domingo, 29 de janeiro de 2023

A Primeira Vez Na Cadeia

Estou sentado num grande salão que se chama parlatório, cheio de mesas numeradas e a minha é a nº 42. A maiorias das pessoas que aqui está são mulheres, mas também alguns homens e bebés de colo. No permanente barulho de fundo ouve-se também falar castelhano. Ao meu lado esquerdo está a minha colega, bem encasacada, que tem idade para ser minha filha e foi um disparate termos combinado vir os dois de Doc Martens. As pessoas estão bem dispostas e nem parece que estamos dentro de uma cadeia.

Perto da meia noite ele tinha avisado que não iria trabalhar no dia seguinte porque estava com uns problemas pessoais e que assim que os resolvesse avisava. Mas passou um dia, dois dias, tinha o telemóvel desligado e ninguém sabia do seu paradeiro. Até que começamos a telefonar para os hospitais e fomos à polícia mas nem sinal dele. 

Para aqui chegar a esta sala onde agora estamos teríamos que preencher primeiro uns formulários e colocar fotografias. Mas, quem é que nos dias de hoje tem fotografias tipo passe? Agora nos documentos usam as câmaras digitais para nos fotografar, em mais ficamos quase a parecer uns presidiários. Só falta mesmo o número ao peito! 

Os dias foram passando e não havia jeito de saber que paradeiro ele tinha levado. Nem com a polícia, indo lá a casa se conseguiu saber alguma coisa. No trabalho todos especulávamos e cada um dava a sua opinião, por mais cinematográfica que fosse. 

As semanas foram passando e há que confessar que fomos adiando um pouco as coisas, por um lado um pouco de preguiça em tratar das coisas, por outro, talvez na esperança que ele pudesse rapidamente sair e, pelo meio, ainda se meteu as festas e o novo ano. Mas tínhamos que meter pés a caminho se o queríamos ir visitar brevemente. E a verdade é que, nós os dois fomos, desde o início, os que mais força mostrámos em querer visitá-lo. E nem é porque fôssemos muito próximos, porque somos só os colegas de trabalho mais novos da empresa.

Olha agora ir ao fotógrafo ou deslocar-me a uma qualquer máquina para tirar fotografias! Era o havia de faltar! Os meus colegas têm sempre o mais recente iPhone, que já percebi que tira umas fotografias ótimas, e na nossa loja temos umas belas paredes brancas que fazem um belo enquadramento e, ainda por cima, pela manhã, bate ali uma bela luz natural! Bastaria então tirar fotografias ali mesmo, fazer uma colagem num site meu bem conhecido e dividir uma fotografia 10x15 em nove, e já tínhamos três fotografias para cada um, e tudo isto por quarenta cêntimos! Excelente! e os meus colegas ficaram muito surpreendidos com a solução!

A colega começou a investigar nas redes sociais dele, afinal, todos nós temos uma vida virtual e conseguiu chegar a um perfil da irmã e entrou em contacto por mensagem mas ela não respondeu, nem sequer a viu...

Poderia ter sido uma semana antes mas as coisas têm o seu tempo de acontecer. No dia anterior a minha colega passou do exaltamento por irmos vê-lo no dia seguinte, à desilusão de saber que, à última hora, seria a família, que é de longe, a ocupar o lugar das duas visitas. 

Mas o dia da visita lá chegou. Chegamos cedo e, como já era a segunda vez que íamos a Custóias, já não nos iríamos meter por aquele caminho de cabras que o GPS nos tinha mandado da primeira vez, quando fomos tratar do cartão de visitante. Mas, mesmo depois de termos visto o parque, e a seguir o estabelecimento prisional, mesmo à nossa frente, acabamos por: "Bem, se o GPS nos diz para seguir em frente e contornar, quem sabe haja uma melhor localização pelo outro lado". Mas esta é mais uma prova que para usar um GPS é preciso espírito crítico (como quase com tudo) e não seguir cegamente as instruções que nos dão. Já o Zeca Afonso dizia que o seu comitê central era o seu cérebro. 

... Estamos na mesa do refeitório, só eu e a minha colega que está de novo à minha esquerda, com o iPhone em frente. De repente recebe uma notificação. A irmã dele aceitou o pedido de amizade e, mais importante ainda, começou a escrever! Ficamos muito ansiosos! Finalmente iríamos saber o que se estava a passar. Mas ela responde que se trata de uma situação complicada e prefere explicar ao responsável, mas, nem de propósito, ele chega e de imediato telefona-lhe e coloca em alta-voz. Ela, de voz embargada, explica que esta situação deixou todos surpreendidos porque "o meu irmão é boa pessoa" e revela que ele foi detido. 

Saímos do carro sem nada, eu unicamente com as chaves e ela com duas tabletes de chocolate Lindt. E lá fomos nós para a porta. Já não nos lembrávamos do número de recluso dele, e demos o primeiro nome ao que o senhor simpático que estava ao balcão, com pronúncia de padre de Viseu, que respondeu "Eu tenho aqui trezentos!" (só naquela ala), mas lá nos deu um papelinho amarelo (porque afinal eram precisas duas fotografias para o cartão de visitante) e disseram-nos: "Estejam aqui à 9:15 junto a esta porta". Obviamente que as tabletes de chocolate não puderam entrar. Naquele tempo que ainda faltava fomos para o carro. Liguei-o e fui estacioná-lo bem ao sol, porque o frio era gélido. 

Trazer as Doc Martens foi, de facto, uma idiotice porque, como é lógico, fizeram apitar o detetor de metais. E lá tive que ficar descalço. E tirar o cinto e os casacos. E voltar a passar no pórtico até não dar sinal de vida.

