sábado, 24 de maio de 2025

A Ditadura em Curso nos Estados Unidos

No mesmo dia, duas entrevistas a duas artistas dos Estado Unidos na imprensa espanhola. Joan Baez e Coco Fusco e as duas vão no mesmo sentido: a ditadura já está em marcha.



"No documentário I Am a Noise (2023), Joan Baez fez um exercício de honestidade ao revelar segredos da sua vida, como o facto de, aos 50 anos, ter percebido através de hipnose que possivelmente tinha sido abusada em criança pelo pai, um reputado cientista mexicano — o que talvez explique as crises de ansiedade, as insónias, os ataques de pânico e o transtorno dissociativo de identidade que a acompanharam durante a adolescência e juventude.

Dois anos depois, a lendária poeta, cantora e activista publica agora "Quando vires a minha mãe, convida-a para dançar", uma colectânea de poemas escritos ao longo da vida pelos seus múltiplos “eus” - as várias Joans jovens que observavam o mundo com um olhar poético. A mãe guardou todos esses pedaços de papel com escritos e desenhos, e um dia ela decidiu mergulhar nessas experiências vitais. A “rainha da canção de protesto” conversa com La Vanguardia por videoconferência, desde a sua casa em Woodside, São Francisco.

Neste livro aparecem as suas irmãs, a sua mãe, o pai, amizades... Sente que é uma forma bonita de reunir uma vida?

Sim, estou contente por ele ter saído. Parte é escrita pelo “eu” adulto, mas basicamente são as outras entidades. É como apreciar a escrita de outra pessoa. Algumas assinam com nomes, outras apenas reconheço. Mas desde que me tornei uma pessoa inteira, já não consigo escrever assim, com essa magia que vinha das outras entidades dentro de mim — o que me entristece. E também me faz feliz ler.

Publica-o como terapia?

Não tinha um objetivo claro. Não me lembro se alguém me disse: “Vais publicar isto num livro?”. Mas montá-lo foi uma loucura: a poesia estava por todo o lado - no armário, debaixo da cama, no escritório, no armazém... Foi um processo longo. Acho que não me apercebi da profundidade que isso tinha para mim e de quão problemático foi para aquelas “pessoas interiores”, porque tive reações diferentes. Mas, sobretudo, não tive reação nenhuma - o que não fazia sentido, dada a natureza do material. Foi um desafio. E só percebi quão desafiante tinha sido ao vê-lo com alguma distância.

Que tipo de reações teve?

A maioria inconscientes. Sentia-me bem, e de repente já não me sentia assim tão bem, e pensava: “Porquê?”. Grande parte estava relacionada tanto com o filme como com o livro, e com expor toda a minha vida. Mas não faz sentido voltar à terapia à procura do detalhe. Não quero gastar energia nisso. Vivo a minha vida sem regressar a esse passado.

Esteve brevemente casada. Sente-se bem sozinha...

Já são 50 anos. E acho que cada vez é mais aceite. Quero dizer, já não é estranho nem mau que uma mulher diga que prefere estar sozinha. Se tivesse sido capaz de manter uma relação, teria sido bom. Mas não fui. Por isso, estou confortável sozinha. Tenho amigos por perto. O meu filho, pelo menos por algum tempo, esteve por perto. E tenho outras pessoas na minha propriedade que cuidam de mim. Viver sozinha para alguém sem qualquer ligação com o mundo seria outra coisa - não sei como me sentiria nessa situação.

O livro é também uma ode à sua mãe, que veio da Escócia com dois anos. No poema final pede a Jussi Björling, o tenor de que ela tanto gostava, que a convide para dançar. De onde vem essa fantasia?

Eu também volto sempre a esse tenor. A minha mãe dizia que ele tinha lágrimas na voz. E quando visitei o pequeno museu dedicado a ele nos arredores de Estocolmo, vi que era conhecido por isso - mas nós não tínhamos acesso a essa informação, simplesmente era assim que o sentíamos. Aos cinco ou seis anos, a sua música enchia a casa. E eu via - como aparece no poema - que a minha mãe largava tudo, suspirava fundo, e parava para ouvir. Foi daí que surgiu essa fantasia. A sua tristeza ligava-a àquela música. Porque naquela idade, e onde vivíamos, não lhe era permitido sentir essas tristezas.

