domingo, 24 de agosto de 2025

Outrovertido ou Antissocial Sociável

Sempre me considerei um antissocial sociável. É estranho porque não sou introvertido, bem pelo contrário! mas depois não gosto nem um pouco de festas e ajuntamentos ou até de muito barulho. 

Não sou propriamente envergonhado, sou até muito sociável e tomo a iniciativa. Sempre me achei um pouco estanho, mas, afinal, parece que há muitos outros por aí, tal como eu e agora até lhe arranjaram um nome, porque há uma necessidade muito grande de meter as pessoas dentro de gavetas.

O artigo é do The Guardian "Don’t like joining in? Why it could be your superpower" publicado hoje e a propósito também do livro "The Gift of Non Belonging" do psiquiatra Rami Kaminski.

Este texto também me lembrou de uma pessoa que chegou a dizer-me, quando eu me queixava que estava sozinho, que se sentia sozinha no meio da multidão. 

"Não consigo explicar. Ele é um doce. Um rapaz lindo, por dentro e por fora, e tão brilhante.” Foi assim que começou, há alguns anos, uma sessão com N, uma paciente minha de longa data. O filho dela, A, era um adolescente, e apesar de vir de uma família calorosa, amorosa e com pais atentos, tinha começado a ter dificuldades sociais.

Ele não estava a ser vítima de bullying, nem era excluído na escola. Não estava deprimido, mal-humorado ou ansioso. Na verdade, era popular, querido e estava constantemente a ser convidado para festas, jogos de basquetebol e convívios com grupos de jovens. O problema era que recusava todos esses convites – e N não percebia porquê.

Três semanas depois, sentei-me com A no meu consultório. Pedi-lhe que descrevesse a experiência de ir a festas e outros eventos sociais. “Sinto-me estranho”, disse ele, “como se não fizesse parte daquilo, o que é esquisito porque são todos meus amigos. Sei que gostam de mim e que ficam contentes por eu estar lá, mas continuo a não me sentir ligado. Só me sinto sozinho ou aborrecido quando estou com muita gente, e não quando estou com um ou dois amigos próximos ou quando estou sozinho.” Depois acrescentou: “Não gosto de dizer estas coisas porque faz-me soar como um extraterrestre. Acha que há algo de errado comigo?”

Não achava. Nos meus mais de 40 anos como médico e psiquiatra, trabalhei com líderes mundiais, artistas e profissionais no topo das suas áreas. Muitas vezes, surgia a mesma descrição de vida que A me dera.

São pessoas que preferem sempre jantar a sós com um amigo a participar num jantar de grupo. Quando têm de estar em grandes reuniões, ficam de lado, em conversa profunda com uma pessoa, em vez de “andar a circular”. Preferem fazer trabalhos individualmente do que em grupo, detestam desportos colectivos e acham as tradições e rituais da vida comunitária – festas de empresa, cerimónias de graduação, até feriados religiosos – difíceis ou até desconcertantes. São solistas incapazes de tocar numa orquestra. E eu conto-me entre eles.

A grande maioria destas pessoas não tem diagnóstico psiquiátrico. Não são socialmente desajustados, nem socialmente ansiosos. Depois de muitos anos a observar e a investigar estas características, compreendi que estão enraizadas num traço presente em pessoas de todas as etnias, culturas e géneros: a ausência de impulso comunitário – em outras palavras, o não-pertencimento.

Ao começar a escrever sobre isto, procurei uma palavra que descrevesse este tipo de personalidade tão mal compreendido. A maioria conhece os conceitos de Carl Jung: extrovertido (“virado para fora”) e introvertido (“virado para dentro”). Mas a orientação fundamental do não-pertencente define-se pelo facto de raramente estar na mesma direcção que os outros. Assim nasceu o termo “otrovert” (em espanhol, otro significa “outro”).

Muitos otroverts passaram a vida a assumir que a falta de interesse por festas e outras actividades sociais significava que eram introvertidos. Mas diferem destes em vários pontos essenciais: enquanto os introvertidos tendem a ser reservados e calados, os otroverts, como o meu paciente A, podem ser muito sociáveis e expansivos. Um introvertido dificilmente seria a primeira pessoa a intervir de forma assertiva numa reunião de trabalho. Já um otrovert fá-lo sem problema. Ao contrário dos introvertidos, que ficam exaustos depois de horas de conversa com um amigo, os otroverts ganham energia com essas conversas profundas. Gostam de tempo a sós, mas não para recarregar baterias: sim, para evitar a solidão e desconexão que sentem quando estão rodeados de muita gente.