Às 9:15 estávamos na pequena bicha de pessoas que aguardavam. Várias pessoas tinham sacos que teriam roupa dentro, sacos esses que eram todos iguais. Assim que entramos, fomos colocados num corredor, com umas linhas amarelas dessincronizadas, a fazer uma grelha de partida das corridas de Fórmula 1. Eu fui chamado primeiro e nem estava a perceber que era por mim que o polícia chamava. As chaves foram um problema porque só se pode mesmo levar a chave do carro e eu com as chaves de duas casas e da empresa quase pareço o Senhor das Chaves do Matrix! Lá tive que ir de novo ao carro deixá-las e regressar enquanto a colega ficava na mesma posição da grelha de partida. 

Pi pi pi, para trás, pi pi pi, para a frente, até que posso avançar, atravessando uma porta que me leva a um novo salão onde já aguardam algumas mulheres. A minha colega passou pelo mesmo procedimento mas foi acariciada ao pormenor por uma mulher, ainda assim foi tudo muito profissional, tal como aconteceu comigo, mas a mulher polícia preveniu-a por causa dos arames do soutien que fazem acionar o pórtico do detetor de metais. O melhor será trazer um soutien de desporto ou idealmente não trazer. 

Minutos depois, a minha colega junta-se a mim e mais algumas pessoas vão entrando e não é de estranhar que já sejam conhecidos até porque, além de terem presos preventivos, também há ali pessoas a cumprir penas de vários anos. É normal que, tal como já me aconteceu no hospital, também nas cadeias os familiares travem conhecimento. 

A ambos, até porque me parece que ambos temos sensibilidades semelhantes, causou alguma ansiedade irmos a uma cadeia. Há sempre algum desconforto quando fazemos ou passamos por algo pela primeira vez. E é sempre bom termos o conforto de ir acompanhados. Terá sido ainda mais importante para a minha colega, porque é mulher e porque é bastante sensível. Mas, também para mim foi importante ela estar comigo.

E foi assim que, muito ansiosos pela experiência emocional forte que iríamos viver, chegamos ao parlatório para visitar um colega com quem trabalhamos durante mais de um ano.

Na minha cabeça estava tudo muito claro e na dela também. Tínhamos falado antecipadamente sobre isso, ainda por cima porque, nas últimas semanas, já desde o ano passado, tínhamos trabalhado juntos só os dois. E conversamos muito sobre as nossas coisas e é normal que tenhamos ficado ainda mais próximos. 

Nós não o iríamos julgar até porque não somos juízes. Não nos interessa saber se é culpado ou inocente. Ele é nosso colega e quem tem que investigar é o Ministério Público. E quando, no fim da visita, ouvimos da boca dele "eu também estava nervoso mas foi uma visita muito alegre porque muitas vezes as pessoas vêm para cá tristes", parece-me que fizemos tudo bem e foi tudo muito genuíno. 

Nas cadeias portuguesas, por mais que isto possa que possa surpreender algumas pessoas, os reclusos não usam fatiotas cor-de-laranja ou brancas e às riscas pretas, muito menos grilhões com uma grande bola de ferro. Usa-se roupa comum como qualquer pessoa na sociedade. 

Estávamos à esquerda, talvez a uns seis metros da porta por onde ele iria entrar. Dentro de momentos iríamos reencontrá-lo três meses depois. Os reclusos foram entrando na sala aos poucos, ora um, ora outro e entraram vários mas ele não. Foi já dos últimos quando o vimos entrar, à procura das suas visitas e lá nos viu e dirigiu-se até nós. A ele me dirigi, cumprimentei e dei um abraço e a minha colega também o encheu de mimos. 

Quando a campainha tocou, igual à daquelas das escolas, aquela hora de visita parece que passou num abrir e fechar de olhos. Não houve silêncios constrangedores - também é verdade que comigo isso é complicado de acontecer! - e os três fomos falando. Fomos-lhe perguntando sobre como é a vida na cadeia, as rotinas, como é que se está a sentir  (está preso preventivo a aguardar julgamento e ainda não foi condenado por nada) e não fizemos qualquer inquérito em saber detalhes. Claro que ele se terá sentido na obrigação de se justificar mas não tinha que o fazer. Nós somos colegas, não somos amigos, mas como digo muitas vezes a esta nova colega, é com os colegas de trabalho que passamos a maior parte do nosso tempo, não é com o namorado, esposa ou amigas. 

Hoje em dia, uma pessoa detida ou condenada por algum crime perde a liberdade. Já não há trabalhos forçados nem o desterro. E há quem desvalorize mas, na minha modesta opinião, a liberdade é talvez das coisas mais importantes que temos na vida. Mas um recluso não perde só a liberdade. Como ele bem lembrou, perde-se também a privacidade. 

Ainda que tenha televisão e Playstation 2, que vos vai parecer uma enorme mordomia, na sua cela estão seis pessoas, e, se não me engano, três beliches. E tem sempre que lidar com aquelas pessoas, quer goste delas ou não. Ainda bem que, ao que parece, está tudo tranquilo. Mas perde-se a privacidade em tudo, mesmo nas necessidades mais básicas, curiosamente as que mais constrangimento podem causar, não houvesse, por exemplo, casais que nem o quarto de banho partilham. 

Não há reinserção nenhuma. Há de tudo lá dentro e a cadeia não será uma escola de vida. Os seguranças, segundo ele, é meio-meio. Uns são tranquilos e afáveis, outro nem por isso, e compreende-se, há que impor respeito e disciplina porque haverá por lá muita gente que não é propriamente um menino de coro. Apesar dos controlos, há de tudo lá dentro. Sim, smartphones e droga. E também há "brigas" e "não se confia em ninguém". 

