Perto da meia noite ele tinha avisado que não iria trabalhar no dia seguinte porque estava com uns problemas pessoais e que assim que os resolvesse avisava. Mas passou um dia, dois dias, tinha o telemóvel desligado e ninguém sabia do seu paradeiro. Até que começamos a telefonar para os hospitais e fomos à polícia mas nem sinal dele.
Para aqui chegar a esta sala onde agora estamos teríamos que preencher primeiro uns formulários e colocar fotografias. Mas, quem é que nos dias de hoje tem fotografias tipo passe? Agora nos documentos usam as câmaras digitais para nos fotografar, em mais ficamos quase a parecer uns presidiários. Só falta mesmo o número ao peito!
Os dias foram passando e não havia jeito de saber que paradeiro ele tinha levado. Nem com a polícia, indo lá a casa se conseguiu saber alguma coisa. No trabalho todos especulávamos e cada um dava a sua opinião, por mais cinematográfica que fosse.
As semanas foram passando e há que confessar que fomos adiando um pouco as coisas, por um lado um pouco de preguiça em tratar das coisas, por outro, talvez na esperança que ele pudesse rapidamente sair e, pelo meio, ainda se meteu as festas e o novo ano. Mas tínhamos que meter pés a caminho se o queríamos ir visitar brevemente. E a verdade é que, nós os dois fomos, desde o início, os que mais força mostrámos em querer visitá-lo. E nem é porque fôssemos muito próximos, porque somos só os colegas de trabalho mais novos da empresa.
Olha agora ir ao fotógrafo ou deslocar-me a uma qualquer máquina para tirar fotografias! Era o havia de faltar! Os meus colegas têm sempre o mais recente iPhone, que já percebi que tira umas fotografias ótimas, e na nossa loja temos umas belas paredes brancas que fazem um belo enquadramento e, ainda por cima, pela manhã, bate ali uma bela luz natural! Bastaria então tirar fotografias ali mesmo, fazer uma colagem num site meu bem conhecido e dividir uma fotografia 10x15 em nove, e já tínhamos três fotografias para cada um, e tudo isto por quarenta cêntimos! Excelente! e os meus colegas ficaram muito surpreendidos com a solução!
A colega começou a investigar nas redes sociais dele, afinal, todos nós temos uma vida virtual e conseguiu chegar a um perfil da irmã e entrou em contacto por mensagem mas ela não respondeu, nem sequer a viu...
Poderia ter sido uma semana antes mas as coisas têm o seu tempo de acontecer. No dia anterior a minha colega passou do exaltamento por irmos vê-lo no dia seguinte, à desilusão de saber que, à última hora, seria a família, que é de longe, a ocupar o lugar das duas visitas.
Mas o dia da visita lá chegou. Chegamos cedo e, como já era a segunda vez que íamos a Custóias, já não nos iríamos meter por aquele caminho de cabras que o GPS nos tinha mandado da primeira vez, quando fomos tratar do cartão de visitante. Mas, mesmo depois de termos visto o parque, e a seguir o estabelecimento prisional, mesmo à nossa frente, acabamos por: "Bem, se o GPS nos diz para seguir em frente e contornar, quem sabe haja uma melhor localização pelo outro lado". Mas esta é mais uma prova que para usar um GPS é preciso espírito crítico (como quase com tudo) e não seguir cegamente as instruções que nos dão. Já o Zeca Afonso dizia que o seu comitê central era o seu cérebro.
... Estamos na mesa do refeitório, só eu e a minha colega que está de novo à minha esquerda, com o iPhone em frente. De repente recebe uma notificação. A irmã dele aceitou o pedido de amizade e, mais importante ainda, começou a escrever! Ficamos muito ansiosos! Finalmente iríamos saber o que se estava a passar. Mas ela responde que se trata de uma situação complicada e prefere explicar ao responsável, mas, nem de propósito, ele chega e de imediato telefona-lhe e coloca em alta-voz. Ela, de voz embargada, explica que esta situação deixou todos surpreendidos porque "o meu irmão é boa pessoa" e revela que ele foi detido.
Saímos do carro sem nada, eu unicamente com as chaves e ela com duas tabletes de chocolate Lindt. E lá fomos nós para a porta. Já não nos lembrávamos do número de recluso dele, e demos o primeiro nome ao que o senhor simpático que estava ao balcão, com pronúncia de padre de Viseu, que respondeu "Eu tenho aqui trezentos!" (só naquela ala), mas lá nos deu um papelinho amarelo (porque afinal eram precisas duas fotografias para o cartão de visitante) e disseram-nos: "Estejam aqui à 9:15 junto a esta porta". Obviamente que as tabletes de chocolate não puderam entrar. Naquele tempo que ainda faltava fomos para o carro. Liguei-o e fui estacioná-lo bem ao sol, porque o frio era gélido.