Não tinha tempo.

Exactamente. À medida que falo, apercebo-me de mais coisas, porque nunca o tinha pensado assim.

Diria que os abusos em criança foram a origem da sua falta de auto-confiança, se nem sequer conseguia torná-los conscientes?

É que não te lembras durante o dia do que aconteceu à noite. Vives a vida como os outros miúdos… mas eu estava sempre exausta na escola e não fazia ideia porquê. Nessas situações sentes-te diferente. Os outros parecem ser o que devias ser, mas não há forma de o conseguires. Sentes-te inferior. Uma das coisas mais tristes que resulta do abuso é essa sensação de não seres suficiente. Porque só te lembras do tempo entre acordar e adormecer. E é depois que as coisas acontecem. É complicado, porque amas os teus pais. Ele era mais difícil de perdoar. Ela estava naquele papel que muitas esposas acabam por assumir: não conseguem travá-lo nem ajudar os filhos. A minha mãe não nos protegeu. Não podia.

Começar a sua carreira aos 17 anos foi uma forma de escapar à escuridão?

Acho que sim. Era o mesmo que me acontecia com o desenho. Comecei aos cinco. Há um desenho maravilhoso que encontrei no sótão: uma menina parada ao vento, a pipa vai numa direção com o vento e o cabelo noutra. Só me apercebi desse detalhe depois dos 50 anos. Mas é um bom desenho. Também fazia vacas com úberes enormes, uma atrás da outra… com um índio sentado num tipi. Desde pequena que ficaram muito sofisticados. Depois veio o ukulele, que recebi aos 13: tocava dia e noite, debaixo do cobertor, na cama… Depois passei à guitarra e foi igual. Era um prazer perceber que tinha jeito. A minha voz só se desenvolveu aos 15 ou 16. Era doce, mas ainda não forte.

Cantava em casa com as suas irmãs?

A minha irmã mais velha era muito tímida, não participava. Mas a Mimi e eu sentávamo-nos juntas durante horas. Há muito poucas pessoas com quem a voz se sente assim tão confortável. Só conheci mais duas com quem isso aconteceu. Era algo orgânico, fluía. Depois, o meu pobre pai… queria que a família se juntasse a cantar cânticos de Natal. Mas não queríamos estar em modo “família feliz”. Fazíamos tudo para o evitar: cantar mal, ir preparar leite quente, o que fosse.

Suponho que viu A Complete Unknown, sobre Bob Dylan (e também sobre si).

Bem, o importante é lembrar que é um filme. Porque os meus amigos estavam a defender-me, a verificar os factos, e eu dizia: “É um filme”. Algumas coisas estão bem feitas, outras não. O único problema é que isto acontecia em plena luta pelos direitos civis. Era 1963, o país estava a explodir, e não há qualquer referência. Mas por outro lado, era assim quando estavas perto do Bob: não havia mais nada, o resto não importava. O que provavelmente explica por que não me sentia confortável lá.

Mas a autenticidade que transmitem em palco fascina as novas gerações, saturadas de impostura.

Nesse sentido tem sido muito útil, sim, ficam boquiabertos. Qualquer miúdo com um mínimo de sensibilidade musical fica maravilhado com a música do filme. Mas a minha visibilidade é enorme - chega a ser ridículo. Mas tudo bem, dá-me uma segunda vida entre os jovens. Adoro, se algum miúdo me quiser fazer perguntas, respondo com todo o gosto.

Quando era jovem estava muito envolvida com o Vietname, os direitos civis, Martin Luther King... Onde está a juventude nesta América de Trump?