Ele pareceu-me bem, quer fisicamente quer mentalmente, e, apesar das queixas da comida e dos horários, pudera, jantar às quatro e meia da tarde não me parece muito agradável, a verdade é que nestes três meses já engordou oito quilos e ainda bem, porque todos achávamos que estava muito magro. E lá dentro há comida que se pode comprar para complementar a refeição que é dada e também contou os esquemas improvisados como cozinham mesmo dentro da própria cela. 

Em três meses leu doze livros. Muita psicologia, muito Freud. Está na média de Lula da Silva, que naquele ano do golpe em que o meteram na cadeia ano leu cerca de cinquenta livros. O mais curioso nesta questão dos livros é que, quando foi detido, tinha na mochila a bíblia que eu, ateu, lhe tinha arranjado, porque ele mesmo me tinha pedido quando fui a um armazém e comprei uma data de livros, todos por um euro cada um. Explicou também que ter sido detido é entrar no mesmo processo que se passa no luto. E comprou uma caneta e começou a escrever. Se ler, além de ocupar o tempo, é ter a possibilidade de viajar e sair do local onde está, escrever pode ser terapêutico. 

Apesar de toda esta situação, que não é nada agradável, saímos de lá muito bem conosco mesmos e ambos passamos o dia a refletir naquilo que vivemos. É uma coisa que não se esquece. E se há algo que passo a vida a repetir, é sobre o excelente exercício  que é, sabermo-nos colocar no lugar dos outros. 

O Principal Inimigo da Democracia é o Centro Comercial

Uma das minhas frases preferidas de Aldous Huxley, que até ostento aqui no blogue, e de quem li, por exemplo, "Admirável Mundo Novo", "Contraponto" ou "Também o Cisne Morre" é:
 
"A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento , os escravos terão amor à sua escravidão."

Ao ler a seguinte crónica no El País sobre como as pessoas estão a abdicar da democracia e da sua liberdade, porque estão a ser compradas pelo dinheiro de imediato lembrei-me de Huxley.
 



"No Qatar ganhas poder de compra mas renuncias a ser um cidadão. Vives à grande. Vi um colega comprar um Hummer. Vi espanholas de discurso progressista escravizar as suas criadas sudanesas. Para meu espanto o meu marido escocês disse "democracy is overrated"...

Cheguei a Doha em 2013. Podemos dizer, para simplificar, que estava farta de encadear contratos lixo na Europa e aceitei um emprego de professora bem remunerado num lugar assustador. Da janela do meu escritório na universidade pude ver um deserto sem dunas que mais parecia um deserto sem fim sob uma nuvem de poeira.

Morar lá é complicado com pouca empatia que se tem.

Um: deves-te proteger contra o sistema de castas; trabalhas para os cataris, lidas com pessoas em circunstâncias semelhantes às tuas - estrangeiros com empregos qualificados - e és servido por homens e mulheres pobres.

Dois: da janela do carro, todos os dias vês centenas de trabalhadores, escravos modernos, no momento em que são transferidos de autocarro dos locais onde dormem para os prédios - estádios, museus, hotéis - que eles constroem, ou vice-versa .

Três: deves acostumar-te a ter alguns alunos cujos rostos não vais poder ver.

Quatro: planeja sempre o medo de te meteres em encrencas sem querer.

Cinco: todas essas coisas que dizem sobre o Catar - que financia o Islão radical, principalmente - são difíceis de aceitar como pertencentes ao lugar que fazes a tua casa, então tenta não pensar nelas. A lista poderia continuar.

Como é curioso o coração humano: com tudo, acabas desenvolvendo um certo vínculo sentimental com aquele deserto onde, desde o início, só foste ganhar dinheiro.

Na Europa, a onda de indignação contra o Catar – alimentada pelo recente Campeonato do Mundo – tem sido unânime e ninguém pode negar que é bem fundamentada. É uma pena que os protestos vão cair em saco roto. Alguém pensa que o emirado se preocupa com as mensagens estridentes nas redes sociais, as pulseiras que têm a validade de um suspiro?

Nós, ocidentais, imaginamos os cataris como um povo de ex-camaleões fanáticos que tiveram a sorte de encontrar gás sob a restinga onde estavam acampados. Nós os pintamos como uma tribo de novos-ricos que gostam de bugigangas sofisticadas e luzes de LED. De acordo com o que Edward Said nos ensinou a pensar no Orientalismo, essa representação surge da nossa ansiedade pela perda de status, do desejo de salvar nossos móveis num planeta cujo centro está irremediavelmente deslocado para o Oriente.

Acredita, há algo comovente no Qatar. Uma ânsia muito juvenil de conquistar o mundo - de sediar as melhores universidades, os melhores museus, as melhores competições esportivas.

Quando me mudei para Doha, o slogan Qatar merece o melhor - “O Qatar merece o melhor” - preenchia os enormes outdoors atrás dos quais estádios e novos arranha-céus estavam sendo construídos. A morte de muitos trabalhadores torna pavoroso um país que, ao contrário de outros, soube fugir ao controlo colonial e preservar o seu património energético. Há boas razões para atender a esse país empoeirado e incompleto que está parcialmente moldando o século XXI, não apenas de seu fundo de investimento e conhecimento de negócios. Vamos enfrentá-lo o mais rápido possível: o Qatar tem um poder que supera os melindres europeus.

