoureux em francês) – tornou-se cada vez menos comum: “Em vez de nos deixarmos surpreender por um sentimento e tomarmos decisões intuitivas, pensamos de forma racional, como consumidores”, resume.



Há indícios de que o amor e o consumismo andam de mãos dadas. Nestes dias, as empresas de marketing lançam campanhas para oferecer as melhores experiências para casais, as floristas preparam-se para fazer o seu agosto e as empresas de chocolates e rebuçados faturam, numa semana, um terço dos lucros de todo o ano. No entanto, entre montras repletas de corações, ainda há espaço para a conexão espontânea, para os amores à primeira vista.

Algo assim aconteceu a Francis há alguns meses, durante uma visita ao Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba). Numa das salas, cruzou-se com um rapaz que “lhe pareceu muito interessante”. Foi assim que uma amiga sua o descreveu na conta de Instagram do museu, que publicou um carrossel de imagens com um apelo: “Alejandro, estamos à tua procura”. A série de fotos reproduzia o pedido da amiga de Francis: “Na sala onde estão as obras de Remedios Varo, conheceu Alejandro, um colombiano que está em Buenos Aires em home office”, dizia uma das imagens. “Quando conta a história, sente que conheceu alguém que poderia ser um amigo especial (ou talvez algo mais). […] Agradecia muito se me ajudassem a encontrar o Alejandro. A minha amiga é uma das pessoas mais maravilhosas que conheço, e tenho a certeza de que Alejandro teria muita sorte em conhecê-la melhor.”

Hoje, a publicação tem mais de 36.600 gostos e é, de longe, a mais bem-sucedida da conta do Malba. Nos comentários, centenas de pessoas torciam para que o famoso Alejandro aparecesse e aguardavam ansiosamente a continuação da história. E aconteceu. O próprio Alejandro respondeu: “Uma amiga mostrou-me este post e eu sou o Alejandro. Que loucura e que graça isto.” O museu colocou-os em contacto e, mais tarde, ele publicou um vídeo onde contava que também sentiu uma ligação com Francis e que os dois já trocavam mensagens e se estavam a conhecer melhor. “É muito bonito”, dizia, visivelmente entusiasmado.

Está visto que encontrar o amor nem sempre exige recorrer a uma aplicação de encontros, ao programa A Ilha das Tentações ou ao balcão de um bar. Às vezes, basta visitar um museu – acontece quando e onde menos esperamos.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Pensa Por Ti Próprio - Pensa Como Nós

Mais uma excelente crónica publicada no fim de semana passado no jornal espanhol El País.
 

"
Imaginemos dois momentos marcantes na história da tecnologia e, portanto, da humanidade. No primeiro, assiste-se a um famoso anúncio de televisão. Enquanto se sucedem imagens a preto e branco de ícones como John Lennon, Pablo Picasso ou Maria Callas, o ator Richard Dreyfuss recita um poema:

“Isto é para os loucos. 
Os desajustados. 
Os rebeldes. 
Os agitadores. (…) 
Porque eles mudam o mundo. 
Eles inventam. 
Eles imaginam. 
Eles curam. 
Eles exploram. 
Eles criam. 
Eles inspiram. 
Eles impulsionam a humanidade para a frente.”

O anúncio termina com o slogan Think Different, Pensa Diferente. O ano é 1997, e Steve Jobs acaba de regressar à Apple.

A segunda cena é mais recente, de há algumas semanas. A Apple é agora a empresa mais valiosa do mundo na Bolsa, e o seu presidente, Tim Cook, um firme defensor da igualdade de género, raça e orientação sexual, observa com expressão séria a segunda tomada de posse de Donald Trump como presidente dos EUA. Como o resto da elite tecnológica, também ele fez doações para a campanha. Perto dele, estão Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai e Sergey Brin (Google), Elon Musk (X, SpaceX, Tesla) e Sam Altman (OpenAI). No dia seguinte, Trump posa para uma foto com este último e com Larry Ellison (Oracle), e anuncia um enorme investimento em inteligência artificial para garantir a liderança tecnológica dos EUA nas próximas décadas.

Juntos, todos eles representavam o fim do discurso da defesa das liberdades sociais por parte das empresas tecnológicas, que nasceram na Costa Oeste dos EUA, capitalista, mas também livre e radicalmente inovadora. Um dia, reivindicaram a diferença. Steve Jobs não viveu para ver este momento nem o crescimento das pseudociências modernas. Morreu jovem, de um cancro no pâncreas pouco agressivo, que optou por tratar fora da medicina convencional.

Os grandes líderes de Silicon Valley já não nos incentivam tanto a "pensar diferente", mas sim a reconhecer a visão superior de um empresário multimilionário ou de um líder autoritário. A ideologia do Silicon Valley disfarça-se de pensamento crítico e, através das suas próprias redes, exporta-se como propaganda para todo o mundo. Está por trás de frases como "pensa por ti próprio", "faz a tua própria investigação" ou "não deixes que pensem por ti", elementos-chave na desinformação, no pensamento conspiratório e na polarização que definem o nosso tempo e alimentam populismos. Uma vez desprezado o consenso social sobre o conhecimento, explora-se o apelo de soluções simplistas baseadas num individualismo extremo.