Estamos em estado de choque. Muitos começam a perguntar-se se isto está mesmo a acontecer. Os maggots [em alusão aos apoiantes do Make America Great Again] fizeram como tinham planeado. Todos os dias há algo novo, repugnante, prejudicial, cruel. Estamos a tentar manter-nos firmes e ser decentes num tempo em que até a palavra “empatia” virou insulto - para eles significa pena, fraqueza. Eu trabalho com um grupo de apoio a famílias de deportados, já não têm o homem que trazia o sustento. As comunidades ficaram espalhadas: latinos que trabalham aqui na aldeia assistem à Fox News. “Vai ser difícil por um tempo, mas depois tudo ficará bem”, dizem. Eu distribuo cartões: “Conheça os seus direitos”. E quero trabalhar com advogados - são o nosso único muro de contenção. Ainda podem entrar nas prisões, visitar os deportados. E em breve vou partilhar no meu Facebook formas de ajudar, locais onde fazer voluntariado, para tirar as pessoas deste estado de paralisia. O problema é que o risco é alto... “Junta-te à marcha, se fores preso, ótimo”, dizíamos nos anos 60. Na prisão cantávamos e dávamos flores aos polícias. Hoje, se incentivares alguém a correr riscos, tens de ter cuidado: pode acabar num buraco de cimento para o resto da vida. É isso que está a acontecer. Não é que venha uma ditadura. Uma ditadura, com outro nome, já está em andamento.

Entrevista de Maricel Chavarría a Joan Baez, publicada a 23 de Maio no jornal La Vanguardia



"À artista e escritora Coco Fusco (Nova Iorque, 64 anos) não surpreende o silêncio da cultura norte-americana perante as políticas repressivas de Trump. “Os americanos não têm experiência com a censura. Embora pessoas como Robert De Niro, Bruce Springsteen ou Taylor Swift estejam a falar, a maioria dos meus colegas está naquela fase do ‘isso não é verdade’ ou ‘isso não me vai acontecer’. É lógico. Quando chega o sistema autoritário, se algo acontecer, pensamos sempre que será com os outros”, contou ontem a norte-americana de ascendência cubana, sentada num sofá numa das salas da retrospetiva que reúne 30 anos da sua obra e que hoje é inaugurada no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba).

As suas obras já passaram pela Bienal de Veneza, pela Bienal do Whitney em Nova Iorque ou pela de Sidney, e agora inaugura a sua primeira monografia em Espanha, mas Fusco sabe que, por muito reconhecimento internacional que receba, nada é garantido neste mundo. “Há artistas que acham que estão a salvo por terem uma grande exposição num grande museu ou por estarem a vender obras por um milhão. Para além de egoísta, é pouco racional. Nos anos 30 também havia muitos judeus ricos e o dinheiro não os protegeu”, acrescenta. A sua é uma atitude de resistência ativa que define até o nome da mostra, Aprendi a nadar em seco, uma metáfora sobre a sobrevivência face a tudo e que homenageia a primeira frase de Natação, um conto de 1957 do autor cubano Virgilio Piñera.

Comissariada pela diretora do Macba, Elvira Dyangani Ose, em colaboração com o Museu del Barrio de Nova Iorque, a exposição permanecerá até 11 de janeiro. A monografia reúne mais de 100 obras de uma carreira multidisciplinar em que Fusco cruza antropologia, desobediência ativa e denúncia política através da performance, vídeo-arte e ensaio. A sua obra é um megafone contra a censura política, a degradação dos valores democráticos, a perversão das políticas migratórias e o peso da alteridade na herança colonial. “Os seus 30 anos de investigação sobre aspetos como identidade, pátria ou comunidade, bem como o apoio à literatura, poesia e cinema cubano reprimidos, são fundamentais não só para compreender Cuba, mas para prestar atenção ao nosso presente. A sua obra é um remédio necessário para um momento tão duro como o que vivemos”, resume Dyangani Ose sobre a relevância da exposição.