Coloque-te na seguinte situação. Imagina que o vento da vida o levou-te a trabalhar em uma universidade do Qatar, onde está prestes a acontecer um congresso internacional de tradução, e que cerca de cinquenta tradutores e romancistas de vários países escrevem uma carta aberta pedindo o boicote ao evento. A razão? A prisão de um poeta - Muhammad AlAjami -, condenado a prisão perpétua por ter recitado um poema dissidente. Pergunta: o que fazes? Saúdam a fábrica, arrancam a roupa e voltam para a Espanha, o país das oportunidades zero? Ou eles ficam quietos como um homem morto para não se meter em problemas?

Lembro-me da reunião do corpo docente em que discutimos a questão do boicote e na qual, admito, fiquei em silêncio. Parece que ainda ouço o Dr. Jian, um chinês, sussurrando em meu ouvido: “Ah, tem algum poeta na cadeia?” enquanto levanta delicadamente um único dedo. Aquele seu espanto, que ainda não sei interpretar, foi o mais perto que cheguei do pântano onde às vezes as culturas se cruzam.

Viver em um lugar como o Qatar constitui o expatriado. Quando Peter Sloterdijk fala sobre como o habitar gera uma “práxis de fidelidade ao lugar”, acredito que a ideia crucial está na palavra práxis. Viver é fazer as coisas à maneira do novo contexto, razão pela qual quem emigra vê o seu quotidiano transformado pelo local de destino.

É incrível o que nós, ocidentais, nos tornamos quando começamos a ganhar um salário em rials. O regime do Qatar é habitável porque dá dinheiro e oferece lugares brilhantes para gastá-lo. O shopping é muito divertido! Ele é o verdadeiro rival da democracia.

No Qatar ganhas muito dinheiro mas desistes de ser um cidadão. Vives à grande. Vi um colega do departamento comprar um Hummer; Vi mulheres espanholas de discurso progressista escravizarem suas criadas sudanesas. Para meu horror, meu companheiro escocês Connor, que criava suas filhas lá, disse um dia: “democracy is overrated” (a democracia é sobrevalorizada)

O desafio que enfrentamos no Qatar não é apenas que os direitos dos homossexuais e das mulheres não sejam respeitados lá. Muitos cataris removem sua abaya preta assim que embarcam em um avião para Londres. O difícil será que a democracia seja globalmente um objetivo atrativo.

Divertindo-se até a morte, Neil Postman alertou sobre isso, fazendo sua própria profecia de Aldous Huxley: "As democracias ocidentais cantarão e sonharão até o esquecimento". É doloroso, mas vamos cair a cereja o mais rápido possível: o planeta Terra está lotado de seres humanos que não são exigentes com a ideia de se estabelecerem num regime autocrático que promete segurança e riqueza.

Na entrada do hospital Sidra, na Cidade da Educação, bem perto de onde morei e ensinei, há um grupo de grandes esculturas de Damien Hirst. É intitulado The Miraculous Journey e representa o desenvolvimento de uma vida humana, desde a concepção até o nascimento. A sua instalação foi controversa. Alguns cataris consideravam-na imoral, por isso o complexo passava temporadas coberto por lonas pretas, acostumando aos poucos os mais ortodoxos a vê-lo sem levar as mãos à cabeça.

Ultimamente, tenho pensado muito naquele trabalho de Hirst e na dança de mostrá-lo e escondê-lo. Vejo nela um estranho desfolhamento da margarida, um chocante cabo de guerra entre a democracia e a tirania que resta saber por qual lado opta.

Raquel Taranilla / El País

sábado, 28 de janeiro de 2023

Andamos a Sustentar Quem Não Quer Fazer Nada?

 Hoje os fascistas do partido ilegal parece que se reúnem novamente. 

Depois do que se soube esta semana é caso para perguntar: andamos a sustentar quem não quer fazer nada?



Em Busca da Chave Perdida

Depois de meses a fio sempre a chover, aproveitei o sol e domingo passado fui dar a primeira volta de bicicleta do ano mas não foi com a segunda bicicleta que entretanto comprei porque precisa de uma afinaçãozinha no travão. O inverno é sempre uma boa altura para comprar uma bicicleta usada a bom preço e todos os dias são colocadas centenas à venda porque é quando as pessoas descobrem que têm ali um mono parado sem utilização.

Decidi rumar à ponte Dom Luís e daí virar à esquerda e ir até à praia de Avintes. A ponte continua em obras. Estas supostamente deveriam ter acabado em outubro passado mas a verdade é que a ponte ainda continua um verdadeiro estaleiro por onde as pessoas têm que passar numa espécie de gincana para conseguir chegar à outra margem. Duas mulheres que falavam espanhol vão à minha frente e eu sigo-as silenciosamente. De repente quando dão pela minha presença quase se assustam e querem-me deixar passar, como se fosse possível. Não é, porque naquele corredor de tábulas em forma de túnel uma bicicleta não consegue passar sequer por uma pessoa e o remédio é esperar pacientemente. 

Mal se sai da ponte sobe-se umas centenas de metros e chegado lá ao alto avista-se para a ponte do Infante. Encostei a bicicleta, tirei o telemóvel da mochila e quando me preparava para enquadrar o cenário a bicicleta tomba com o peso da mochila num dos punhos do guiador. 

Sigo viagem e fotografo os lábios do A-Rosa Alba ancorado metros à frente e lá vou pedalando tranquilamente vendo os turistas passarem nos barcos. Na praia de Avintes onde pintaram uma ciclovia constato a falta de educação ou falta de civismo ou falta sei lá do quê dos portugueses. Têm um enorme passeio junto ao rio para caminhar mas não. Fixe mesmo é caminhar todos a par pela ciclovia! 

