Para ilustrar com texto estas páginas de jornais de todo o mundo sobre a morte de Pepe Mujica (13 de maio), e que, diga-se, não teve, infelizmente, grande eco em Portugal, escolhi o texto de John Carlin intitulado "Habemus Pepem!" publicado no jornal espanhol La Vanguardia:
"Por que não um santo para os ateus? Por que não um papa secular? Tenho o candidato: Pepe Mujica, um homem que demonstrou que se pode ser cristão sem acreditar em Deus, que se pode viver uma vida mais de acordo com a mensagem de Cristo do que muitos - quase todos, atrever-me-ia a dizer – daqueles que o louvam todos os domingos diante de um altar.
Bom, é demasiado tarde para que Pepe seja Papa, já que acabou de falecer. Mas o ex-presidente do Uruguai tem os atributos para ser declarado um santo católico, salvo o detalhe de que não partilhou o mistério da fé santa. Não transformou água em vinho, que se saiba, nem conseguiu a ressurreição de nenhum morto, mas realizou milagres suficientes para ser nomeado santo honorário dos políticos.
O primeiro representaria uma enorme exceção à regra: nunca permitiu que o poder lhe subisse à cabeça. Não considerou que estivesse acima de qualquer outro ser humano, nem sequer de qualquer outro ser terrenal. Quando lhe perguntaram uma vez como gostaria de ser lembrado, respondeu: “Não me preocupa. Pensamos que somos importantes… não somos nem um grão de areia na magnitude do universo. Não sei por que razão haveríamos de ser mais importantes do que as formigas”.
O segundo milagre: nunca caiu na tentação, porque simplesmente não lhe interessava, de transformar o poder em riqueza pessoal. Longe de viver numa mansão com paredes de ouro ou de aceitar o presente de um Boeing 747 de um xeque do Catar, viveu até à sua morte, e mesmo quando era presidente, numa espécie de cabana e conduziu não um Mercedes, mas um decrépito Volkswagen Carocha.
Visitei-o na sua cabana – bom, chacra – há um ano, no campo, a meia hora de Montevideu. Cheguei à porta de entrada por um caminho de terra que, devido às chuvas, se transformou num lamaçal. O interior era escuro, os móveis pareciam mais velhos do que ele, aos seus 88 anos, e não havia espaço para uma sala de jantar nem para uma sala de estar. Recebeu-me, como a todos, na cozinha; o seu trono, uma pequena cadeira de madeira.
Como corresponde ao currículo de todo bom santo, tinha sofrido: quase quinze anos como preso político, sete deles em solitária, a mais absoluta das solitárias, sem sequer acesso a livros. Do sofrimento não extraiu rancor, mas sim um modo de viver com decência e generosidade. Aprendeu a riqueza da humildade, ou como ele a chamava: “o estoicismo”.
“É viver leve de bagagem, tentar cultivar uma sobriedade feliz, aplicar aquele velho princípio: ‘nada em demasia’… no fundo, é uma questão de liberdade, porque se estou submetido à necessidade, não sou livre”.
Não foi a primeira vez que pensei no bem que faria a muitos políticos passar algum tempo presos para refletirem sobre o que é importante na vida e possível na política. Mujica disse-me que, na solidão dos seus pensamentos, arrependeu-se das “loucuras” da sua juventude, loucuras do ego que outros políticos nunca abandonam. Tal como Nelson Mandela, aprendeu que o perfeito é inimigo do bom e que não devemos deixar-nos contaminar pela vaidade do poder.
Pensei também na injustiça da vida, no facto de que pessoas como Mujica e Mandela passaram, entre os dois, mais de 40 anos na prisão, enquanto que um par de personagens que me vêm à mente estão hoje em liberdade quando deveriam estar a cumprir prisão perpétua por corrupção, assédio sexual e insurreição armada ou por múltiplos assassinatos e sequestros de crianças, entre milhares de outros crimes.
Claro, nestes dois casos, nunca houve nada a fazer. Com eles, a minha regra das vantagens filosóficas do encarceramento cai por terra. Ou nasceram maus ou as circunstâncias da vida os fizeram maus. Hitler esteve preso (apenas nove meses, é verdade) e saiu mais determinado do que nunca a vingar-se da humanidade.
Talvez o Papa norte-americano não esteja tão de acordo com um dos principais motivos que eu proporia para que Mujica fosse rebatizado como São Pepe. Ao contrário de todas as outras personagens que a Igreja nomeou como santos, Mujica amou o próximo e viveu com humildade sem qualquer incentivo. Ele foi bom por ser bom, e ponto final. Sem antecipar recompensa nem no Céu nem na Terra. Pelo contrário, até desafiou a Igreja na vez em que falei com ele na sua cozinha.
“Eu penso – disse-me – que as religiões monoteístas fizeram um mal do caralho à humanidade. Geraram um fanatismo e uma intolerância profundas que se estendem ao mundo político”.
Isso, suponho, é o que se chama um pecado. Mas não deslegitima, creio eu, o direito que Mujica teria de dizer que viveu uma vida cristã no seu sentido mais essencial. Um Deus cristão consequente e justo (perdoem-me a heresia) poderia perfeitamente dar mais mérito a uma boa pessoa que não acredita na salvação eterna do que a uma boa pessoa que acredita. Ou estarei enganado?
Questões teológicas à parte, chamem-lhe santo ou chamem-lhe o que quiserem, Mujica oferece um exemplo a seguir raramente visto. Ele disse uma vez: “Dediquei-me a mudar o mundo e não mudei um caralho”. Enganou-se. Alguma coisa mudou – pelo simples facto de ter sido como foi. Deixou-nos a mensagem de que se um líder como ele pôde existir, podem voltar a existir mais. De que se alguém aspira a governar, não tem de ser um pobre narcisista cuja motivação consiste, em primeiro lugar, em alimentar a sua frágil vaidade. Mujica foi, acima de tudo, um homem seguro de si mesmo, um papa laico firme nas suas convicções morais, rico na pobreza, mais consciente da sua insignificância na magnitude do universo do que do seu imenso valor.
(Nome do Artigo: ¡Habemus Pepem! Publicação: La Vanguardia Autor: John Carlin | 18 de Maio de 2025)
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