domingo, 26 de maio de 2024

O Regime de Salazar descrito por Henrique Galvão

Fui à estante, peguei num ou noutro livro, até que olho mais demoradamente para "O assalto ao Santa Maria" de Henrique Galvão (1895-1970). Abro e começo a ler. Sento-me e, rapidamente, devorei umas vinte ou trinta páginas. É um livro extraordinariamente interessante e que aconselho todas as pessoas a ler. Primeiro para se ficar a conhecer, na primeira pessoa, sobre o próprio Henrique Galvão, escritor, militar, político, mas, principalmente, herói esquecido (na sombra de Humberto Delgado) que lutou pela liberdade e contra o regime de Salazar. 

Depois porque narra, na primeira pessoa, todos os contornos do assalto ao paquete Santa Maria, golpe que, durante semanas, apaixonou o mundo e colocou sob os holofotes as ditaduras Ibéricas. Mas na primeira parte do livro, Galvão descreve o regime de Salazar e a personalidade do ditador. São alguns excertos dessa parte, até à Constituição de 1933 que aqui deixo (talvez posteriormente partilhe outros excertos, como por exemplo, a descrição da corrupção e podridão do regime) :


Estamos perante um livro de História.
Henrique Galvão foi, sem dúvida, um grande português, a quem o país ficou a dever inestimáveis serviços. Sofreu muito. Morreu pobre, esquecido, abandonado, como sucede, em geral, aos que lutam sinceramente pelas suas ideias. 

 "Embora a situação económica da nação durante o primeiro período da ditadura militar fosse desastrosa, o povo conservou uma certa dose de otimismo e confiança. Assim, apesar do seu descontentamento, evitou-se uma insurreição geral e preparou-se o caminho para o êxito de um Ministro das Finanças partidário do autoritarismo - um futuro ditador financeiro. Esta pasta, depois de ter sido declinada por vários reputados professores de Economia, foi confiada a um obscuro professor da Universidade de Coimbra, António de Oliveira Salazar, cujos artigos começavam a aparecer nas colunas de um jornal católico e que, em tímidos panfletos, proclamava direitos e liberdades que posteriormente negou ao povo Português, O professor Salazar tinha fama de ser honesto, temente a Deus e tecnicamente competente. 

Após a desastrosa administração fiscal dos militares, o povo concedeu imediatamente a Salazar um fundo de confiança ilimitada. Completamente liberto das dificuldades encontradas por outros peritos num regime parlamentar caótico, não lhe foi difícil obter, pela simples aplicação dos seus conhecimentos técnicos, um êxito fiscal que proclamou então como sendo o seu próprio. A sua vaidade nunca permitiu que se revelassem as verdadeiras razões por detrás deste facto, que era coletivo da nação como um todo. 

A sua vaidade, tanto mais perigosa quanto se gabava de ser modesto, experimentou assim assim a primeira grande satisfação. Ao mesmo tempo, a sua astúcia de camponês dizia-lhe que a melhor maneira de manter a ilusão popular e desfrutar o consequente estado de mito, era ser visto o menos possível, evitar o contacto com o povo e fugir assim ao risco de vir a conhecer-se a verdade sobre a sua personalidade. Isto Era-lhe bastante fácil, pois, para alcançar o seu tão desejado propósito e fonte de prazer - o poder arbitrário - teria apenas de sacrificar o que lhe era desagradável, ou pelo menos enfadonho: convivência, espetáculos, companhia de mulheres e outras diversões do homem vulgar. 

Assim, agarrou a oportunidade e começou a criar a máscara que, a partir daí, o protegeria, a ele e ao mito da sua infalibilidade. O povo, ingénuo, e isolado pela censura , das democracias que poderia esclarecê-lo, só muito mais tarde descobriria quanta malícia de campónio, quanto ódio reprimido e quanto orgulho mórbido estavam ocultos sob a capa de simplicidade e de modéstia que ele usava (...)