O que aconteceu? O que mudou em Silicon Valley para que a sua mitologia de criatividade e independência se tenha transformado numa ferramenta de obediência populista?

TRÊS FASES DE SILICON VALE

A resposta vem da Califórnia - onde o sociólogo e ex-ministro das Universidades Manuel Castells se encontra evacuado devido aos incêndios. Ele, um dos maiores historiadores da internet, descreve três fases.

Na primeira fase, da qual emergiram figuras como Steve Jobs e Bill Gates, “o empreendedor era o modelo e a inovação o objetivo, mais do que o dinheiro. O individualismo coexistia com valores sociais como o feminismo, o ecologismo e a tolerância sexual e religiosa”.

Nos anos 90, consolidaram-se as grandes empresas, que acabaram por se tornar oligopólios. “Embora pregassem inovação e liberdade, na realidade, a acumulação de capital e o lucro tornaram-se as ideologias dominantes: tornaram-se capitalistas e empresários mais do que inovadores, embora mantendo um discurso liberal e tolerante.”


Desde 2010, entrámos numa terceira fase. Castells aponta que o 5G, os satélites e a inteligência artificial impulsionaram uma nova geração de inovadores de sucesso rápido: a chamada PayPal Mafia - um grupo de empreendedores que começou na empresa PayPal antes de lançar outros projetos. Entre eles, Elon Musk, Peter Thiel e Marc Andreessen.

“Estes tecnocratas não querem apenas inovar, querem o poder total”, explica Castells.

A sua ideologia defende que os "melhores cérebros" - eles próprios - devem afastar "a plebe ignorante". Esta é, segundo Castells, a base da sua aliança com Trump.

São tecnocratas libertários que querem ocupar o Estado para impor o seu projeto. São perigosos porque estão convencidos, têm poder material e, acima de tudo, ambicionam poder.

Na posse de Trump, Musk atraiu todas as atenções ao ser nomeado chefe do recém-criado Departamento de Eficiência Governamental, após um gesto no palco que fez lembrar uma saudação nazi. Philip Low, fundador da Neurovigil e antigo amigo de Musk, escreveu no LinkedIn:

“Elon Musk não é nazi, mas talvez seja algo melhor - ou pior, depende da perspetiva. Os nazis acreditavam na superioridade de uma raça inteira. Elon acredita que ele próprio está acima de todos.”

Outros membros da PayPal Mafia, como Peter Thiel (dono da empresa de cibersegurança Palantir) e Marc Andreessen (criador do Netscape e agora conselheiro de Trump), não estavam presentes.

A NOVA DIREITA TECNOLÓGICA

Thiel, financiador do senador J.D. Vance, defende a liderança empresarial sobre a democracia. No seu livro Zero to One, argumenta que os grandes líderes empresariais devem ignorar convenções sociais. Andreessen, por sua vez, publicou em 2023 um Manifesto Tecno-Otimista que mistura anarcocapitalismo, aceleracionismo e Nietzsche, defendendo que a tecnologia nos tornará super-homens livres.

O seu pensamento é influenciado por livros como Atreve-te a não agradar, um best-seller japonês baseado na psicologia de Alfred Adler, que argumenta que não é o passado ou o ambiente que nos limitam, mas sim a falta de coragem.

No início de 2025, vemos um grupo de tecnocratas convencidos da sua superioridade intelectual e validados pelo mercado. Controlam empresas com um poder de influência sem precedentes, conhecem as dinâmicas sociais e são atraídos pela ideia de um governo autoritário gerido como uma empresa.

“PENSA POR TI PRÓPRIO”

Como esta ideologia se relaciona com os seus clientes e eleitores?

Mark Zuckerberg é um exemplo: passou de defensor do politicamente correto (woke) para um campeão da "liberdade de expressão", desmantelando políticas de moderação no Facebook e aproximando-se de Trump.

A cultura digital, com a sua exaltação do individualismo e desconfiança na informação tradicional, alimentou esta nova mentalidade. A obsessão pelo pensamento crítico levou a uma sociedade onde todos acusam todos de "pensar mal".

Sam Wineburg, professor de Stanford, alerta:

“Se as pessoas realmente entendessem como funciona a internet, fariam escolhas melhores. Mas a maioria navega às cegas, confiando ingenuamente na própria capacidade de discernimento.”

Assim, num mundo onde os algoritmos são controlados por bilionários e onde o caos informativo favorece os mais poderosos, a máxima parece ser:

"Pensa por ti próprio… desde que penses como nós."

