sexta-feira, 22 de agosto de 2025

A Fome e a Miséria em Portugal na Ditadura Fascista de Salazar

Depois das memórias de Henrique Galvão e Camilo Mortágua, eis que terminei agora as memórias de Humberto Delgado, candidato presidencial em 1958, e que afirmou "obviamente demiti-lo-ei" referindo-se a Salazar e, posteriormente, assassinado pela PIDE em 1965. 

Bastante revelador o estado de pobreza do país, após várias décadas de ditadura fascista do governo de Salazar. para ler e refletir. 


"De alto a baixo, Portugal é um país de pobres, que pedem pão, ou trabalho, ou protecção, e isto inclui, não só os pedintes sem um tostão de seu, mas também o futuro professor que jamais terá o seu lugar se a P.I.D.E. se opuser à sua nomeação, o comerciante que tem de pertencer ao Grémio apropriado se quiser vender alguma coisa e que fracassa com certeza se houver a mínima presunção de que partilha opiniões políticas pouco recomendáveis, e até mesmo o médico que precisa de se treinar nos hospitais civis e que corre o risco de ser reprovado se não pertencer à «ordem estabelecida».

A situação foi analisada há pouco tempo em «The Reporter», nos Estados Unidos. E o artigo concluía: «Qualquer português só pode exercer a sua profissão, seja ela qual for, desde que esteja sujeito ao poder político do Estado», o que não é mais do que outra forma de apresentar o que o próprio ditador disse a um amigo meu: «Serão simplesmente aquilo que queremos que sejam».

Típico desta maneira de ver é o exemplo de Aquilino Ribeiro, o grande escritor, que, aos setenta anos, foi perseguido pela polícia, só porque no seu livro «Quando os Lobos Uivam» critica a sociedade criada por Salazar e sublinha a estupidez e malefícios do sistema totalitário.

MISÉRIA EM PORTUGAL 

Quando se estuda o mecanismo humano, é conveniente começar pela substância que o faz trabalhar. O Português subsiste com uma média de cerca de 700 calorias por pessoa, menos do que o mínimo fixado pela F.A.O. Mas como poderia ser de outra forma, com os salários miseravelmente baixos e a notória desigualdade na distribuição da riqueza, que concede ao trabalhador rural no Alentejo 16 escudos por dia, para os poucos dias da semana em que consegue arranjar trabalho?

(,,,)

Quando, entretanto, em 1958, a minha campanha eleitoral me levou ao Alentejo, mulheres a chorar agarravam-se a mim dizendo-me que no Inverno anterior tinham recebido 8 escudos por dia e, mesmo assim, só durante parte da semana. Podia-se ver a verdade das suas palavras nas crianças que me rodeavam, pele e osso, com grandes olhos tristes que obrigariam qualquer pessoa, inevitavelmente, a dar-lhes um pedaço de côdea.

(...)

A minha secretária Brasileira, Sra. Arajarŷr Campos, disse-me um dia que tivera uma jovem criada Portuguesa, à qual ouviu dizer que em Portugal jamais comera carne, e que, só agora, na casa da sua patroa, podia finalmente comer uns bifes.

Esta esfomeada rapariga tocara num ponto muito importante, pois o consumo anual de carne em Portugal é, efectivamente, de 15 quilos por pessoa, contra 69 quilos nos Estados Unidos, 61 na Inglaterra, 43 na Alemanha Ocidental. Quanto ao leite, o Português bebe 1 litro por mês, em contraste com 20 a 40 litros nos países menos atrasados.

Tudo isto prova que as proteínas fundamentais são um luxo para as classes pobres e médias. Basta olhar para as populações rurais, para se ver como, em pouco tempo, se tornam num simples saco de ossos; as mulheres, entre os quarenta e os cinquenta anos, envelhecem precocemente, e os homens começam a ficar curvados e com as pernas arqueadas, perdendo ambos os sexos, muito cedo, os dentes. A carência de vitaminas origina magreza, ou pelo excesso de carbo-hidratos, obesidade doentia.