E assim aumentou a enorme mentira de Salazar. Se fosse realmente um homem modesto, simples e desinteressado, como a propaganda levava o povo a acreditar, ele teria declinado a tarefa (dar forma a uma Constituição a ordem e a liberdade) e confessado, nobre e patrioticamente , a sua incapacidade moral a intelectual para governar um povo livre e tradicionalmente democrático. E esta confissão teria tornado o seu trabalho teria tornado o seu trabalho, como dirigente das finanças, merecedor de respeito incondicional, por muito óbvias que se tornassem as circunstâncias que facilitassem esse trabalho e por muito peritos pudessem criticar os seus métodos.

Infelizmente, a sua personalidade era totalmente diferente. Ele era, por exemplo, devoto, mas não genuinamente religioso. Um professor de veterinária que acreditara nele, mas que veio mais tarde a conhecê-lo como realmente era, descreveu-o como se segue num artigo que escapou à censura por ter sido publicado clandestinamente:

"... um inconcebível amontoado de incongruências, tortuosidades e contradições, todas originadas por um estado psicológico nitidamente desiquilibrado, um imoderado amor de poder, e a repressão simultânea de tudo que pudesse impedir a realização dos seus planos".

Estes traços de carácter já se tinham manifestado no ditador financeiro, embora ele procurasse ocultá-los a todo o custo e o povo, na sua cegueira, se não apercebesse de tal. Consequentemente, ele não declinou a terefa que, na verdade, de há muito cobiçava, nem confessou a sua incapacidade, nem se preocupou com a justeza da sua posição. Preferiu alimentar a falsa conceção de si próprio que a Nação e o Exército tinham aceitado cegamente e completou-a com uma série de mentiras oportunas e atitudes místicas, às quais chamou, para cúmulo de tudo, uma "política de verdade". 

Foi assim obrigado a fabricar uma falsa personalidade, o que fez com evidente prazer. A falsa personalidade servir-lhe-ia de disfarce para ocultar a verdadeira, que era incapaz de atos democráticos. E assim, a fundação de instituições livres e a solução dos problemas de Portugal ficariam suspensas eternamente - o "eternamente" Salazariano. 

E não teve que inventar nada de novo. Primo de Rivera em Espanha, Mussolini na Itália, tinham já criado uma forma de ditadura, Estaline outra. Ele tinha apenas de fazer adaptações. Uma vez que, ao contrário dos seus mestres, ele nada arriscara para obter o poder, faltando-lhe até a aparência marcial daqueles que se expõem ao perigo, não podia copiar exatamente os seus antecessores. Completou-os com modelos da Idade Média, que foi buscar às suas apressadas mais influentes leituras de literatura antiga, criando assim uma cruel caricatura, uma miniatura híbrida, de Maquiavel, Estaline, Savonarola, Mussilini e Inquisidador do Santo Ofício. (...)

Mandou um projeto de uma Constituição a dois professores de Direito que considerou de confiança. Os pormenores foram elaborados em segredo. Em 1933, um plesbicito fraudulento, uma das primeiras lições aprendidas nas escolas nazi e fascista, permitiu-lhe apresentar a sua Constituição como a expressão da livre vontade duma Nação e a estrutura conceptual de um estado republicano - isto por parte de alguém que nunca escondera antes os seus sentimentos monárquicos! Para todos os fins práticos era apenas a base estatutária de uma nova disfarçada forma de ditadura. 

Foi uma rude deceção. A imprensa portuguesa, amordaçada pela censura, não pôde revelar o logro, mas este depressa foi descoberto nos sectores da imprensa estrangeira que seguiam a situação em Portugal. Martin Serrano, na revista francesa Temps Mordernes, comentou como se segue a Constituição imposta por Salazar:

... é poder absoluto, poder fascista encoberto com Cristianismo, o que constituiu a única ficção original do sistema de Salazar. O elemento essencial da Constituição (...) é a concentração do poder absoluto nas mãos do Executivo. O parlamento, pomposamente chamado Assembleia Nacional, é uma pura ficção".

(...)
Escolhe um imbecil e nomeia-o para esse cargo (Presidente da República) através do mecanismo de uma "eleição", onde os votos são contados em segredo por agentes de confiança de Salazar. 

Quando a Constituição foi imposta, uma grande parte da nação ainda acreditava em Salazar, tal como acreditava em bruxas". 

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