O PENSAMENTO CRÍTICO E A ARMADILHA DA DESINFORMAÇÃO

Se há uma frase que indica que alguém está prestes a entrar numa espiral conspirativa, é "pensa por ti próprio", frequentemente acompanhada de "faz a tua própria investigação" ou "não deixes que pensem por ti". O pensamento crítico continua a ser, como defendia Hannah Arendt, um imperativo moral, mas aqui esconde-se uma armadilha.

“A ciência nasce da curiosidade sobre aquilo que desconhecemos e gostaríamos de explicar”, explica a neurocientista Carmen Estrada.

No seu ensaio A Herança de Eva, Estrada descreve a ciência como um esforço coletivo, construído ao longo de gerações, baseado na colaboração e na continuidade do conhecimento.

Sam Wineburg, professor na Universidade de Stanford e especialista em literacia digital, acrescenta:

"Se as pessoas realmente compreendessem como funciona a internet, como as palavras-chave distorcem os resultados das pesquisas, como a otimização dos motores de busca manipula a informação, então fazer a própria investigação levaria a decisões mais informadas. Mas, na realidade, a maioria de nós navega às cegas, confiando ingenuamente na própria capacidade de discernir a verdade no meio do caos digital.

Wineburg é coautor do manual Verified, um guia prático de verificação de factos. Ele e Mike Caulfield defendem um conceito inovador: a necessidade de "ignorar criticamente".

“Vivemos numa economia da atenção, onde as plataformas digitais competem para manter os nossos olhos fixos nos ecrãs. Avaliar informação exige pensamento crítico, mas o pensamento crítico alimenta a atenção. Na internet, o primeiro e mais importante ato de pensamento crítico é determinar se a informação merece ser analisada criticamente. Aprender a ignorar fontes de baixa qualidade preserva a nossa atenção para o que realmente importa.

A ASCENSÃO DOS TECNOPOPULISTAS ~

Se juntarmos a esta cultura digital um individualismo mal interpretado, um mundo complexo simplificado por visões reducionistas, a ilusão de uma democratização do conhecimento e o reforço psicológico gerado pelas comunidades online, obtemos um cenário perigoso.

Polarizamos este contexto com um sistema informativo manipulado pelos donos dos algoritmos – empresas que lucram com o caos emocional gerado pelas redes sociais. O resultado? Líderes políticos e económicos fortes e populistas, admirados pela sua suposta independência (mesmo em relação aos seus próprios partidos e seguidores), que dizem defender a liberdade, mas acolhem com agrado aqueles que “ligam os pontos”... desde que os liguem a seu favor.

Quando se admira um líder que “pensa por si próprio”, na verdade, admira-se alguém profundamente emocional, que alimenta ressentimentos e desconfiança nas instituições.

Um título do jornal satírico El Mundo Today ilustra bem esta confusão no início do segundo mandato de Trump:

Um jovem que não se deixa manipular defende exatamente as mesmas ideias que os três homens mais ricos do mundo.”

Esta ironia reflete-se nas redes sociais, onde discursos de milionários do Silicon Valley se misturam com declarações de figuras inesperadas, como o ex-futebolista Javi Poves, um fervoroso defensor da teoria da Terra plana.

"Quem te diz que não sou mais inteligente do que Kepler? Ou do que Galileu? Não sei. O que sei é que hoje tenho mais meios técnicos para o demonstrar", disse Poves à rádio Cadena Cope.

Nesta nova era digital, os tecnomagnatas transformaram a inovação em um novo tipo de dominação. A sua narrativa, que outrora promovia a criatividade e a liberdade, agora alimenta desinformação e autoritarismo. A inovação já não é apenas um objetivo - é uma ferramenta de poder.

Delia Rodrguez | El país | 2 de Fevereiro de 2025

domingo, 26 de janeiro de 2025

Convite a uma Revolta

Sobre a pressão social, as modas, o sentimento de pertença e a cobardia de não querer passar por diferente. Artigo de  Antonio Muñoz Molina, publicado no  El País a 25 de janeiro de 2025:

"
O remorso por algumas tolices cometidas no passado pode não ser estéril se nos servir para agir com mais sensatez no presente. Uma tolice pode também ser um erro, mas nela há algo de banal e supérfluo que agrava o dano que produz, em vez de o aliviar. Uma desculpa parcial é que os acertos, os atos de nobreza e o esforço no trabalho levam o selo do que há de melhor em cada um de nós. Já a tolice tende a ser coletiva, não fruto de uma escolha consciente, mas da submissão atarantada ou cobarde a uma moda. Algumas das maiores tolices das quais me arrependo na vida surgiram não de uma vontade puramente minha, mas do medo de ficar para trás em algo que os outros celebravam, da ansiedade de partilhar algo prestigioso que pairava no ar.