Acertadamente, embora com dolorosa acuidade, o consumo de proteínas em Portugal foi assim descrito: «Um pequeno copo de leite por dia, um bife por semana, três ovos por mês, uma galinha por ano». Considerando que muita gente come três ovos por dia e uma quantidade proporcional de outros alimentos, não é de surpreender que, tal como constatei, haja muitas pessoas, tanto nos meios rurais como na cidade, que nunca comem tais alimentos, excepto em dias de festa. No campo, não comem ovos nem galinhas, pois que, mal dando o seu rendimento para se alimentarem, só vendendo estes pequenos extras conseguem comprar alguma coisa para além das necessidades básicas.

Contudo, o trabalhador Português gasta 67 a 87% do seu rendimento na alimentação, e, por consequência, vive pouco melhor do que um animal. Se fizermos uma comparação com um país semi-socializado do tipo democrático-progressivo, como a Suécia, constatamos que somente 31% do orçamento familiar são consagrados à alimentação. Se tomarmos a França como exemplo, o mais politicamente amadurecido e socialmente progressivo dos países latinos, constatamos que 49% do rendimento é consagrado ao mesmo fim.

SALÁRIOS

Um salário só pode ser avaliado com relação ao seu poder de compra. Assim me recordo claramente das lições de estatística que segui, há mais de cinco anos, quando me matriculei na Universidade Americana de Washington, muito embora não passasse de um curioso, interessado somente em aprender um pouco mais acerca de economia. Um trabalhador americano trabalhava cinquenta horas para comprar uma camisa de algodão, um fato e um par de sapatos, enquanto um trabalhador russo precisava de cinco vezes mais para adquirir as mesmas coisas. Isto diz-nos mais do que qualquer declaração em rublos ou em dólares, que falharia certamente, ao darmos qualquer informação acerca do respectivo poder de compra.

Uma análise similar da situação em Portugal dá-nos resultados alarmantes. É difícil calcular o salário do trabalhador rural, porque é geral o desemprego, mas ascende provavelmente a dois terços da média do trabalhador na indústria, que é de cerca de 24 escudos. Uma comparação do rendimento deste último mostra que, para comprar um quilo de carne, ele tem de trabalhar quase um dia inteiro (6 a 7 horas) em contraste com hora e meia na Inglaterra. Quanto ao leite, um inglês só precisa de trabalhar um quarto de hora para comprar um litro, enquanto o trabalhador Português, que, de qualquer forma, nunca bebe leite, teria de trabalhar quatro vezes mais. Um quilo de batatas, um dos ingredientes do «cavalo verde», dieta típica dos habitantes subalimentados do norte, requer quase uma hora do tempo do trabalhador Português, contra cinco minutos na América. Que pode ele fazer se tiver uma família a alimentar, especialmente porque um quilo de pão, alimento básico em Portugal, não custa menos do que uma hora de salário?

Isto prova que o nível nutritivo do Português é equivalente ao de um Tunisiano ou de um Congolês, como acentua o «New Scientist» de 21 de Julho de 1960. Os salários portugueses, que desceram cerca de um terço entre 1938 e 1958, só podem comprar fome, e por isso, na falta de pão, os únicos luxos possíveis são os equivalentes Salazaristas do circo Romano - futebol, fado e Fátima. (O fado é uma canção nacional melancólica e Fátima é uma localidade onde se supõe que tenha aparecido Nossa Senhora em 1917).

O PROBLEMA DA SAÚDE

Na verdade, o Português nasce em circunstâncias pouco usuais, dado que em muitas aldeias jamais se ouviu falar de parteiras ou de médicos e 50% das mães dão à luz sem assistência.

A taxa de mortalidade durante o primeiro ano de vida é de 88 por mil, contra uma média de 50 por mil em 102 países. Durante o reinado de Salazar a posição com relação à Checoslováquia, Japão e Singapura, por muito estranho que pareça, foi invertida, pois, em 1925, era o dobro da de Portugal enquanto agora é precisamente o contrário («W.H.O.», Relatório das Estatísticas Vitais e Epidemiológicas).

