Dilema ético não é ser eleito primeiro-ministro e continuar a mamar avenças debaixo da mesa. Isso é outra coisa mais parecida com falta de vergonha na cara. Dilema ético é seres confrontado com a possibilidade de denunciares o teu próprio irmão e este ser condenado à morte. Esta é a história do irmão de Unabomber que o denunciou, e que, pela longa reportagem que o New York Times fez, me parece que, tantos anos depois não ficou em paz com o que fez...
Era maio de 1996, e David Kaczynski, conselheiro de jovens problemáticos no norte do estado de Nova Iorque, sentou-se para escrever uma carta ao seu irmão, Ted. Um mês antes, o seu irmão tinha sido chocantemente desmascarado como o enigmático Unabomber, responsável por uma campanha de atentados com explosivos que durou 17 anos e causou mortos e feridos por todos os Estados Unidos.
Ted Kaczynski, um matemático brilhante mas com perturbações mentais, que se tinha isolado anos antes numa cabana remota em Montana, fora detido graças a uma denúncia ao FBI, pondo fim a uma das maiores e mais dispendiosas caçadas humanas da história dos EUA. O denunciante do FBI foi David. Sentado em casa, em Schenectady, Nova Iorque, David começou a escrever a carta com lápis, consciente de que poderia ter de apagar e reescrever até acertar.
“Só podia imaginar o quanto o Ted me odiava”, recordou numa entrevista. Perguntava na carta se Ted o permitiria visitar, para tentar explicar.
“Queria dizer-lhe pessoalmente que sentíamos uma obrigação moral de parar a violência,” disse.
Ted recusou colocá-lo na lista de visitantes e, quando respondeu, foi para descarregar toda a sua raiva no irmão.
“Vais para o inferno porque, para ti, veres-te como realmente és será o verdadeiro inferno,” escreveu.
David lembra-se de ter ficado magoado, mas não surpreendido.
“A carta do Ted confirmou os meus receios,” disse. “Foi como o destino a abater-se.”
Tentou novamente, desejando uma resposta diferente. Durante quase três décadas, David escreveu ao irmão, anos marcados por nostalgia, arrependimento e intensa auto-reflexão.
Em entrevistas ao The New York Times, David falou pela primeira vez em detalhe sobre esta longa correspondência - dezenas de cartas, postais e livros que pensava que Ted acharia interessantes — numa tentativa de reabrir uma linha de comunicação que se tinha fechado com a denúncia ao FBI.
As cartas variavam entre o mundano e o profundo: memórias de jogos de basebol da infância, notícias da reforma de David, atualizações sobre a saúde da mãe envelhecida. Por vezes, lamentava com saudade o fim do laço forte que outrora partilharam.
“Esperava ter oportunidade de me encontrar com o Ted e explicar-lhe pessoalmente o que fiz e porquê,” disse David, de 75 anos, sobre a correspondência, parte da qual está arquivada na Universidade de Michigan, incluindo cartões de aniversário e de Natal. “Não esperava necessariamente que ele compreendesse o meu ponto de vista o suficiente para me perdoar. Mas pensei que ambos merecíamos uma oportunidade para nos olharmos nos olhos e partilharmos a verdade dos nossos princípios e sentimentos.”
DOIS IRMÃOS, UMA INFÂNCIA
Os irmãos Kaczynski, filhos de imigrantes polacos de primeira geração, cresceram em Evergreen Park, um subúrbio operário de Chicago. Os pais valorizavam muito a curiosidade intelectual, o sucesso académico e a vida guiada por princípios éticos.
A família tocava música em conjunto, como um quarteto, e os rapazes desenvolveram amor pela natureza. Mas David, sete anos mais novo, via o irmão como socialmente desajeitado e notava que Ted não tinha amigos para além dele. A mãe disse uma vez que Ted era extremamente protetor de David e que este parecia ser a única pessoa de quem ele gostava.
David lembrava-se desses anos nas cartas a Ted.
Academicamente e profissionalmente, os caminhos dos dois divergiram. Ted, um prodígio da matemática, entrou em Harvard aos 16 anos e depois fez mestrado e doutoramento na Universidade de Michigan. Tornou-se professor assistente de matemática na Universidade da Califórnia, em Berkeley, mas os problemas de saúde mental levaram-no a abandonar a carreira. David, que sonhava ser escritor, formou-se em Línguas na Universidade de Columbia em 1970.
David admirava o irmão, impressionado pela sua inteligência e independência, e queria ser como ele.
Ambos partilhavam o desejo de fugir da sociedade e refugiar-se na natureza. No verão de 1969, Ted convidou David para ir com ele ao Yukon, no noroeste do Canadá, à procura de terreno. Passaram semanas a explorar florestas e a conversar à volta da fogueira.
Pouco depois, em 1971, compraram um terreno nos arredores de Lincoln, Montana, onde Ted construiu uma cabana sem água nem eletricidade. David vivia a cerca de 145 km de distância, em Great Falls, onde trabalhava numa fundição de zinco. Ficou contente por ter o irmão por perto.
Havia equilíbrio entre eles. “O Ted guiava-me nas caminhadas, e eu ajudava-o nas interações sociais, por modestas que fossem,” disse David. “Acho que não percebi na altura o quanto me tornara importante na vida do Ted como seu único e melhor amigo.”
Mas David acabaria por sair de Montana. Depois de perder o emprego na fundição, aceitou um lugar como professor de Inglês numa escola secundária em Lisbon, Iowa, onde o pai tinha trabalhado.