Quando eu tinha cerca de 18 anos, as drogas começaram a chegar ao mundo provinciano onde me movia, envoltas numa perigosa e tentadora lenda de clandestinidade que as tornava mais atraentes. Associar a emancipação ao consumo de haxixe era uma tolice colossal, ainda mais se fosse adornada com a capacidade de abrir as "portas da perceção" ou de libertar a criatividade. Também se dizia na época que o álcool e o tabaco eram ferramentas tão necessárias para a literatura como o papel, a caneta e a máquina de escrever. Eu ficava até altas horas a escrever à máquina na mesa da sala, sob a luz débil do aquecedor, e pela manhã a minha mãe encontrava, ao lado da máquina e dos papéis, um cinzeiro cheio de beatas. Com tal método, era pouco provável escrever uma obra-prima precoce, embora fosse fácil adquirir uma respeitável tosse brônquica antes dos 20 anos.

Sendo medroso por natureza, o haxixe assustava-me. Comecei a fumá-lo pela mesma razão que me levou a fumar tabaco alguns anos antes: para imitar outros mais audazes do que eu, porque, de repente, toda a gente o fazia. Toda a gente falava usando os novos termos associados à gíria prisional —o “costo”, o “pasote”, o “talego”, etc.— e eu tinha vergonha de ficar antiquado, como ficaram antiquadas, alguns anos depois, as jaquetas de bombazina, as botas de montanhista ou metalúrgico e as barbas compridas. Eram os finais dos anos 70 e os primeiros dos anos 80, e tudo acontecia muito depressa. Tão depressa que o haxixe também passou de moda, porque de repente o novo, o último grito e o obrigatório era a cocaína. Agora, as jaquetas tinham ombreiras dignas de filmes policiais, as calças eram largas e pendiam abaixo do cinto, e alguns dos heróis barbudos de bombazina tinham-se barbeado e exibiam patilhas à altura das têmporas, fazendo o gesto vaidoso de tapar uma narina com o dedo indicador e respirar fundo pela outra, indicando que ainda lhes restava um pouco da cocaína consumida pouco antes.

O haxixe e a marijuana tornaram-se antiguidades de hippies tardios ou, como se começou a chamar depois, “cães-flautistas”. O moderno era a cocaína. A coca era um símbolo de status, como o design ou os restaurantes de nova gastronomia, onde os beneficiários dos ventos descontrolados de dinheiro público celebravam os seus pequenos ou grandes êxitos, trazidos pelos grandes projetos da era socialista, culminando nos Jogos Olímpicos e na Expo de 1992, autênticos fogos de artifício galácticos.

Diziam que a coca animava a vida e exaltava todas as faculdades, inclusive as eróticas, e que, além disso, não era viciante. Parte da tolice da minha época, também a consumi ocasionalmente, sobretudo quando me convidavam. Nunca me ocorreu então que estava a alimentar um negócio criminoso que, já na altura, afogava em sangue, terror e corrupção uma parte do mundo. O que nem eu nem ninguém podíamos ignorar eram os efeitos atrozes que começou a ter em muitas pessoas aquela substância aparentemente tão benéfica e inócua, que não deixava cheiros persistentes nem marcas como o haxixe, nem rastos de sangue e seringas pisadas em casas de banho públicas.

Talvez tenha sido o castigo dessas antigas tolices e vícios que me deixou vacinado contra a moda de muitos anos depois, que agora atingiu o seu paroxismo destrutivo: as redes sociais. Tal como o haxixe ou a cocaína, chegaram com o prestígio de uma novidade imperdível, na grande onda do messianismo tecnológico, que também trazia o seu vocabulário, os seus propagandistas e os seus gurus, todos eles disfarçados de jovens benfeitores boémios. Agora parece que o Facebook é uma distração para reformados, como o jogo de cartas ou o crochet, mas há uns 15 anos não abrir uma conta ou perfil —ou lá como se chamasse— era tão imperdoável como não aspirar uma linha de cocaína numa reunião de políticos ou empresários corruptos. Homem do meu tempo, passei algumas horas nessa rede e percebi de imediato como poderia tornar-me dependente e da extraordinária quantidade de tempo que ela me roubava sem que eu notasse e sem qualquer proveito.

O fundador era, na altura, um jovem simpático, com ar de adolescente desajeitado e algo rebelde, mas bem-intencionado, com a sua camisola de capuz e o seu desembaraço de recém-chegado à universidade e a sua simpática máxima: “Move-te rápido e quebra coisas”. E como quebraram! O dano causado pelos senhores da droga empalidece perante a pandemia de distúrbios mentais entre crianças e adolescentes que a empresa deste indivíduo promove nas suas várias plataformas, cada vez mais viciantes, propagadoras conscientes de ansiedade e mentira.

A droga de Zuckerberg experimentei-a um pouco e deixou-me o mesmo desagrado dos primeiros charros. A que Elon Musk trafica agora com tanto sucesso tenho a modesta satisfação de nunca ter experimentado. Nunca entrei no Twitter ou no X.