Não consigo mesmo compreender tal como não entendo como é que alguém que conduz um Renault Megane de 2016 e vira para uma rua cheia de boas moradias pode atirar, mesmo à minha frente, lixo pela janela. Não consigo mesmo compreender. E depois ainda há gente a reclamar das aulas de cidadania. É verdade que muito evoluímos desde os tempos da ditadura mas ainda nos falta melhorar tanto!

Chego até ao fim do percurso sempre junto ao rio Douro e inverto o sentido. Rumo de novo até à Ponte D. Luis e depois seguir pela Marina do Freixo até Gramido. 

Coloco a bicicleta no reboque e reparo que não tenho a garrafa da água. Que estranho, tenho quase a certeza que o tinha trazido, como é possível que não esteja aqui? A verdade é que o suporte está partido, e tenho que comprar um novo, para não correr o risco de perder a garrafa. Preparo-me para entrar para o carro, quem sabe para ler um pouco do livro "Anatomia de um regicídio" que ando agora a ler enquanto refastelado no carro apanharia os últimos raios de sol do dia.

 Vou à mochila, procuro e volto a procurar mas não tenho a chave. Não pode ser! Como é possível ter perdido a chave do carro? Não adianta, vou ter que chatear os meus pais que aquela hora deveriam estar entretidos com os programas deprimentes da tarde da televisão e pedir-lhes se me fazem o favor de me virem trazer a chave do jipe.  

Naquela meia hora pude refletir e passar em revista todos os meus passos.

Fechei o carro e saí com a chave e sei que a coloquei dentro do bolso da mochila. Então, onde é que a poderei ter perdido? Pensa. Claro! No único ponto onde abri a mochila! No local onde tirei o telemóvel e quis fotografar. E agora tinha percebido o porquê do bidão não estar na bicicleta. Tudo fazia sentido. 

Os meus pais iriam chegar e eu já sabia como proceder. Eles levariam o meu jipe que estava com o reboque da bicicleta e eu ficaria com o Toyota Scarlet e iria a pé procurar a chave perdida. Frustrada a procura restava talvez participar o extravio. 

E assim foi. Estacionei o carro a umas centenas de metros da ponte e já mais agasalhado comecei a caminhar em passo apressado até ao local do crime. Estava agora a poucos metros, aproximei-me, olhei para o chão e ali estava a garrafa de água caída... procuro em volta rapidamente mas nada. A chave não estava ali. Como seria possível? O que é que levaria alguém a apanhar uma chave de um carro? 

Já desanimado levanto a cabeça para cima e dou de caras com ela! Estava ali à minha frente, pendurada na parede! De facto alguém apanhou a chave do chão mas deu-se ao cuidado de a pendurar talvez para melhor chamar a atenção da pessoa que a perdeu, neste caso eu.


Aqui fica o meu obrigado a essa pessoa. 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Arrogância 4.0 - A História Insustentável



"Poderíamos aproveitar estas datas para novos propósitos para nos livrarmos da esquizofrenia que se instalou nas nossas vidas para consumir, quando o que queremos é vidas para consumir

Diante de um futuro repleto de incertezas, a nossa sociedade oscila entre duas narrativas contrastantes: a primeira enfatiza o individualismo arrogante e a lei do mais forte. O discurso alternativo mais disperso é articulado sobre comunidade, interdependência e confiança. Propõe um desenvolvimento inclusivo e sustentável que salva a todos, a começar pelo planeta.

Ninguém personifica melhor a era da Arrogância 4.0 do que os magnatas das superestrelas digitais. As suas aparições públicas exibem um frenesi de braços e pescoços estourados, peitorais rasgados sob camisetas e blazers justos, trajes de astronauta ou de esgrima. O corpo musculoso é o recipiente de uma masculinidade de macho alfa, acompanhada de sinais de proeza heterossexual (mulheres espetaculares; muitos filhos). Elon Musk pratica jejum intermitente para melhorar sua aparência e tem 10 filhos de quatro mães. Estes são os novos ícones que inspiram a cultura brogrammer (irmão + programador). Ele é um padrão masculino branco, bronzeado,  desportivo e heterossexual, vestindo roupas caras e óculos escuros (...)

Em termos económicos, uma parte dos negócios atuais dos gigantes digitais decorre menos da disrupção tecnológica do que da desregulamentação; da falta de transparência; do monopólio de dados, clientes e serviços, como mecanismo para dominar o mercado e moldar comportamentos. Fora do oásis regulatório europeu, os vestígios da vida humana se transformaram em mercadorias que não nos pertencem e são usadas descaradamente para moldar nosso consumo, assim como nossas ideias, direitos, liberdades, amores e ódios. Ao mesmo tempo, não poucos membros da irmandade arrogante têm se orientado para a especulação financeira de empresas (até agora) altamente supervalorizadas na Bolsa, onde a busca pelo sucesso esqueceu a função empresarial de explorar as enormes possibilidades da tecnologia resolver os problemas da vida que passa aqui e agora. Outra característica não insignificante é a cultura do bullying das empresas, que praticam a engenharia financeira para transferir seus lucros para paraísos fiscais, porque as regras  - como os impostos— são para os outros e é melhor pedir desculpas do que pedir permissão. Os advogados sempre podem ser enviados para litigar.


