sábado, 10 de maio de 2025

Esperávamos o Apocalipse Mas Foi Apenas a Luz que Foi Abaixo

 Mais um texto excelente sobre a nossa sociedade atual publicado no El País no fim de semana passado e que aqui vou deixar.

"Vivíamos como se fosse realmente o fim da história. Como se a prosperidade e a abundância fossem um facto viral incontestável, capaz de garantir o fim dos grandes conflitos, da luta pela sobrevivência. Íamos acabar com a fome, com o cancro e com a pobreza. A guerra e os regimes autoritários eram apenas uma espécie em vias de extinção. Era o ponto final da nossa evolução ideológica. A democracia liberal ocidental era a forma definitiva de governo. Depois vieram os atentados, a crise financeira e os furacões; a pandemia, os genocídios, a crise energética e os vulcões em erupção. Vimos o assalto ao Capitólio em tempo real pela CNN e pelas stories que os próprios assaltantes publicaram no Twitter, Instagram e TikTok. O fim da história tinha-se transformado no fim do mundo — em modo paródia. Parafraseando o verso mais famoso de T. S. Eliot: É assim que o mundo acaba. / É assim que o mundo acaba. / É assim que o mundo acaba. / Não com uma explosão, mas com um meme.

Começámos a fantasiar com um final abrupto. A comprar latas de conserva e comprimidos purificadores de água, ligaduras com antibiótico, canivetes suíços e lanternas LED. Queríamos aprender a fazer coisas com as mãos, sem usar a internet. Se tudo corresse mal, iríamos para a casa da aldeia cultivar uma horta com um cão, três galinhas e uma vaca. Os preppers (preparacionistas) recomendavam comprar uma espingarda, uma antena e um gerador. O apagão apanhou-nos todos desprevenidos, a escrever e-mails, comprar fraldas, esperar aviões e reciclar garrafas de plástico. Acabámos a ouvir o rádio a pilhas com os vizinhos numa praça ou varanda do bairro. Nas horas seguintes, a incerteza dissolveu-se no puro prazer de estarmos juntos, desligados do telefone, suspensos num estado colectivo de alegria e desamparo. Os sinais do apocalipse raramente são tão confusos. Esperávamos o apocalipse, mas apenas foi abaixo a luz.

Os sistemas que nos permitem aceder a água potável, eliminar águas residuais, comunicar instantaneamente com qualquer pessoa ou deslocar-nos rapidamente para qualquer lugar são invisíveis — até falharem. Quando falham, a crise deixa de ter ambiguidades. Quando se corta a eletricidade, deixamos de funcionar. A distopia é mais intuitiva e, durante muito tempo, manifesta-se sobretudo nas contradições. Por exemplo: a economia e a população crescem, mas o planeta está a desaparecer. As empresas mais lucrativas e com mais futuro são as que menos pessoas empregam. Porque é que a Apple tem menos de 200.000 trabalhadores, quando o El Corte Inglés emprega mais de 80.000, e paga menos impostos do que uma padaria de bairro? Vivemos saturados de notícias, mas cada vez é mais difícil saber o que está a acontecer. Os líderes políticos são as principais fontes de desinformação. Conseguimos editar ADN e prever a estrutura das proteínas, mas em países como os Estados Unidos, a esperança média de vida está a diminuir.

Geram-se mais dados do que nunca, mas o poder tornou-se completamente opaco. A inteligência artificial é intangível e infinita, mas trouxe-nos de volta formas de exploração vitorianas. Vivemos sob um regime de controlo e vigilância imposto pelos mesmos sistemas que prometiam salvar-nos. Entre os mais pobres, muitos votam em candidatos que prometeram acabar com o contrato social. Vamos conquistar Marte num futuro que fantasia com o passado mais retrógrado e imperial. É a vida de sempre, mas nada parece como antes. A resistência soa exagerada. Somos infinitamente adaptáveis — sabemos viver com a inquietação.

O apocalipse é um acontecimento revolucionário que muda tudo num instante. A vida que sobrevive tem de se reinventar do zero. Um regresso às origens, onde já não existe contrato social. A distopia é um processo muito mais subtil. É uma utopia que se torce até se tornar no oposto daquilo que afirma representar. O apocalipse é um acidente, um castigo divino, ou pelo menos a consequência lógica de um deteriorar irresponsável no qual todos participámos. A distopia é um exercício de destruição deliberada que se faz passar por degradação natural — e que pode passar despercebida se não estivermos atentos. 

A literatura distópica oferece-nos ferramentas para interpretar os sinais, e anticorpos para resistir à lógica implacável das suas engrenagens. Graças a George Orwell e Aldous Huxley, Philip K. Dick, Franz Kafka e Margaret Atwood, reconhecemos os ingredientes com que se constrói uma nova era de opressão.

