sábado, 8 de fevereiro de 2025

Pensa Por Ti Próprio - Pensa Como Nós

Mais uma excelente crónica publicada no fim de semana passado no jornal espanhol El País.
 

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Imaginemos dois momentos marcantes na história da tecnologia e, portanto, da humanidade. No primeiro, assiste-se a um famoso anúncio de televisão. Enquanto se sucedem imagens a preto e branco de ícones como John Lennon, Pablo Picasso ou Maria Callas, o ator Richard Dreyfuss recita um poema:

“Isto é para os loucos. 
Os desajustados. 
Os rebeldes. 
Os agitadores. (…) 
Porque eles mudam o mundo. 
Eles inventam. 
Eles imaginam. 
Eles curam. 
Eles exploram. 
Eles criam. 
Eles inspiram. 
Eles impulsionam a humanidade para a frente.”

O anúncio termina com o slogan Think Different, Pensa Diferente. O ano é 1997, e Steve Jobs acaba de regressar à Apple.

A segunda cena é mais recente, de há algumas semanas. A Apple é agora a empresa mais valiosa do mundo na Bolsa, e o seu presidente, Tim Cook, um firme defensor da igualdade de género, raça e orientação sexual, observa com expressão séria a segunda tomada de posse de Donald Trump como presidente dos EUA. Como o resto da elite tecnológica, também ele fez doações para a campanha. Perto dele, estão Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai e Sergey Brin (Google), Elon Musk (X, SpaceX, Tesla) e Sam Altman (OpenAI). No dia seguinte, Trump posa para uma foto com este último e com Larry Ellison (Oracle), e anuncia um enorme investimento em inteligência artificial para garantir a liderança tecnológica dos EUA nas próximas décadas.

Juntos, todos eles representavam o fim do discurso da defesa das liberdades sociais por parte das empresas tecnológicas, que nasceram na Costa Oeste dos EUA, capitalista, mas também livre e radicalmente inovadora. Um dia, reivindicaram a diferença. Steve Jobs não viveu para ver este momento nem o crescimento das pseudociências modernas. Morreu jovem, de um cancro no pâncreas pouco agressivo, que optou por tratar fora da medicina convencional.

Os grandes líderes de Silicon Valley já não nos incentivam tanto a "pensar diferente", mas sim a reconhecer a visão superior de um empresário multimilionário ou de um líder autoritário. A ideologia do Silicon Valley disfarça-se de pensamento crítico e, através das suas próprias redes, exporta-se como propaganda para todo o mundo. Está por trás de frases como "pensa por ti próprio", "faz a tua própria investigação" ou "não deixes que pensem por ti", elementos-chave na desinformação, no pensamento conspiratório e na polarização que definem o nosso tempo e alimentam populismos. Uma vez desprezado o consenso social sobre o conhecimento, explora-se o apelo de soluções simplistas baseadas num individualismo extremo.

O que aconteceu? O que mudou em Silicon Valley para que a sua mitologia de criatividade e independência se tenha transformado numa ferramenta de obediência populista?

TRÊS FASES DE SILICON VALE

A resposta vem da Califórnia - onde o sociólogo e ex-ministro das Universidades Manuel Castells se encontra evacuado devido aos incêndios. Ele, um dos maiores historiadores da internet, descreve três fases.

Na primeira fase, da qual emergiram figuras como Steve Jobs e Bill Gates, “o empreendedor era o modelo e a inovação o objetivo, mais do que o dinheiro. O individualismo coexistia com valores sociais como o feminismo, o ecologismo e a tolerância sexual e religiosa”.

Nos anos 90, consolidaram-se as grandes empresas, que acabaram por se tornar oligopólios. “Embora pregassem inovação e liberdade, na realidade, a acumulação de capital e o lucro tornaram-se as ideologias dominantes: tornaram-se capitalistas e empresários mais do que inovadores, embora mantendo um discurso liberal e tolerante.”


Desde 2010, entrámos numa terceira fase. Castells aponta que o 5G, os satélites e a inteligência artificial impulsionaram uma nova geração de inovadores de sucesso rápido: a chamada PayPal Mafia - um grupo de empreendedores que começou na empresa PayPal antes de lançar outros projetos. Entre eles, Elon Musk, Peter Thiel e Marc Andreessen.

“Estes tecnocratas não querem apenas inovar, querem o poder total”, explica Castells.

A sua ideologia defende que os "melhores cérebros" - eles próprios - devem afastar "a plebe ignorante". Esta é, segundo Castells, a base da sua aliança com Trump.

São tecnocratas libertários que querem ocupar o Estado para impor o seu projeto. São perigosos porque estão convencidos, têm poder material e, acima de tudo, ambicionam poder.

Na posse de Trump, Musk atraiu todas as atenções ao ser nomeado chefe do recém-criado Departamento de Eficiência Governamental, após um gesto no palco que fez lembrar uma saudação nazi. Philip Low, fundador da Neurovigil e antigo amigo de Musk, escreveu no LinkedIn:

“Elon Musk não é nazi, mas talvez seja algo melhor - ou pior, depende da perspetiva. Os nazis acreditavam na superioridade de uma raça inteira. Elon acredita que ele próprio está acima de todos.”

Outros membros da PayPal Mafia, como Peter Thiel (dono da empresa de cibersegurança Palantir) e Marc Andreessen (criador do Netscape e agora conselheiro de Trump), não estavam presentes.