Esses tipos de empresas não buscam resolver a pobreza ou a crise climática, nem cultivam nosso talento e criatividade. Eles oferecem vida num mundo virtual habitado por homens e mulheres artificiais, turismo espacial para os mega-ricos ou dispositivos caros para o metaverso. A alternativa deles para esgotar os recursos do planeta Terra é nos prometer viver em Marte. Assim, esses magnatas superstar encurralaram a narrativa do futuro com uma proposta simples e integrada: eles são o futuro. O grave é que poucos ousam questioná-los, por medo de serem considerados velhos. Não nos deparamos com a dicotomia entusiasmo/rejeição da digitalização. Mas as propostas tecnológicas desde a Arrogância 4.0 implicam mais concentração de riqueza, autoritarismo e modelos desastrosos. No campo trabalhista, embora as recentes - e provavelmente futuras - perdas de empregos no setor se devam a causas múltiplas e complexas, a Arrogância 4.0 atingiu seu ápice com a demissão de dezenas de milhares de trabalhadores por e-mail, por meio de mensagens humilhantes alertando que têm que trabalhar mais - 24 horas por dia - com menos recursos e dormir no escritório (...)

Em termos políticos, a Arrogância 4.0 é contagiosa, aumenta a polarização e amplia o papel do privado em oposição ao público, enfraquecendo o quadro institucional. Embora tentem nos convencer de que estamos em uma nova democracia digital de liberdade de expressão ilimitada, a ordem algorítmica modela os fluxos de informação, os espaços de deliberação e as fronteiras entre a verdade e a mentira, interferindo no desenvolvimento da democracia e impulsionando para a autocracia.

Abundância de pensamento, política e ativismo que se opõe a esse cenário apocalíptico e sedutor, também por parte do setor de tecnologia. Mas faltam narrativas e respostas que articulem essa energia dispersa em torno de uma concepção mais abrangente da sustentabilidade da vida, nas suas vertentes social, económica, ambiental, ética... e claro digital. É fundamental interligar causas, quebrar bolhas e reconhecermo-nos num projeto comum em que caibam todas as dimensões do que torna a vida vivível (...)

O decisivo, porém, é vencer nossa inércia, feita de comodismo, indiferença, medo, impotência e decepção. Arrogância 4.0 é um caminho fácil e rápido. A sustentabilidade parece simples, mas é difícil de colocar em prática porque implica em autotransformação e não oferece retornos imediatos. Mas situar-nos no frágil ponto de equilíbrio entre cuidar do presente e cuidar do futuro, entre o individual e o coletivo, não é uma utopia. Requer inovação, compromisso, mobilização e consciência crítica de nossas contradições. Poderíamos aproveitar essas datas em que circulam inúmeras correntes de bons sentimentos e intenções para nos livrarmos da esquizofrenia que nos instalou em vidas para consumir quando o que queremos é vidas para consumir. Para isso, precisamos promover agendas – individuais e compartilhadas em diferentes escalas – apoiadas sobretudo por um impulso ético irreprimível. É fundamental interligar causas, quebrar bolhas e reconhecermo-nos num projeto comum

Cecilia Castaño e María Ángeles Sallé / El País 17 de Janeiro de 2023

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

A Imprensa Portuguesa A Fazer-se Sonsa


 A notícia desta quarta-feira, 18 de Janeiro de 2023 que fez primeiras páginas dos jornais um pouco por todo o mundo foi a retirada de Greta Thunberg que se manifestava à entrada de uma mina de carvão na Alemanha. Mas nenhum jornal português fez eco da notícia. Porquê?

Conversas Improváveis (74) - Deus Inoculado



De manhã, aproveitando o sol que tem sido pouco nos últimos meses, especialmente pouco ao fim-de-semana, andei a jardinar um pouco e arranquei do canteiro uma suculenta com uns incríveis dois metros. E quando já tinha metido na cabeça que de tarde iria dar uma volta de bicicleta, eis que a minha mãe me telefona a perguntar se eu queria ir dar uma volta com eles para desanuviar. 

E pronto, o primeiro passeio de bicicleta do ano lá ficou adiando para outro fim-de-semana...

Tínhamos saído há meia hora talvez. Parei e os meus pais foram ver a fruta que se vendia na beira da estrada e rapidamente já estavam em amena cavaqueira com a vendedora.

Pouco depois um Mercedes dos anos noventa aproxima-se e para mesmo em frente dos garrafões de vinho. A senhora no lugar do pendura ia abrir a porta e derrubá-los todos. Eu aproximei-me e afastei-os mas o senhor fez recuar o carro. 

Afastei-me e dentro de segundos todos estariam na conversa, até que porque o senhor de oitenta e três anos que saiu do carro e disse à esposa para levar figos, e também ele era bastante conversador e espirituoso como a minha mãe.

Já quando os meus pais estavam quase a entrar no carro ouvi-o dizer:

"Deus foi uma ideia inoculada nos seres humanos.

A minha mulher acredita que há outro mundo. Mas não há este e o outro mundo. Eu sei que quando morrer tudo acabou. Não vou para lugar algum". 

domingo, 15 de janeiro de 2023

Os Patos Selvagens São Mais Livres do Que Nós

"Não pedimos passaporte aos patos selvagens, pois não?  Eles são mais livres do que nós. 

Sou muito sensível ao direito das pessoas se poderem fixar onde quiserem. Isso deveria ser um direito universal". (Le Clézio / Nobel 2008 / La Vanguardia)



sábado, 7 de janeiro de 2023

A Americanização dos Serviços de Saúde Europeus em Curso


 Os governos conservadores sucedem-se no Reino Unido, a descapitalização dos serviços de saúde avança e o caos instala-se com centenas de mortos todas as semanas. As pessoas não conseguem consultas, automedicam-se, recorrem à internet e começaram as greves dos profissionais como nunca se viram. 