Mesmo que o Português não morra no berço, é-lhe quase impossível conseguir cuidados médicos, uma vez que tem de escolher entre comer e receber tratamento; este é muitas vezes demasiado caro, não deixando outra alternativa além da morte. Em Portugal há apenas 1 médico por cada 1 400 habitantes, contra 1 por 800 na Itália; similarmente, existe uma enfermeira por 3 000 habitantes, contra 1 por 500 nas democracias ocidentais. As consequências são inevitáveis e significam que 58 pessoas em cada 1 000 morrem de tuberculose, contra 5 por 1 000 na Holanda, e que, por cada criança que morre de tosse convulsa na Inglaterra, morrem quatro em Portugal, enquanto a percentagem de sarampo nestes dois países é de 1 para 9.

HABILITAÇÃO E ASSISTÊNCIA PÚBLICA

Suponhamos que um Português consegue sobreviver a tudo isto e que pretende comprar uma casa, para casar. O último recenseamento mostra que, num total de 2 047 398 famílias, 2 592 não tinham acomodações, 10 596 viviam em casas temporárias, 2 583 em habitações impróprias, 193 221 em partes de casa. Dos factos que me foram fornecidos por pessoas que vivem no país, posso assegurar que estas estatísticas oficiais ficam muito aquém da verdade.

Não se pode ler à luz de uma lâmpada nem ouvir o rádio, porque, tal como descobri quando passei um Verão em Cela, não há electricidade, apesar das promessas feitas há uns doze anos. Quando finalmente ia ser instalada, visitei a localidade na minha qualidade de candidato à Presidência, e então o Presidente da Câmara de Alcobaça, sob cuja jurisdição se encontra aquela povoação, informou os pobres desgraçados que ali viviam de que, ao fazerem-me um tão entusiástico acolhimento, tinham perdido o direito àquele luxo. Em 1953, só 1 251 das 3 374 freguesias de Portugal, possuíam electricidade, e, ainda assim, 484 já a tinham em 1935, o que implica portanto um singelo aumento de 42 freguesias por ano.

Quando chega a velho e já não pode trabalhar, o Português sem meios pessoais tem de depender dos filhos, ou, como acontece na maioria dos casos, acaba por viver da caridade, porque a assistência pública e as pensões de velhice só raramente são mais do que simples benefícios teóricos.

A situação respeitante à assistência nacional Portuguesa mostra até que ponto o país precisa de sangue novo e de novas ideias. O Estado, muito embora pague muito menos, tira muito mais ao empregado e ao patrão do que em qualquer outro país Europeu; dos 7% ao empregado e 18% ao patrão, 25% cabe ao Socorro Social, contra 5,3% na Inglaterra, 18,66% na Alemanha e 18% na Espanha.

(...)

Não admira, pois, que, no período 1948/53, a esperança de vida média do Português fosse de 49 anos, contra 71 na Suécia, 69 na Holanda e 68 na Inglaterra.

RENDIMENTO NACIONAL

Depois de apreciar o aspecto individual, gostaria de me dedicar à situação mais geral. O trabalhador não tem direitos. O sindicato não passa de uma pequena engrenagem na roda totalitária. O trabalhador não pode estabelecer qualquer opção e mal se atreve a expor as suas opiniões, não sendo pois de surpreender que somente 40% da produção industrial seja consagrada ao pagamento de salários, deixando os outros 60% para lucros de capital, em contraste com os respectivos 70% e 30% dos países democráticos mais avançados. Em Portugal não existem Keynes nem Marx.

Não é igualmente de espantar que, por causa desta medieval estagnação, o rendimento do país per capita não ultrapasse os 182 dólares, contra 1 453 dólares nos Estados Unidos, 342 na Argentina, 209 na Turquia, e isto apesar da sua grande fonte de matérias-primas nas colónias, as quais são, pelo menos, 23 vezes mais importantes do que as da mãe-pátria.

O Regime de Salazar descrito por Henrique Galvão

Sem comentários:

Enviar um comentário