Sei que recebo toda a informação que preciso através de jornais, rádios e plataformas digitais confiáveis. Ao mesmo tempo, poupo-me à crispação e imundície desse lodaçal. Quebrar a nossa dependência desses fabricantes de vícios é das poucas liberdades reais que nos restam.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Divagações sobre o Solstício de Inverno

Hoje é dia do Solstício de Inverno e o El País tem este belo texto sobre o tema:



 "Hoje, sábado, 21 de dezembro de 2024, às três da madrugada no hemisfério norte, ocorreu o solstício de inverno. A luz do Sol começou a crescer e assim continuará até ao verão. Os antigos romanos celebravam este acontecimento com as Saturnais, festividades pagãs em honra de Saturno, o deus da agricultura e da colheita, que originalmente se realizavam entre 17 e 23 de dezembro. Na essência, nada mudou na nossa cultura desde então. Os romanos também montavam mercados no fórum, onde Horácio, Ovídio e Virgílio poderiam ser vistos a comprar presentes, velas, estatuetas de barro e doces tradicionais para amigos e familiares. Por uma vez, os escravos sentavam-se à mesa e eram servidos pelos seus senhores, como na cena do filme Plácido, de Berlanga. As festas eram marcadas pela alegria das crianças e pela nostalgia dos mais velhos. Tal como acontecia com a luz no solstício, uns chegavam à vida e outros dela se despediam.


Os cristãos transformaram o sol nascente no Menino Deus, que nasceu num estábulo. Roma era um centro de todas as religiões possíveis. Escolhia-se, sem dificuldade, aquela que mais agradava. Naquela época, um deus solar importado da Pérsia, chamado Mitra, era particularmente popular. Ele nascera de uma virgem e morria e ressuscitava todos os anos, tal como as sementes que se deterioram na terra para depois germinarem, florescerem e frutificarem. Nos seus primórdios, o cristianismo, fundado pelo génio de Paulo de Tarso, retirou deste deus persa grande parte da substância para a sua nova religião, que começou por se expandir entre os judeus da diáspora e depois entre os gentios, nas periferias das cidades. A nova seita dos cristãos foi perseguida e lançada aos leões no circo, não por adorar um deus estranho, mas por tentar derrubar o poder de Roma numa luta contra o sistema — algo que conseguiu quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo e promulgou o Édito de Milão em 313.

No Direito Romano, dívidas não pagas podiam transformar o devedor em escravo do credor. Durante as perseguições, os cristãos rezavam o Pai Nosso nas catacumbas, uma oração revolucionária e contra a escravatura, pois pedia o perdão das dívidas. Por outro lado, o cristianismo foi concebido para acalmar os pobres deste mundo, assegurando-lhes que seriam os primeiros a sentar-se no céu, à direita de Deus Pai, devendo, por isso, adiar qualquer rebelião terrestre. Entretanto, o Sol continuará, sem falhar, a ganhar tempo ao amanhecer e ao entardecer.

Epifania significa manifestação da luz. A partir do Dia de Reis, notaremos que o sol se demora mais, desenhando grafitis de luz nos muros. Este Deus, que uns acreditam ter nascido no estábulo de Belém e outros consideram apenas uma data no calendário, despertará a seiva nas árvores quando chegar a Candelária. Mais tarde, obrigará as ramas nuas a fazer brotar gemas que explodirão em flores. Cairá chuva e ouvir-se-á o som das caleiras; nevará, e o sol de março provocará o degelo. Pode até repetir-se o milagre que testemunhei há anos: um colibri verde-esmeralda, vermelho e azul, pairava no ar, batendo as asas, para caçar uma gota brilhante de prata que escorria de um ramo de carvalho coberto de neve.

O sol amadurecerá nas costas hieroglíficas dos lagartos, e abril adoçará o néctar que os insetos bebem no coração das flores. Talvez em maio se inicie a rebelião solar, com a primeira onda de calor sufocante. Uns culparão as alterações climáticas; outros, tempestades solares - fenómenos que sempre existiram. Contudo, na humanidade persistirá um sentimento de culpa pelo que fazemos ao planeta, especialmente com cataclismos, incêndios, inundações, terramotos e furacões cada vez mais frequentes e destrutivos. Apesar disso, os mercados continuarão a oferecer frutas de todas as espécies, cerejas e morangos em junho, e acreditar-se-á que a felicidade se alcança ao estender o corpo na areia da praia e esperar que o sol decida entre um bronzeado magnífico ou um cancro de pele.

Afinal, para ser feliz basta comprar uma camisa com palmeiras e botas de montanha para escalar ruínas, sem saber que escalamos as nossas próprias. A certa altura, a luz do sol começará a apagar-se. Quando chegar a noite de São João, com o solstício de verão, todos os nossos sonhos de luz terão recomeçado ou terminado. Estas são divagações diante de uma travessa de torrões de Natal.

Manuel Vicent | El País | 2024

domingo, 17 de novembro de 2024

Entrevistas ao Pepe Mujica? Coleciono Todas!