Os sinais são inequívocos, uma vez identificado o padrão. Reconhecemos em 1984 as formas de controlo dos corpos através da vigilância permanente. A eficácia política do panóptico, cuja genialidade é fazer com que o povo vigie o próprio povo, interiorizando a sua própria repressão codificada como educação, ambição e outras expressões de estatuto numa hierarquia que todos querem escalar. Mas também as formas mais subtis de controlo do pensamento — através da manipulação da linguagem, da reescrita constante da história, do uso oportunista da nostalgia para justificar a violência. Quem controla o passado, controla o futuro. Entendemos a importância dos nomes e o ato de nomear como forma de resistência íntima. Como disse Ursula K. Le Guin ao receber a Medalha de Contribuição Distinta às Letras Americanas: “Precisamos de escritores que se lembrem da liberdade.”

Admirável Mundo Novo identifica o entretenimento, o consumo e outras iterações compulsivas típicas do nosso tempo como partes de um sistema de automedicação. Para quê amedrontar a população, se é tão fácil distraí-la com séries da Netflix, jogos de futebol e debates televisivos sobre género e transversalidade? Reconhecemo-nos nessas fórmulas massivas mas subtis de consolo — através do prazer imediato, do debate inconsequente, do sexo desligado e da prática de rituais sem comunidade. Nesse sentido, não há mundo mais feliz do que o estado de confinamento, quando as plataformas digitais expandiram os seus domínios sobre os escombros do colapso, estabelecendo os limites literais do possível em todos os aspectos da nossa vida: social, laboral, emocional, intelectual. Como explica Hannah Arendt em A Condição Humana, o espaço público é o espaço da aparição.

Apóstolo da paranoia, Philip K. Dick antecipou a pós-verdade em todos os seus contos, descrevendo a tecnologia e os meios de comunicação como veículos para impor realidades paralelas sobre a percepção humana. Propôs a depressão e a loucura como os nossos únicos anticorpos num mundo interpretado e corporativo de consciências artificiais, antes de Mark Fisher as classificar como sintomas estruturais do capitalismo tardio. The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), de Margaret Atwood, identifica o ataque aos direitos reprodutivos e sexuais como o canário na mina de uma regressão iminente. Também nos lembra que até as redes mais pequenas são actos políticos capazes de projectar a liberdade para lá dos seus limites. O oposto do totalitarismo não é a sobrevivência, mas a solidariedade.

Todos os relatos distópicos alertam para a sua temporalidade enganadora. “Disseram que seria temporário, mas nada muda de repente”, diz Offred, a protagonista do romance de Atwood, para explicar como deixaram que a democracia colapsasse sem oferecer resistência. É o mesmo processo de adaptação que descreve Hannah Arendt — uma mistura de indiferença calculada, baseada em princípios de cortesia e conforto. Tudo parece avançar gradualmente, num processo de mudanças tão incrementais que se infiltram silenciosamente no quotidiano, reconfigurando a realidade enquanto fazemos maratonas de Netflix e debatemos sobre nadadoras trans ou a saudação nazi de Elon Musk. A continuidade e acessibilidade das rotinas superficiais tranquilizam-nos até que, subitamente, há uma aceleração vertiginosa e tudo parece desencadear-se de uma vez. Parece um acontecimento, mas é a conclusão lógica de um processo muito anterior.

Os grandes apagões funcionam como elemento simbólico, mas também nos ajudam a diagnosticar — porque revelam algo sobre as ordens sociais. Dizem que o famoso apagão de Nova Iorque, no verão de 1977, originou saques generalizados que expuseram as tensões sociais de uma cidade marcada pelo desemprego e pela crise económica. Como muitos notaram esta semana, não foi isso que aconteceu aqui. Seguindo a linha mediática das semanas anteriores, pareceria que ficámos sem luz nas piores circunstâncias: ausência de futuro, de valores, de sentido; num estado de incerteza e desamparo. Um mundo onde a tecnologia nos ultrapassa, a política nos satura, a comunidade nos enfurece. Quando mais ansiávamos por uma explosão. E, no entanto, Espanha conseguiu ultrapassar o apocalipse sem lutas, pilhagens ou acidentes de viação — sentados à volta de um rádio que nunca parou de emitir. Nas suas Teses sobre a Filosofia da História, Walter Benjamin diz que cada segundo é “a pequena porta no tempo por onde pode entrar o Messias”. Há muita luz nesta escuridão.

"Luzes para entender as nossas fanasias distópicas" | Marta Peirano | 4 de Maio 2024 | El País

Sem comentários:

Enviar um comentário