Se Fusco diz estar vacinada contra o espanto face às políticas autoritárias, é porque a repressão definiu, literalmente, a sua vida. A mãe, uma cubana que concluiu os estudos de Medicina nos EUA nos anos 50 e não quis voltar após a Revolução, engravidou dela para conseguir os papéis quando o visto expirou. “Tenho uma foto com um mês a chegar a Havana nos braços da minha mãe. O Governo dos EUA disse-lhe que tinha de regressar a Cuba quando eu nascesse para formalizar os novos papéis. A minha mãe deu à luz, voltou à ilha, deixou-me nos braços da minha avó e foi diretamente para a fila para pedir o regresso”, explica.

A artista passou a adolescência a lidar com a burocracia migratória e viveu a explosão cubana em Miami, onde o tio se instalou com os oito filhos e onde passava parte dos verões. Mas na universidade quis conhecer Cuba. “Precisava de me confrontar com essas histórias de horror”. Fê-lo em 1985, graças aos voos de reunificação familiar e ao vínculo com três artistas cubanos que tinham exposto obras em Nova Iorque. “Havia coisas chocantes, claro. Na minha primeira visita roubaram-me o passaporte e nalguns restaurantes não nos deixavam entrar por causa da roupa, mas liguei-me ao sentido de humor e à forma como negociam com a realidade. Voltei e voltei.”

Nessa viagem sedimentou-se a suspeita em relação ao relato triunfal da Revolução. “Nas três primeiras décadas, a maioria dos cineastas fazia muitos trabalhos a celebrar os seus feitos, eu identifico-me mais com os intelectuais e artistas que aplicam um olhar crítico ao processo”, esclarece.

A exposição do Macba abre com A praça vazia (2012), um vídeo inspirado nos protestos que encheram as praças da Primavera Árabe de 2011, onde se vê Fusco, sozinha e minúscula, numa desolada Praça da Revolução de Havana, a questionar-se sobre porque é que esse espaço se tornou num anfiteatro inóspito pisado apenas por turistas que tiram selfies. “Essa praça foi o teatro político de Fidel, mas o tempo degradou-a. Agora só se enche quando há uma celebração oficial ou um desfile militar. As pessoas estão tão mal que, se aparecem, é porque lhes oferecem uma t-shirt ou uma sandes”, comenta a artista.

Décadas de dissidência

Na mostra, a dissidência é explorada por décadas, desde A confissão (2015), sobre a detenção e confissão forçada, em 1971, do poeta contra-revolucionário Heberto Padilla, até ao projeto em colaboração com outros artistas para reivindicar Luis Manuel Otero, o preso político mais famoso de Cuba.

A carreira de Fusco, definida pela “aspiração partilhada” com outras vozes e artistas, pode observar-se na colaboração com Nao Bustamante e a sua visão das fantasias sexuais coloniais na figura das jineteras cubanas (Stuff, 1996–1999), ou na série fotográfica Paquita e Chata (1996), a sua versão viva das bonecas mexicanas Lupita, usadas para representar prostitutas. Essa representação do outro marcou também a sua relação com Espanha. Em 1992, durante dois anos, representou com Guillermo Gómez-Peña a famosa performance Casal na jaula: dois ameríndios visitam o Ocidente, onde ambos se disfarçavam de ameríndios e se apresentavam como uma curiosidade exótica dentro de uma jaula. Embora a jaula esteja agora no MoMA, esta sátira sobre o exotismo e o primitivismo não foi compreendida na altura. “Naquela época celebrava-se o multiculturalismo de forma muito folclórica, parecia que cada um tinha de representar a sua cultura quase como num anúncio da Benetton. Nós quisemos denunciar a colonização e a história dos zoológicos humanos, mas o público não percebeu”, explica.

A sua missão de denúncia não se expressa apenas na arte e nos textos. Desde Brooklyn, Fusco continua a intermediar entre migrantes que procuram asilo político. “No meu bairro há muitos centros de acolhimento e eu trabalho como voluntária como intérprete. O medo do migrante foi instrumentalizado. Eu sei o que eles fazem para sobreviver. E garanto-te que nenhum branco americano vai fazer o trabalho que faz um imigrante recém-chegado”.

Noellia Ramirez | El País 23 de Maio de 2025

Sem comentários:

Enviar um comentário