Há figuras históricas tão inspiradores, e talvez não haja ninguém tão inspirador quando o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. Em agosto partilhei uma entrevista que deu ao New York Time, partilho agora também a que deu hoje ao El País, depois dos tratamentos de radioterapia que fez a um cancro:


“Dediquei-me a mudar o mundo e não mudei coisa nenhuma”

Aos 89 anos, venceu o cancro e fala sobre a vida e a morte, o rancor, a felicidade e o seu legado.

Numa tarde de 1970, José Pepe Mujica conversava com outros homens numa mesa do bar La Vía, em Montevidéu. Um cliente reconheceu que eram guerrilheiros tupamaros e denunciou-os. A polícia cercou o local. Mujica levou seis tiros. No Hospital Militar foi tratado por um cirurgião que “era um companheiro, um tupa disfarçado”. “Dá-me um balde de sangue e salva-me. É daquelas coisas que nos fazem acreditar em Deus”, recorda Mujica. 

Passados exatamente 54 anos, está sentado na pequena sala da sua casa rural em Rincón del Cerro, a 15 quilómetros da capital, rodeado de livros, pequenas esculturas, quadros e fotografias. Mujica recupera de um cancro do esófago. “Deram-me 31 sessões de radioterapia às sete da manhã, todos os dias. Acabaram com o cancro, mas deixaram-me com um buraco assim [desenha um círculo grande com os dedos, como uma laranja]. Agora o buraco tem de se fechar e eu sou um velho, tenho 89 anos. Até estar completamente fechado, não consigo comer. Tenho de cuidar dele até endurecer.” Não esconde o mau humor pelas sequelas da doença, que o deixam “sem energia”. 

Minutos depois, Mujica volta a ser o de sempre: o político e o filósofo.

Em algum momento da vida perde-se o medo da morte?
A morte é uma senhora complicada, que não perdoa e está sempre à espreita. Mas, se não existisse, a vida não teria tanto sabor, seria uma chatice. A grande questão é onde gastamos o nosso tempo. Porque, se o desperdiçamos... Qual é o sentido?

Encontrou o sentido da sua vida?
Dediquei-me a mudar o mundo e não mudei coisa nenhuma, mas entreti-me. E fiz muitos amigos e aliados nessa loucura de tentar mudar o mundo para melhor. Dei um sentido à minha vida. Vou morrer feliz por deixar uma geração [seguidores] que me supera largamente.

O que pensa de figuras ultraconservadoras como Trump, Milei ou Bolsonaro?
São o culminar da pregação ultraliberal que se transforma em libertarismo. Se o liberalismo é isso, é um lixo.

Encontrou a felicidade em viver com muito pouco…
Em viver com sobriedade, porque quanto mais tens, menos feliz és.

Mas o mundo parece ir na direção contrária...
O mundo está a caminho do hiperconsumo, porque é regido por uma lei: multiplicar o consumo das pessoas, porque isso é o que garante a acumulação. E isso não é viver.

E o que é viver?
Viver é amar, é ter o prazer de estar a perder tempo com outra pessoa. Viver é, quando se é velho, jogar às cartas com os amigos, falar de recordações. Sou um estoico, filosoficamente falando. A minha definição é a de Séneca: ‘Pobre é quem precisa de muito’.

Quando Mujica saiu da prisão, em março de 1985, já em democracia e após 13 anos preso, sabia que queria comprar uma quinta no campo, longe da cidade. Em janeiro de 1986, ele e a mulher mudaram-se. Nunca mais saíram, nem quando Mujica foi presidente.

Por que ficaram na quinta?
O Estado dava-me um palacete com quatro ou cinco pisos, onde, para tomar um chá, era preciso fazer uma expedição. Então, decidi ficar aqui. Sei que sou um louco para os dias de hoje, mas não tenho culpa do mundo em que vivo.

O que lhe diziam os outros presidentes?
Respeitaram-me muito, mas achavam-me um bicho estranho. Quando fui falar com o rei da Noruega [em 2011], estavam à minha espera com uma gravata. Quando lá cheguei, disse à delegação: ‘Voltamos para trás’. E o tipo recuou, guardou a gravata, e fui falar com o rei. Não sou contra a gravata, mas contra ser obrigado a usá-la.

Que líder mundial mais o cativou?
Lula, de quem sou amigo até hoje. E, curiosamente, tenho de falar bem de Barack Obama.

Por que “curiosamente”?
Era um homem inteligente e que falava. Estive com ele três vezes e tivemos conversas muito interessantes. Reconheceu-me certas coisas. Disse-lhe que era preciso ajudar a desenvolver a América Central, não travar a imigração. E ele respondeu: ‘Tem razão, mas convença os republicanos disso’. Ele via os problemas.