Para os pais, crianças como A são frequentemente fonte de preocupação. Como a maioria foi educada para ver a pertença a um grupo como pilar de uma vida bem-sucedida, muitos pressionam os filhos a serem mais “sociais”. Na escola, onde os professores são treinados para identificar alunos “mal-adaptados socialmente”, uma criança que não se junta aos colegas no recreio pode motivar chamadas para casa, consultas com psicólogos ou mesmo terapia.

A nossa cultura valoriza imenso o “participar”. Desde cedo aprendemos a partilhar, a brincar bem com os outros e a alinhar o nosso comportamento com o dos que nos rodeiam. Quando outros fazem fila, somos ensinados a ficar nela. Quando falam baixo, somos ensinados a baixar a voz. Ao longo da vida, este condicionamento social reforça um princípio cultural imutável: a pertença a um grupo é requisito para uma vida rica e plena. Para muitos, isto é verdade – mas não para os otroverts.

Damos tanto valor à comunhão que uma postura diferente é entendida como patologia. Otroverts são vistos como estranhos ou errados por preferirem a solidão ao convívio, e sofrem pressão de colegas bem-intencionados que querem a sua companhia ou temem que “percam” a diversão. O que não percebem é que, para os otroverts, há grande liberdade e realização em ficar à margem.

Com esta consciência, podemos permitir-nos recusar o que nos causa desconforto e abraçar quem realmente somos.

Nos últimos anos, tem-se falado muito sobre os níveis recorde de solidão, alienação e polarização da sociedade. Políticos, pensadores e até o cirurgião-geral dos EUA apontam o declínio da vida comunitária como causa principal de problemas de saúde mental, sugerindo soluções como sair das redes sociais ou reforçar as redes de apoio social. Em teoria, são ideias válidas. Na prática, falamos cada vez mais da importância da comunidade, enquanto nos tornamos mais solitários e divididos do que nunca.

Os otroverts não só estão preparados para prosperar neste mundo fragmentado e zangado, como também podem mostrar o caminho aos outros. A razão é simples: vêem as pessoas como indivíduos, não como membros anónimos de um grupo. É fácil odiar um colectivo abstracto que nos ensinam a ver como diferente, inferior ou ameaçador. É muito mais difícil generalizar a hostilidade quando olhamos para as pessoas como realmente são.

Porque não se sentem obrigados a alinhar com a posição ou opinião colectiva, os otroverts são independentes, criativos e pensadores “fora da caixa”. Abordam os problemas de ângulos novos, chegando muitas vezes a descobertas originais e contributos únicos. Como definem o sucesso pelo que alcançam, e não em comparação com outros, são também mais realizados criativa e profissionalmente.

Para um otrovert, aceitar a frase feita “Está tudo bem em seres tu mesmo” representa uma mudança monumental. Muitos viveram a vida toda a sentir-se incompreendidos. Quando finalmente percebem que não há nada de errado em serem como são, é uma catarse profunda.

Com esta compreensão, podemos dar-nos permissão para recusar o que nos incomoda, criar relações ainda mais fortes e autênticas com os que nos são próximos, e abraçar quem realmente somos. Descobrimos então aquilo que Friedrich Nietzsche, o otrovert por excelência, escreveu: “Ninguém pode construir por ti a ponte sobre a qual terás de atravessar o rio da vida, ninguém a não ser tu, tu mesmo.”

Hoje, A floresceu verdadeiramente. Com 24 anos, está a fazer doutoramento em psicologia, ficou recentemente noivo da namorada da universidade e mantém-se próximo dos amigos de infância. De certa forma, continuará sempre a ser observador de grupo e não participante pleno. Mas é participante total da sua própria vida: profundamente satisfeito com o que escolhe fazer e com quem escolhe estar. Num mundo feito para os que aderem, este é o caminho ideal do otrovert.

Dr. Rami Kaminski é psiquiatra e autor de The Gift of Not Belonging

Sem comentários:

Enviar um comentário