Durante dois anos deu aulas, depois decidiu dedicar-se à escrita de um romance. Descrevendo-se como “anti-carreirista”, mudou-se para o deserto do Texas em 1982, inspirado pelo filósofo Martin Heidegger, e viveu em isolamento, durante quase oito anos, em condições primitivas - primeiro num buraco coberto com chapas de zinco, depois numa pequena cabana.
Viviam, ele e Ted, em universos paralelos. E trocavam cartas sobre as suas experiências.
A TRAIÇÃO DE UM IRMÃO
Os atentados começaram a 25 de maio de 1978, quando um segurança da Universidade Northwestern se feriu ao investigar um pacote suspeito. Outro engenho explosivo apareceu um ano depois. As primeiras vítimas sofreram ferimentos ligeiros; mas, ao longo da campanha, três pessoas morreram e 23 ficaram feridas.
David e a família nada sabiam da violência do irmão. Por volta de 1985, Ted cortou quase todo o contacto com os pais, acusando-os de o pressionarem demasiado e culpando-os pelo seu isolamento social.
Em 1990, após o pai se suicidar devido a um diagnóstico terminal, Ted telefonou à mãe a expressar condolências - um dos poucos gestos de contacto.
David, por seu lado, mudara-se para Nova Iorque, para viver com Linda Patrik, professora de Filosofia e antiga colega de escola. Quando contou a Ted que iam casar, recebeu uma carta furiosa a dizer que cometia “o maior erro da vida.” A seguir, Ted cortou todo o contacto com David.
Os ataques continuaram e as autoridades tinham poucas pistas. Mas em 1995, o Unabomber publicou um manifesto de 35 mil palavras, onde atacava a Revolução Industrial e os seus efeitos nefastos.
Linda levou David à biblioteca da universidade para ler o manifesto online. Era a primeira vez que usava a internet.
Linda perguntou: não te soam familiares algumas ideias?
David, embora a medo, começava a pensar o mesmo.
“Sem a Linda, provavelmente teria enfiado tudo numa gaveta,” disse.
Durante três meses, trabalhou com um investigador privado e um ex-especialista do FBI, até contactar um advogado que serviu de intermediário para alertar o FBI.
Ted foi preso seis semanas depois, em abril de 1996. Um acordo evitou a pena de morte, resultando numa pena perpétua sem possibilidade de liberdade condicional.
David escreveu-lhe pouco depois e recebeu uma resposta mordaz de três páginas, acusando-o de ser movido por inveja e ódio.
Mas David insistiu. Queria honrar uma promessa feita à mãe, Wanda: “Nunca abandones o teu irmão, porque é isso que ele mais teme.”
Sete meses após a detenção de Ted, David pediu desculpa:
Depositava dinheiro na conta prisional de Ted e enviava-lhe livros. Um deles, oferecido pela mãe no Natal de 2005, chamava-se Quem Encomendou Esta Carga de Esterco?. Ted riscou uma nota no rodapé da fatura: “Obviamente, isto foi direto para o lixo.”
Em 2007, David avisou Ted de que a mãe estava gravemente doente, implorando que a contactasse. Nunca houve resposta. Quando Wanda morreu em 2011, aos 94 anos, o capelão da prisão disse que Ted não queria falar.
NOVAS LIGAÇÕES
Sem conseguir chegar ao irmão, David encontrou amizade num lugar inesperado: Gary Wright, vítima de um dos atentados, que sobreviveu com mais de 200 estilhaços no corpo.
David e a mulher escreveram às vítimas a pedir desculpa. Poucos responderam. Um investigador sugeriu que ligasse a Gary Wright, que parecia aberto.
David ligou-lhe e falou durante 20 minutos. “David, não tens de pedir desculpa,” disse Gary. “Fizeste o que era certo.”
Foi um ponto de viragem. Tornaram-se amigos, visitaram o Hall da Fama do Basebol, falaram juntos em eventos contra a pena de morte e sobre o poder do perdão.
UMA CARTA NO NATAL
No Natal de 2021, uma carta de David para Ted foi devolvida. Estranhou. Soube então que Ted estava no Centro Médico Federal em Butner, Carolina do Norte - o maior complexo médico prisional dos EUA.
Descobriu depois que Ted tinha cancro terminal. Encontrou uma carta no Reddit em que Ted admitia: Não devo viver mais de dois anos, talvez nem um.
Escreveu-lhe com mais frequência: “Precisava de lhe dizer que o amava e como ele me influenciou positivamente.”
Na última carta, disse que as melhores ideias de Ted “sobreviveriam a todos nós.”
Em junho de 2023, depois de uma caminhada, recebeu a notícia: Ted suicidara-se. Sentiu um vazio.
“Uma relação unilateral é, ainda assim, uma relação,” disse. “Mas agora, se encontrar palavras para partilhar com o Ted, só as posso dizer a mim mesmo.”
Foi-lhe dito que Ted deixara instruções escritas e que teria de fazer um pedido oficial. Estava furioso.
“Denunciei o meu irmão ao FBI, salvando vidas,” escreveu. “Agora ignoram o meu pedido sobre os restos mortais dele? Isso é desumano.”
Ted tinha deixado um testamento manuscrito:
David ainda hoje não sabe o que foi feito do corpo do irmão.
"My brother, the Unabomber", publicado no The New York Times (International Edition), de 5 de Maio de 2025, por Serge F. Kovaleski (com investigação de Susan C. Beachy e Kirsten Noyes):
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