No Brasil está o seu amigo Lula, mas também há Milei na Argentina e a crise na Venezuela. Como vê a situação da América Latina?
O panorama é, infelizmente, complicado. Porque nos unimos muito pouco e não existimos no mundo. Tivemos uma oportunidade com Lula, que é uma figura mundial com certo prestígio, mas não a aproveitámos. Na política internacional, não servimos nem para trazer o café. Precisamos de nos unir para nos defendermos, mas a agenda nacional consome todo o tempo.

Rafael Correa, Cristina Kirchner, Evo Morales, o próprio Lula… Por que não deixaram sucessores?
Cansei-me de dizer que o melhor dirigente é aquele que, ao desaparecer, deixa uma geração que o supera largamente. Porque a vida continua e a luta também, não acaba connosco. O dirigente deve semear e dar oportunidades para que o substituam. Sei que continuo a ser uma figura de peso, mas abri caminho. Agora, o que vai acontecer no futuro, quem sabe?

Por que decidiu virar a página sobre o passado?
Não viro a página; não gasto energia a cobrar, que é diferente. Não se vive de recordações. Na vida há feridas que não têm cura, mas aprende-se a continuar a viver.

Tem muitas feridas abertas?
Claro que sim, tenho coisas inesquecíveis, mas não as vou cobrar. Estive sete anos numa cela mais pequena que esta. Sem um livro, sem nada para ler. Tiravam-me uma ou duas vezes por mês para caminhar meia hora num pátio. Sete anos assim. Se fosse cobrar o que tenho para cobrar… Deus me livre.

Que mensagem deixa aos jovens?
Que a vida é bela, mas é preciso encontrar uma causa para viver. Pode ser a música, a ciência, qualquer coisa. Viver para pagar contas? Isso não é viver.

O que pede hoje à vida?
Que me cure disto. E que ainda consiga “ladrar” um pouco, dar algumas ideias.

El País17 Nov 2024 Federico Rivas Molina | Gabriel Díaz Campanella

Irracionalmente as Pessoas Votam em Quem as Quer Destruir

Este texto de Antonio Muñoz Molina no El País de dia 16 de Novembro, fala sobre as cheias em Valência, e como os valencianos votaram em quem atentou contra os seus interesses, mas poderia ser também sobre os mais jovens que votam em partidos que favorecem a especulação imobiliária, ou sobre os pobres que votam em políticos que defendem os interesses dos mais ricos do mundo, ou sobre os pretos que votam em políticos racistas ou sobre gays que votam em políticos homofóbicos. Este texto é sobre a irracionalidade reinante nos dias de hoje, em que os cidadão, hipnotizados pela agenda dominante dos média e das redes sociais, conseguem votar naqueles que os querem destruir. 


 A retaguarda protetora, a arrière-boutique para a qual Montaigne nos encoraja a retirar-nos de tempos a tempos, não precisa de ser um quarto solitário nem um espaço fechado. O próprio Montaigne, apesar do afastamento dos assuntos mundanos que escolheu aos trinta e poucos anos, continuou muito viajado e ativo até ao fim da vida, que foi ceifada por uma feroz cólica nefrítica. Montaigne percorreu a Itália a cavalo com uma pompa principesca, envolveu-se em assuntos públicos e em diplomacias cortesãs secretas, andou de um lado para o outro com a família e os criados, tentando escapar ao flagelo das guerras religiosas e da peste. E, quando permanecia no seu castelo, nem sempre estava isolado com livros e papéis na torre circular onde tinha instalado a sua biblioteca. Como senhor feudal, não escrevia à mão, mas ditava a um secretário. Das janelas da torre, podia observar a vida nos pátios e galerias do castelo e vigiar as vinhas e florestas das suas propriedades, sempre alerta para a possibilidade de que, por aqueles caminhos traçados sobre a terra fértil, surgissem grupos de bandidos a cavalo ou fanáticos armados das várias seitas religiosas.

Embora a forma dos ensaios de Montaigne fosse o monólogo, quase um fluxo de consciência, o seu instinto não era de isolamento, mas de conversação. Dizia que escrever, para ele, era como começar a falar com um desconhecido na rua. E na origem das suas reflexões e ideias estava um propósito de diálogo frustrado, pois Montaigne quis sempre continuar a conversar com o seu grande amigo e amor da alma, Étienne de La Boétie, que morreu quando ambos eram ainda muito jovens. Nele, Montaigne encontrou, como Adolfo Bioy Casares escreveu sobre outra amizade, “a pátria da sua alma”.

Montaigne não cultivou a tolerância, a liberdade de espírito ou a irreverência face aos dogmas numa atmosfera cultural favorável a esses valores. Fê-no contra a corrente da terrível maré dos tempos, quando protestantes e católicos se massacram com fúria idêntica, e o destino certo de qualquer dissidência era a tortura e a fogueira. O defensor e propagandista dos livros, felizmente multiplicados pela imprensa, que devolviam ao mundo a sabedoria e beleza dos autores gregos e latinos, viu como livros condenados ardiam nas mesmas chamas onde se queimavam os seus autores. E também viu como outros livros propagavam não o conhecimento, mas o obscurantismo, envenenavam consciências, incitavam ao extermínio e forneciam justificações teológicas. Gravuras rudes representavam os inimigos como canibais, ratos, bruxas espetadas em tridentes demoníacos, ou criaturas excrementícias vestidas de frades e freiras, emergindo do traseiro elefantiásico do Papa.