A NOVA DIREITA TECNOLÓGICA

Thiel, financiador do senador J.D. Vance, defende a liderança empresarial sobre a democracia. No seu livro Zero to One, argumenta que os grandes líderes empresariais devem ignorar convenções sociais. Andreessen, por sua vez, publicou em 2023 um Manifesto Tecno-Otimista que mistura anarcocapitalismo, aceleracionismo e Nietzsche, defendendo que a tecnologia nos tornará super-homens livres.

O seu pensamento é influenciado por livros como Atreve-te a não agradar, um best-seller japonês baseado na psicologia de Alfred Adler, que argumenta que não é o passado ou o ambiente que nos limitam, mas sim a falta de coragem.

No início de 2025, vemos um grupo de tecnocratas convencidos da sua superioridade intelectual e validados pelo mercado. Controlam empresas com um poder de influência sem precedentes, conhecem as dinâmicas sociais e são atraídos pela ideia de um governo autoritário gerido como uma empresa.

“PENSA POR TI PRÓPRIO”

Como esta ideologia se relaciona com os seus clientes e eleitores?

Mark Zuckerberg é um exemplo: passou de defensor do politicamente correto (woke) para um campeão da "liberdade de expressão", desmantelando políticas de moderação no Facebook e aproximando-se de Trump.

A cultura digital, com a sua exaltação do individualismo e desconfiança na informação tradicional, alimentou esta nova mentalidade. A obsessão pelo pensamento crítico levou a uma sociedade onde todos acusam todos de "pensar mal".

Sam Wineburg, professor de Stanford, alerta:

“Se as pessoas realmente entendessem como funciona a internet, fariam escolhas melhores. Mas a maioria navega às cegas, confiando ingenuamente na própria capacidade de discernimento.”

Assim, num mundo onde os algoritmos são controlados por bilionários e onde o caos informativo favorece os mais poderosos, a máxima parece ser:

"Pensa por ti próprio… desde que penses como nós."

O PENSAMENTO CRÍTICO E A ARMADILHA DA DESINFORMAÇÃO

Se há uma frase que indica que alguém está prestes a entrar numa espiral conspirativa, é "pensa por ti próprio", frequentemente acompanhada de "faz a tua própria investigação" ou "não deixes que pensem por ti". O pensamento crítico continua a ser, como defendia Hannah Arendt, um imperativo moral, mas aqui esconde-se uma armadilha.

“A ciência nasce da curiosidade sobre aquilo que desconhecemos e gostaríamos de explicar”, explica a neurocientista Carmen Estrada.

No seu ensaio A Herança de Eva, Estrada descreve a ciência como um esforço coletivo, construído ao longo de gerações, baseado na colaboração e na continuidade do conhecimento.

Sam Wineburg, professor na Universidade de Stanford e especialista em literacia digital, acrescenta:

"Se as pessoas realmente compreendessem como funciona a internet, como as palavras-chave distorcem os resultados das pesquisas, como a otimização dos motores de busca manipula a informação, então fazer a própria investigação levaria a decisões mais informadas. Mas, na realidade, a maioria de nós navega às cegas, confiando ingenuamente na própria capacidade de discernir a verdade no meio do caos digital.

Wineburg é coautor do manual Verified, um guia prático de verificação de factos. Ele e Mike Caulfield defendem um conceito inovador: a necessidade de "ignorar criticamente".

“Vivemos numa economia da atenção, onde as plataformas digitais competem para manter os nossos olhos fixos nos ecrãs. Avaliar informação exige pensamento crítico, mas o pensamento crítico alimenta a atenção. Na internet, o primeiro e mais importante ato de pensamento crítico é determinar se a informação merece ser analisada criticamente. Aprender a ignorar fontes de baixa qualidade preserva a nossa atenção para o que realmente importa.

A ASCENSÃO DOS TECNOPOPULISTAS ~

Se juntarmos a esta cultura digital um individualismo mal interpretado, um mundo complexo simplificado por visões reducionistas, a ilusão de uma democratização do conhecimento e o reforço psicológico gerado pelas comunidades online, obtemos um cenário perigoso.

Polarizamos este contexto com um sistema informativo manipulado pelos donos dos algoritmos – empresas que lucram com o caos emocional gerado pelas redes sociais. O resultado? Líderes políticos e económicos fortes e populistas, admirados pela sua suposta independência (mesmo em relação aos seus próprios partidos e seguidores), que dizem defender a liberdade, mas acolhem com agrado aqueles que “ligam os pontos”... desde que os liguem a seu favor.

Quando se admira um líder que “pensa por si próprio”, na verdade, admira-se alguém profundamente emocional, que alimenta ressentimentos e desconfiança nas instituições.

Um título do jornal satírico El Mundo Today ilustra bem esta confusão no início do segundo mandato de Trump:

Um jovem que não se deixa manipular defende exatamente as mesmas ideias que os três homens mais ricos do mundo.”

Esta ironia reflete-se nas redes sociais, onde discursos de milionários do Silicon Valley se misturam com declarações de figuras inesperadas, como o ex-futebolista Javi Poves, um fervoroso defensor da teoria da Terra plana.

"Quem te diz que não sou mais inteligente do que Kepler? Ou do que Galileu? Não sei. O que sei é que hoje tenho mais meios técnicos para o demonstrar", disse Poves à rádio Cadena Cope.

Nesta nova era digital, os tecnomagnatas transformaram a inovação em um novo tipo de dominação. A sua narrativa, que outrora promovia a criatividade e a liberdade, agora alimenta desinformação e autoritarismo. A inovação já não é apenas um objetivo - é uma ferramenta de poder.

Delia Rodrguez | El país | 2 de Fevereiro de 2025

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