Nesta mesma semana em que saem notícias do caos da saúde britânica (esta notícia li-a no La Vanguardia)  abordou-se também no primeiro Old Friends do ano da Antena 1 a temática da saúde e, relembrar que os dois intervenientes são Júlio Machado Vaz e Sobrinho Simões são dois médicos e, como tal, com opiniões avalizadas sobre o tema. Aqui ficam alguns excertos bastante reveladores:

"Os serviços nacionais de saúde na Europa estão em risco de colapsar e não é por causa da Covid. É por questões de subfinanciamento e falta de pessoal. Nós não podemos dizer à malta: "não envelheçam"!


Em Inglaterra é caótico.
Há numerosas organizações a dizer que os governos conservadores têm tido um sistemático subfinanciamento. Depois a questão dos salários e de fuga de profissionais.

Está a acontecer uma americanização dos serviços de saúde na Europa?
É verdade. Está a acontecer isso que é péssimo pq o sistema americano do ponto de vista da eficiência é péssimo. O sistema é mais caro e muito pior que a Europa. Qualquer país da Europa, mesmo nestes fraquinhos, são melhor que os americanos em termos do custo-benefício. A América é extraordinariamente cara e é obsceno.

Todos nós portugueses ficamos espantados como é que há tantos hospitais privados e continuam a fazer hospitais privados num país pobre. Grande parte da medicina privada portuguesa é paga pelo contribuinte, por exemplo a ADSE.Sou a favor de manter a medicina privada e social mas não pode é ser à nossa custa.

Se há um tipo que tem um cancro e vai para uma instituição privada e nós já sabemos que se demorar mais de X semanas ele vai chegar ao teto e eles mandam-no para casa para um hospital público. Eles ganharam durante muito tempo com medicamentos caríssimos e ganharam uma vantagem económica enorme para os privados e depois os chaços vão para o público.

Acontece o mesmo com os partos. Se as crianças nascem bem é um sucesso e foi por cesariana e toda a gente fica felicíssima. Se por ventura ao terceiro dia a criança está mal, é pá chama-se o INEM e eles levam para o hospital público. E estes custos caem depois só no público.

Se Deixei de Ser Benfiquista Também Posso Deixar de Comer Bolo-Rei


 Desde pequeno, quando não havia a fartura de hoje, em que se estraga tanto, o que mais adorava pelo Natal, além de estar com o meu avô, ouvir as suas mesmas histórias de sempre, e vê-lo acender o madeiro, era comer bolo-rei. 

Para mim hoje em dia Natal é, basicamente, um dia como os outros, mas dia assinalado no calendário de comer batatas cozidas com bacalhau e beber refrigerante. E se é Natal quando o Homem quiser, também é dia de comer bolo-rei quando o Homem quiser, mas a verdade é que isso não acontece frequentemente. 

Este ano estava meio inclinado a nem sequer comprar bolo-rei porque a verdade é que o bolo monarca anda completamente falsificado, mas, lá acabei a ir comprar a uma pastelaria afamada de Gaia. 

Chego lá e a bicha já estava no passeio da rua. O remédio era esperar. Uns vinte minutos depois lá chega a minha vez e:
- Era um bolo-rei por favor...
 Olhe, desculpe, tem que subir ao primeiro andar...

Puta que pariu! Uma pessoa fica ali imenso tempo para depois ter que subir as escadas e enfrentar nova bicha e esta ainda maior que a anterior! Mas o remédio é continuar a esperar e, passada uma meia-hora, lá comprei um bolo-rei a 16€ o Kg. 

Provou-se depois de jantar e aquela merda era tão boa que eu preferia ter comprado uma broa de milho. Seco, completamente seco, como se estivesse a comer pão com meia dúzia de dias! Era tão intragável que o raio do bolo, para não ir para o lixo, foi comido aquecido com manteiga! Vou chorar aqueles 25€ enquanto me lembrar! 

Em conversa fiquei a saber que não fui só eu. O meu colega de trabalho que também comprou no mesmo sítio levou com a mesma receita e, o chefe, que comprou noutro sítio de Gaia, foi mesmo lá reclamar porque estava intragável, uma massa sem frutos nenhuns. 

Vende-se gato por lebre, batiza-se o vinho e o leite e é sabido que há vendedores a passar louro prensado por ganza. E eu gostaria de saber o que é que andam a meter dentro dos bolo-rei a fazer de conta de que é bolo-rei, porque bolo-rei não sabe assim. 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

"Ao Menos no Tempo de Salazar Não Havia Corrupção"

 

De vez em quando lá me vem alguém com o mito: "ao menos no tempo de Salazar não havia corrupção". Não sei se é ingenuidade, se é o poder na negação (agora chamado de negacionismo) ou se é mesmo burrice. E para que, da próxima vez que me vierem com essa tanga de que no tempo da ditadura fascista-católica, que apesar das pessoas não terem liberdade, serem presas e mortas arbitrariamente, mas que, ao menos, era tudo gente muito séria, aqui deixo o testemunho do historiador Fernando Rosas na revista Sábado de 18 Novembro de 2020:


"Os pedidos de cunhas e de empregos ao Presidente do Conselho

Os pobres pediam-lhe dinheiro, mas as elites (médicos, engenheiros, deputados, juízes, militares, empresários, padres e condes) queriam colocações em bancos, aumentos, cargos e comendas. Durante 36 anos, o ditador acedeu a centenas de cunhas".