A retaguarda, infelizmente, não é uma escolha, mas um privilégio e, também, um golpe de sorte. Não há espaço para bastidores para as pobres gentes martirizadas de Gaza, agora sujeitas a um cerco de fome, além do terror das bombas; nem houve, há duas semanas, para aquela multidão que, em poucas horas, na província de Valência, viu as suas vidas devastadas por um dilúvio universal que não era só de água, mas de lama, lixo e carros esmagados como brinquedos ridículos. Os antigos conheciam os golpes súbitos de crueldade impessoal da natureza e, sem outro recurso intelectual além de os atribuir à malevolência dos deuses, ao menos tinham acumulado, ao longo dos séculos, as sabedorias necessárias para atenuar a destruição, limpando leitos de torrentes, desenhando ruas e construindo edifícios que, em vez de barreiras ou armadilhas mortais, pudessem ser escoadouros para o colapso das águas, respeitando dunas, pântanos, espécies vegetais e ambientes resistentes e flexíveis às invasões do mar. Precisamos de uma retaguarda, mas somos tão vulneráveis à irracionalidade dos poderosos como às catástrofes naturais, percebendo cada vez mais que uns são tão perigosos quanto as outras, numa escalada assustadora cujo desfecho desconhecemos.

Na véspera da calamidade de 29 de outubro, as principais medidas ambientais do governo valenciano foram extinguir um organismo regional de emergências, cortar fundos dedicados à prevenção e autorizar novas construções ainda mais próximas do mar, seguramente com o objetivo prático de serem varridas rapidamente pelas tempestades, desde que os construtores tivessem tempo de receber os seus lucros e os vereadores e altos cargos corruptos recolhessem as devidas comissões.

Aqui, como em todo o lado, a irracionalidade e a cegueira parecem contagiar uma grande parte da cidadania. Os mesmos que mais sofrem com as alterações climáticas votam massivamente em demagogos que as negam, instigados pela turba macabra da extrema-direita e financiados pelas oligarquias do petróleo, agora aliadas aos antigos apóstolos bondosos das empresas tecnológicas. Nas zonas mais castigadas pelos furacões no sudeste dos Estados Unidos, de Florida às Carolinas, os moradores mal saem das suas ruas inundadas e casas em ruínas para votar em Donald Trump, com o mesmo entusiasmo com que os israelitas estão prontos para votar, assim que possível, em Benjamim Netanyahu e na sua coorte de supremacistas vingativos.

Ligamos o telejornal, e a nossa neta Leonor, de seis anos, que quer ver desenhos animados, pergunta porquê. Quando lhe dizemos que queremos saber o que se passa no mundo, ela fica séria e responde: “Pois eu não gosto do que se passa no mundo.” Nós também não. Assistimos às notícias com apreensão e, às vezes, durante o pequeno-almoço, lemos o jornal em papel ou digital e ouvimos a rádio. Mas o desejo de saber e compreender acarreta o perigo de sermos inundados não apenas pelas informações ameaçadoras, mas pelo lodo pútrido das mentiras, calúnias e bulos, sustentados com fria desfaçatez por quem aprendeu a encobrir a sua incompetência e corrupção acusando outros de serem corruptos. Nesse telejornal que a menina quer que desliguemos rapidamente, vejo Alberto Núñez Feijóo a culpar Pedro Sánchez e Teresa Ribera pela tragédia de Valência. Essa expressão de sarcasmo turvo e máscara de borracha provoca-me um repúdio físico, como uma má digestão. Há graus de vileza que talvez surpreendam, secretamente, até quem os pratica.

Por isso, é necessário recolhermo-nos nos bastidores, desligar a rádio, apagar a televisão, ou deixar que as crianças vejam os seus desenhos animados, buscar o silêncio, passear pelo campo numa manhã de novembro, observar com a paciência de um botânico os últimos abelhões sobre as pétalas desfeitas das últimas dálias, ler um conto às crianças ou assisti-las nas suas leituras. 

Ler Montaigne ou o seu parente espiritual, Miguel de Cervantes. Enviar dinheiro à Cruz Vermelha de Valência. E também sair dos bastidores para nos manifestarmos por um ar limpo, uma habitação digna, cidades não colonizadas por especuladores ou turistas, uma educação pública crítica e humanista para todos, um serviço nacional de saúde universal a salvo dos mercadores, um mundo habitável e justo onde, oxalá, essas crianças possam viver quando forem mulheres adultas e nós já não estivermos cá.