quinta-feira, 9 de maio de 2019

O Mito da Monogamia

"No que respeita aos mamíferos, a monogamia é desde há muito reconhecida como uma raridade. Das quatro mil espécies de mamíferos, não mais do que algumas dúzias constituem pares estáveis, embora em muitos casos sejam difíceis de caracterizar com exatidão, já que a vida social e a vida sexual dos mamíferos tendem a ser mais furtivas do que as das aves. 
Na lista dos mamíferos monogâmicos encontramos muito provavelmente os morcegos (apenas algumas espécies) certos canídeos (raposas), alguns primatas, meia dúzia de ratos e ratazanas, diversos roedores sul-americanos, a lontra gigante da América do Sul, o castor do  Norte, meia dúzia de espécies de focas e um grupo de pequenos antílopes africanos. Uma lista miserável. (...)

sabemos agora que não é invulgar 10 a 40 por cento das crias de aves "monogâmicas" terem como progenitor um macho exterior ao casal - isto é, diferente do companheiro social identificado da fêmea em questão (...)

Mesmo antes do ADN, os estudos de grupo sanguíneo na Inglaterra mostraram que o pai presumível era o pai genético em cerca de 94% das vezes; isto significa que, para seis em cada cem casos, o homem que criou os filhos não é o seu pai genético. (...)

O efeito Coolidge é bem conhecido e tem sido confirmado em numerosos estudos de laboratório: ponham-se frente a frente, por exemplo, um carneiro e uma ovelha sexualmente recetiva, e é provável que dos dois copulem, tipicamente mais do que uma vez. Depois a frequência das cópulas diminui, geralmente de forma muito rápida. Mas substitua-se a fêmea por outra, e o aparentemente "exausto" carneiro fica - em certa medida - sexualmente revigorado. A novidade é estimulante

Quanto aos humanos, consideremos este relato de um homem da tribo africana Kgatla, descrevendo o que pensa sobre as relações sexuais com as suas duas mulheres:
Acho-as igualmente desejáveis, mas depois de dormir com uma três ou quatro noites seguidas, ao quarto dia já me cansou, e quando vou para a outra descubro que sinto uma paixão maior; ela parece mais atraente do que a primeira. Mas na verdade não é assim, pois quando regresso à primeira sinto a mesma paixão renovada. Não há razão para pensar que os homens que habitam as sociedades tecnológicas modernas sejam diferentes. Na verdade, a famosa equipa de investigação sobre sexo chefiada pelo Dr. Alfred Kinsey assinalou que (...)

A vigilância da parceira é também uma estratégia masculina comum entre os mamíferos, especialmente quando a fêmea está no cio. Uma vez mais, a finalidade é impedir as cópulas extra-casal (CEC). A vigilância da parceira é também generalizada, quase universal, entre essa espécie de mamíferos a que chamamos Homo Sapiens: um estudo antropológico, hoje clássico, registou que apenas 4 de 849 sociedades humanas não mostravam quaisquer vigilância da parceira, através da qual os homens controlam de perto as suas companheiras. (...)

Por outro lado, apesar de toda a sua lógica, a vigilância da parceira oferece-nos - assim como aos machos vigilantes - uma interessante ironia. O estratagema não seria necessário se os próprios machos não andassem a galantear aqui e ali, em busca de CEC. Se ninguém galanteasse, ninguém teria de vigiar as parceiras. (...)

(No que respeita ao tamanho dos testículos, os seres humanos situam-se algures a meio caminho entre o gorila poligínico e o chimpanzé promíscuo, o que sugere que somos moderadamente poligínicos. Adiante veremos mais - muito mais - sobre este assunto.) (...)



Por esta altura, deve ter ficado claro que os machos trabalham de um forma tremendamente árdua para obterem CEC e, igualmente, para evitarem que machos rivais as obtenham à sua custa. Para os animais, pelo menos, a razão subjacente a todos os estratagemas  - vigilância da parceira, devaneios amorosos e competição de espermatozóides - é o proverbial resultado final: não o lucro financeiro, mas um bónus evolucionário sob a forma de sucesso reprodutivo. O sucesso reprodutivo de um macho é gravemente ameaçado é gravemente ameaçado se a sua parceira pratica uma CEC ou - pir ainda - uma FEC (fecundação extra-casal). Para falar cruamente, não há vantagem nenhuma em criar os filhos de outrem. (...)

Sabemos desde há muito tempo que existe uma variação considerável no grau dos cuidados parentais masculinos; geralmente, os machos das espécies mais inclinados à monogamia têm probabilidade de ser bons pais. Recentemente, tornou-se claro que existe também toda uma gama de comportamento parental dentro da maioria das espécies. Os machos atraentes geralmente dispensam menos cuidados parentais, de forma que as fêmeas acabam por fazer relativamente mais tarefas maternas quando estão acasaladas com "machões". Esta tendência é captada no título aparentemente seco deste artigo científico: "O contributo paternal para a condição da descendência é previsível com base no tamanho dos caracteres sexuais secundários do macho". Quanto maiores são os caracteres sexuais secundários do macho, menor é o seu contributo paternal. É como se os machos machos desejáveis soubessem que são desejáveis e, por isso, inclinados a fazer render essa capacidade de atração; do mesmo modo, as afortunadas fêmeas que conseguem acasalar com tais garanhões tornam-se menos afortunadas quando se vêm sobrecarregadas com a maior parte das canseiras domésticas. (...)