!Acarta, datada de 16 de junho de 1960, começava de forma pungente: “Já não é a primeira vez que, em desespero de causa, recorro à bondade de Vossa Excelência.” Maria do Céu Taborda Barreto escrevia a Oliveira Salazar a partir da rua das Pedrinhas, em Vila Real. Mãe de sete filhos, “todos rapazes, que vão dos 5 aos 20 anos”, lamentava-se que as contas domésticas tinham mais despesas do que receitas. Estas resumiam-se ao ordenado do marido – 5.700 escudos (€2.140, usando os coeficientes de desvalorização da moeda), como engenheiro e diretor de Urbanização de Vila Real – e a “uma quintinha no Douro, que tão depressa dá 12 pipas, como dá 20”.

O Caso do Acidente

Mathilde Bornhöft (viúva alemã a viver em Portugal havia 30 anos) teve um desastre com vítimas em 1951, foi presa e teve de pagar caução de 20 contos. Em 1953 o juiz absolveu-a de culpa, foi “mandada em paz”, mas não conseguia reaver a caução, que terá sido roubada num desfalque que houve no tribunal do Torel. Dizia que precisava do dinheiro para manter a sua empresa familiar. O caso resolveu-se em menos de uma semana".





O governo de Salazar além de representar a fome, a repressão e a morte, representou também o caciquismo, o favor, a cunha, o compadrio, a corrupção, tanto a pequenina, envergonhada como a corrupção ao mais alto nível, Que se acabe pois, de uma vez por todas, com este mito e esta enorme mentira. 



domingo, 1 de janeiro de 2023

Tweet do Ano 2022

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 Fazem hoje quatro anos que me registei no Twitter. 

Neste ano que passou uma criança, ainda que seja a criança mais rica do mundo, Elon Musk, comprou a rede social Twitter. Muita gente saiu. Milhares ou milhões. Musk como que soltou os criminosos sob a falsa desculpa da liberdade de expressão. Bloqueou recentemente as contas de jornalistas americanos que o criticam. Ele é aquela criança que leva a bola para o recreio e, quando contrariado, expulsa quem não lhe faz a vontade. 

Muita gente fez questão se ir para outras redes sociais. Eu nem saí, nem fui tentar descobrir mais uma rede social. A verdade é que, por exemplo, cada vez menos utilizo o Instagram e cada vez menos me apetece ir lá e não consigo lá estar muitos minutos.

O Twitter é a rede social da comunicação, da troca de ideias, argumentos. Também cada vez mais, como as outras, a rede social das mentiras e do ódio. Mas, até ver, sinto-me confortável por lá, e enquanto sentir por lá ficarei. Quando não fizer sentido saio. 

Não planeio ir para outro sítio. Talvez porque não seja de desistir facilmente, seja nas relações, no clube, nos amigos... Se sair do Twitter, ficarei na minha casa, que é esta, o blog, e de onde nunca saí, apesar de por vezes o tomar por garantido, e haver tempos em que esteja mais presenta e tempos em que esteja mais afastado. 

No Twitter não é fácil subir em número de seguidores. Em 2022 atingi os mil seguidores, não é nenhum troféu, mas é um número redondo engraçado. E por uma questão de curiosidade fui ver qual tinha sido o "tweet" (no Twitter os "posts" (ou mensagens) chamam-se "tweets") e foi uma reflexão sobre os 90 milhões de euros que o Estado (alegadamente) laico vai gastar nas jornadas da juventude da Igreja Católica. 

Curiosamente estes 90 Milhões de Euros não fazem memes, não enchem jornais, não são discutidos nas televisões, nem originam demissões de presidentes de câmara, nem secretários de Estado nem ministros... e toda a gente se sente confortável com isto. Não é o meu caso. 

A Sede de Sangue

 


"Como a chuva, vem tudo a potes - ou não vem. Todo o continente é um imenso vulcão cuja cratera está temporariamente oculta por um panorama móvel, que é parte sonho, parte medo e parte desespero. Do Alaska ao Iacatão, a história é a mesma. A Natureza domina. A Natureza vence. Existe em toda a parte a mesma ânsia fundamental para chacinar, para destruir, para pilhar. Exteriormente, parece um povo excelente e honesto; saudável otimista e corajoso. Interiormente, está cheio de vermes. Um centelhazinha e explode. 

Acontecia muitas vezes, como na Rússia, um homem chegar amuado. Acordara assim, como que assarapantado por uma monção. Nove vez em dez era um bom tipo, toda a gente gostava dele. Mas quando a cólera irrompia nada o conseguia deter. Era como um cavalo com os vágados, e a melhor coisa que se poderia fazer por ele seria abatê-lo logo. Acontece sempre assim com as pessoas pacíficas. Um dia ficam amoque. 

Na América estão constantemente a ficar amoque. Do que precisam é de um escape para a sua energia, para a sua sede de sangue. A Europa é sangrada regularmente pela guerra. A América é pacifista e canibalista. Exteriormente parece um belo favo de mel, com os zangões a amarinharem uns por cima dos outros, num frenesi de trabalho; interiormente é um matadouro, com cada homem a matar o vizinho e a chupar-lhe o tutano dos ossos. 

Superficialmente, parece um mundo ousado, viril; na realidade, é um bordel dirigido por mulheres, com os nativos a atuarem como alcaiotes e os malditos estrangeiros a venderem a sua carne. Ninguém sabe o que é sentar o cu e estar satisfeito. Isso só acontece nos filmes, onde tudo é forjado, até os fogos do inferno. Todo o continente dorme profundamente, e nesse sono desenrola-se um grande pesadelo. 

Trópico de Capricórnio / Henry Miller (1939)