Excelente texto do Miguel Esteves Cardoso, publicado na revista Fugas do Público a 14 de Dezembro deste mês a que deu o título de "Andar atrás da felicidade vale mais pelo andar do que por outra coisa", mas que também se poderia intitular "o vício dos atalhos":
"Um dos piores mas mais compreensíveis vícios humanos é o vício dos atalhos.
Vejo alguém a ler um livro há mais de um mês, a tirar apontamentos e a consultar outros e pergunto-lhe de chofre: “Então, qual é a grande lição desse livro?” Não temos tempo. Não temos vagar. Temos outras coisas para fazer. E é com essas desculpas que passamos a vida à procura de atalhos. Querer um atalho é isto: quero ter o benefício desta coisa, mas não estou disposto a trabalhar por isso. Importas-te de me dar um resumo?
O atalhismo leva à abreviação de tudo. Mas o mal não é esse. É outro, muito mais daninho.
Quando vemos que uma coisa traz felicidade a alguém, queremos logo experimentar essa coisa, com a ideia que também nos pode trazer felicidade. Alguém está a gostar dum livro, duma cidade, duma pessoa? Vou já experimentá-la, a ver se me traz felicidade também. Mas não é o nome do livro que interessa: é como se chegou lá.
Como é que eu o encontrei? Quanto tive de procurar? Que critérios empreguei? Que livros li antes?
É o velho problema: há, de facto, livros para cada um de nós, em cada altura das nossas vidas. Mas como encontrar os livros certos para cada pessoa?
Claro que tudo é subjectivo e que é impossível adivinhar o gosto de cada um, mas isso não pode servir para fingir que o problema não existe - e que há livros e pessoas e filmes e países que são bons para toda a gente, e que toda a gente deveria conhecer. Não há. Nunca houve. Nunca haverá.
A verdade é que tem de ser cada um a procurar o que gosta. Só procurando se encontra o que nos faz felizes.
Mas o procurar não é um meio - é o fim em si. É o procurar que nos prepara para o prazer, não só de encontrar, mas de conhecer.
Ao tentarmos fazer atalhos, não estamos a perder o prazer do caminho. Isso é um lugar-comum. Na verdade, o caminho é quase sempre uma chatice, como em qualquer viagem.
Para já, tornamo-nos cada vez melhores como procuradores. Quanto mais coisas boas achamos, melhor percebemos o que procuramos, e queremos, e precisamos.
É por isso que não basta apanhar o que outros encontraram. Sim, a coisa pode ser muito boa só por si, mas falta o caminho que foi preciso fazer para lá chegar.
Em Manchester conheci um velhote, sempre impecavelmente vestido, que tinha ficado viúvo muito novo e que andava à procura de uma segunda mulher. Em vez de desistir, como tinham feito os amigos dele, estava sempre catita, pronto para o que desse e viesse. É isso que devemos fazer, quando a felicidade se faz tardar: estarmos sempre disponíveis, estarmos sempre prontos para ela.
Não há atalhos: apenas preparações. Para se ser feliz, é preciso estar à mão. É preciso gostar do dia-a-dia de quem está pronto. É preciso manter as estrelinhas nos olhos. Tanto faz vir na forma de uma pessoa ou de um disco, ou de outra alegria qualquer.
Estar pronto é procurar.
Procurar é o que mais se aproxima da felicidade. Como a felicidade é passageira, e incerta, e, às vezes, nem sequer aparece, o procurar é o que fica, o procurar é aquilo em que se pode confiar.
Se calhar, até nem precisamos de ser felizes. Precisamos é de estar distraídos. Se calhar, a verdade da vida é sempre muito triste, e não somos feitos para a aguentar.
É procurando que nos distraímos mais. Roubar o que os outros encontraram é roubarmo-nos a nós mesmos.
Ficamos com as felicidades dos outros - que nunca cabem, que nos ficam sempre mal - e, acima de tudo, ficamos sem a coisa que mais graça tinha, que era a procura. Que era o procurar.
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