"Poderíamos aproveitar estas datas para novos propósitos para nos livrarmos da esquizofrenia que se instalou nas nossas vidas para consumir, quando o que queremos é vidas para consumir
Diante de um futuro repleto de incertezas, a nossa sociedade oscila entre duas narrativas contrastantes: a primeira enfatiza o individualismo arrogante e a lei do mais forte. O discurso alternativo mais disperso é articulado sobre comunidade, interdependência e confiança. Propõe um desenvolvimento inclusivo e sustentável que salva a todos, a começar pelo planeta.
Ninguém personifica melhor a era da Arrogância 4.0 do que os magnatas das superestrelas digitais. As suas aparições públicas exibem um frenesi de braços e pescoços estourados, peitorais rasgados sob camisetas e blazers justos, trajes de astronauta ou de esgrima. O corpo musculoso é o recipiente de uma masculinidade de macho alfa, acompanhada de sinais de proeza heterossexual (mulheres espetaculares; muitos filhos). Elon Musk pratica jejum intermitente para melhorar sua aparência e tem 10 filhos de quatro mães. Estes são os novos ícones que inspiram a cultura brogrammer (irmão + programador). Ele é um padrão masculino branco, bronzeado, desportivo e heterossexual, vestindo roupas caras e óculos escuros (...)
Em termos económicos, uma parte dos negócios atuais dos gigantes digitais decorre menos da disrupção tecnológica do que da desregulamentação; da falta de transparência; do monopólio de dados, clientes e serviços, como mecanismo para dominar o mercado e moldar comportamentos. Fora do oásis regulatório europeu, os vestígios da vida humana se transformaram em mercadorias que não nos pertencem e são usadas descaradamente para moldar nosso consumo, assim como nossas ideias, direitos, liberdades, amores e ódios. Ao mesmo tempo, não poucos membros da irmandade arrogante têm se orientado para a especulação financeira de empresas (até agora) altamente supervalorizadas na Bolsa, onde a busca pelo sucesso esqueceu a função empresarial de explorar as enormes possibilidades da tecnologia resolver os problemas da vida que passa aqui e agora. Outra característica não insignificante é a cultura do bullying das empresas, que praticam a engenharia financeira para transferir seus lucros para paraísos fiscais, porque as regras - como os impostos— são para os outros e é melhor pedir desculpas do que pedir permissão. Os advogados sempre podem ser enviados para litigar.
Esses tipos de empresas não buscam resolver a pobreza ou a crise climática, nem cultivam nosso talento e criatividade. Eles oferecem vida num mundo virtual habitado por homens e mulheres artificiais, turismo espacial para os mega-ricos ou dispositivos caros para o metaverso. A alternativa deles para esgotar os recursos do planeta Terra é nos prometer viver em Marte. Assim, esses magnatas superstar encurralaram a narrativa do futuro com uma proposta simples e integrada: eles são o futuro. O grave é que poucos ousam questioná-los, por medo de serem considerados velhos. Não nos deparamos com a dicotomia entusiasmo/rejeição da digitalização. Mas as propostas tecnológicas desde a Arrogância 4.0 implicam mais concentração de riqueza, autoritarismo e modelos desastrosos. No campo trabalhista, embora as recentes - e provavelmente futuras - perdas de empregos no setor se devam a causas múltiplas e complexas, a Arrogância 4.0 atingiu seu ápice com a demissão de dezenas de milhares de trabalhadores por e-mail, por meio de mensagens humilhantes alertando que têm que trabalhar mais - 24 horas por dia - com menos recursos e dormir no escritório (...)
Em termos políticos, a Arrogância 4.0 é contagiosa, aumenta a polarização e amplia o papel do privado em oposição ao público, enfraquecendo o quadro institucional. Embora tentem nos convencer de que estamos em uma nova democracia digital de liberdade de expressão ilimitada, a ordem algorítmica modela os fluxos de informação, os espaços de deliberação e as fronteiras entre a verdade e a mentira, interferindo no desenvolvimento da democracia e impulsionando para a autocracia.
Abundância de pensamento, política e ativismo que se opõe a esse cenário apocalíptico e sedutor, também por parte do setor de tecnologia. Mas faltam narrativas e respostas que articulem essa energia dispersa em torno de uma concepção mais abrangente da sustentabilidade da vida, nas suas vertentes social, económica, ambiental, ética... e claro digital. É fundamental interligar causas, quebrar bolhas e reconhecermo-nos num projeto comum em que caibam todas as dimensões do que torna a vida vivível (...)
O decisivo, porém, é vencer nossa inércia, feita de comodismo, indiferença, medo, impotência e decepção. Arrogância 4.0 é um caminho fácil e rápido. A sustentabilidade parece simples, mas é difícil de colocar em prática porque implica em autotransformação e não oferece retornos imediatos. Mas situar-nos no frágil ponto de equilíbrio entre cuidar do presente e cuidar do futuro, entre o individual e o coletivo, não é uma utopia. Requer inovação, compromisso, mobilização e consciência crítica de nossas contradições. Poderíamos aproveitar essas datas em que circulam inúmeras correntes de bons sentimentos e intenções para nos livrarmos da esquizofrenia que nos instalou em vidas para consumir quando o que queremos é vidas para consumir. Para isso, precisamos promover agendas – individuais e compartilhadas em diferentes escalas – apoiadas sobretudo por um impulso ético irreprimível. É fundamental interligar causas, quebrar bolhas e reconhecermo-nos num projeto comum
Cecilia Castaño e María Ángeles Sallé / El País 17 de Janeiro de 2023
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