As fêmeas dos primatas, por sua vez, evidenciam frequentemente um interesse particular em acasalar com machos que são "novos na vizinhança" (...) O equivalente humano - se é que existe - não está claro, mas o interesse e mesmo fascínio muitas vezes gerados pelos forasteiros, pelos recém chegados misteriosos, pode fornecer-nos uma pista. (...) A nível evolucionário, é pelo menos possível que esta "preferência pelo macho estranho" derive de um impulso para evitar a consanguinidade. Se for este o caso, o fenómeno não é assim tão estranho. (...)

Primeiro, notemos que o divórcio não é desconhecido entre os animais; tal como se formam, os pares podem desfazer-se e não apenas pela morte de um dos parceiros. (...)

Um dos fenómenos mais bem documentados no que toca à corte e seleção do parceiro no mundo animal (e humano) é o chamado "acasalamento combinativo", pelo qual os parceiros tendem a ser semelhantes (...) é notável o número de indivíduos que escolhem membros do sexo oposto semelhantes a si próprios. Seja em termos de estatura física, formação cultural, inteligência, inclinação política ou grau geral de beleza pessoal, as pessoas gravitam para parceiros que se assemelhem a si próprios.

Assim, como já vimos, as fêmeas escapam por vezes à vigilância  dos parceiros, envolvendo-se em CEC sempre que possível. Quando os papeis se invertem, o objetivo das fêmeas vigilantes é semelhante: impedir que os machos consigam obter parceiras - ou cópulas - adicionais. Desta perspetiva manifestamente sombria, a monogamia não deixa de ser, contudo, uma espécie de história de sucesso: cada um dos sexos é igualmente bem sucedido na arte de frustrar ou desejos do outro! (...)

Entre os mamíferos, consideramos já a possibilidade de o sincronismo menstrual constituir uma contra-adaptação das fêmeas à poliginia, tornando mais difícil a um único macho fertilizar - ou mesmo vigiar - todas as fêmeas férteis do seu harém. No sentido em que este sincronismo intensifica as oportunidades de CEC das fêmeas, a estratégia é provavelmente do interesse destas, mas contrário ao interesse dos machos. (...)

Como veremos, são avassaladoras as provas de que a monogamia não é mais natural para os seres humanos do que para os outros seres vivos. Primeiro voltemo-nos para a poligina.
As provas incluem o "dimorfismo" sexual combinado com a "bimaturidade" sexual. O dimorfismo ("dois corpos") refere-se ao facto de que machos e fêmeas são significativamente diferentes, não apenas nos órgãos genitais, mas também nos atributos corporais básicos, especialmente o tamanho. (...)
A acrescentar a isto em a prova da bimaturidade sexual, o fenómeno singular pelo qual as raparigas se tornam mulheres um ano ou dois antes de os rapazes se tornarem homens. Tal como o dimorfismo sexual, a bimaturidade sexual é um traço consistente que abrange toda a espécie. E, tal como o dimorfismo sexual, a bimaturidade sexual tem tudo a ver com a poliginia. (...)
Há ainda mais provas. Os homens são normalmente mais violentos do que as mulheres, o que é de novo um traço previsível do sexo mais competitivo, detentor de haréns.  (...)



Os Toda, um povo da Índia, por exemplo, não tinham a noção de adultério e até consideravam imoral um homem recusar a sua mulher a outro. (...)

Uma análise de 54 sociedades humanas diferentes revelou que, em nada menos de 14 por cento, quase todas as mulheres se envolviam em CEC, ao passo que em 44 por cento a proporção que o fazia era moderada, e em 42 por cento relativamente poucas - mas, mesmo assim, algumas - o faziam. É revelador comparar estes números com os das contrapartidas masculinas: quase todos os homens se envolviam em CEC em 13 por cento das sociedades, uma proporção moderada faziam-no em 56 por cento, e só uns poucos - mas mesmo assim alguns - faziam-no em 31 por cento. Em resumo, a análise transcultural dos índices de infidelidade mostra que as fêmeas e os machos são notavelmente semelhantes. (...)

A espécie humana é preferencialmente e biologicamente poligínica, mas também principalmente monogâmica e - quando as ocasiões se proporcionam - avidamente adúltera... tudo ao mesmo tempo. Não há nenhum modelo anima único que abargue toda a condição "natural" humana. Assim, nalgumas espécies, os machos buscam CEC; noutras são as fêmeas que o fazem. Qual é o modelo para os humanos? Provavelmente ambos. (...)

De acordo com Bertrand Russel, em Marriage and Morals,
A perspetiva cristã de que toda a relação sexual fora do casamento é imoral foi (...) baseada na perspetiva de que toda a relação sexual, mesmo no casamento, é deplorável. Uma perspetiva deste género, que vai contra os factos biológicos, só pode ser vista pelas pessoas sãs como uma mórbida aberração. (...)

O mundo tem uma adoração pelos amantes, e quanto mais profundamente ele ou ela amam, melhor. Não é comum falar-se de um "casamento apaixonado". Falamos, sim, de um bom casamento, de um casamento feliz, confortável ou compatível, mas raramente de um casamento apaixonado. Ou, pelo menos, não por muito tempo. "E viveram felizes para sempre." Está bem, pronto. Mas será que "viveram apaixonados para sempre"? Dificilmente. (...)

Habituámo-nos aos cheiros, aos sons, e mesmo às vistas, tal como quando deixamos de ver os quadros e fotografias com que decorámos as paredes da nossa casa. Uma forma de contrariar a habituação é mudar os estímulos: podemos estar habituados ao som do motor do frigorífico, mas quando este se desliga, ou muda de tom, voltámos subitamente a ouvi-lo. Algumas pessoas alteram periodicamente a posição dos quadros para poderem voltar a apreciá-los. Reordenar a nossa vida amorosa, contudo, é uma questão bem diferente. (...)

O Mito da Monogamia / David Barash & Judith Eve Lipton (2001)

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