Trazer as Doc Martens foi, de facto, uma idiotice porque, como é lógico, fizeram apitar o detetor de metais. E lá tive que ficar descalço. E tirar o cinto e os casacos. E voltar a passar no pórtico até não dar sinal de vida.
Às 9:15 estávamos na pequena bicha de pessoas que aguardavam. Várias pessoas tinham sacos que teriam roupa dentro, sacos esses que eram todos iguais. Assim que entramos, fomos colocados num corredor, com umas linhas amarelas dessincronizadas, a fazer uma grelha de partida das corridas de Fórmula 1. Eu fui chamado primeiro e nem estava a perceber que era por mim que o polícia chamava. As chaves foram um problema porque só se pode mesmo levar a chave do carro e eu com as chaves de duas casas e da empresa quase pareço o Senhor das Chaves do Matrix! Lá tive que ir de novo ao carro deixá-las e regressar enquanto a colega ficava na mesma posição da grelha de partida.
Pi pi pi, para trás, pi pi pi, para a frente, até que posso avançar, atravessando uma porta que me leva a um novo salão onde já aguardam algumas mulheres. A minha colega passou pelo mesmo procedimento mas foi acariciada ao pormenor por uma mulher, ainda assim foi tudo muito profissional, tal como aconteceu comigo, mas a mulher polícia preveniu-a por causa dos arames do soutien que fazem acionar o pórtico do detetor de metais. O melhor será trazer um soutien de desporto ou idealmente não trazer.
Minutos depois, a minha colega junta-se a mim e mais algumas pessoas vão entrando e não é de estranhar que já sejam conhecidos até porque, além de terem presos preventivos, também há ali pessoas a cumprir penas de vários anos. É normal que, tal como já me aconteceu no hospital, também nas cadeias os familiares travem conhecimento.
A ambos, até porque me parece que ambos temos sensibilidades semelhantes, causou alguma ansiedade irmos a uma cadeia. Há sempre algum desconforto quando fazemos ou passamos por algo pela primeira vez. E é sempre bom termos o conforto de ir acompanhados. Terá sido ainda mais importante para a minha colega, porque é mulher e porque é bastante sensível. Mas, também para mim foi importante ela estar comigo.
E foi assim que, muito ansiosos pela experiência emocional forte que iríamos viver, chegamos ao parlatório para visitar um colega com quem trabalhamos durante mais de um ano.
Na minha cabeça estava tudo muito claro e na dela também. Tínhamos falado antecipadamente sobre isso, ainda por cima porque, nas últimas semanas, já desde o ano passado, tínhamos trabalhado juntos só os dois. E conversamos muito sobre as nossas coisas e é normal que tenhamos ficado ainda mais próximos.
Nós não o iríamos julgar até porque não somos juízes. Não nos interessa saber se é culpado ou inocente. Ele é nosso colega e quem tem que investigar é o Ministério Público. E quando, no fim da visita, ouvimos da boca dele "eu também estava nervoso mas foi uma visita muito alegre porque muitas vezes as pessoas vêm para cá tristes", parece-me que fizemos tudo bem e foi tudo muito genuíno.
Nas cadeias portuguesas, por mais que isto possa que possa surpreender algumas pessoas, os reclusos não usam fatiotas cor-de-laranja ou brancas e às riscas pretas, muito menos grilhões com uma grande bola de ferro. Usa-se roupa comum como qualquer pessoa na sociedade.
Estávamos à esquerda, talvez a uns seis metros da porta por onde ele iria entrar. Dentro de momentos iríamos reencontrá-lo três meses depois. Os reclusos foram entrando na sala aos poucos, ora um, ora outro e entraram vários mas ele não. Foi já dos últimos quando o vimos entrar, à procura das suas visitas e lá nos viu e dirigiu-se até nós. A ele me dirigi, cumprimentei e dei um abraço e a minha colega também o encheu de mimos.
Quando a campainha tocou, igual à daquelas das escolas, aquela hora de visita parece que passou num abrir e fechar de olhos. Não houve silêncios constrangedores - também é verdade que comigo isso é complicado de acontecer! - e os três fomos falando. Fomos-lhe perguntando sobre como é a vida na cadeia, as rotinas, como é que se está a sentir (está preso preventivo a aguardar julgamento e ainda não foi condenado por nada) e não fizemos qualquer inquérito em saber detalhes. Claro que ele se terá sentido na obrigação de se justificar mas não tinha que o fazer. Nós somos colegas, não somos amigos, mas como digo muitas vezes a esta nova colega, é com os colegas de trabalho que passamos a maior parte do nosso tempo, não é com o namorado, esposa ou amigas.
Hoje em dia, uma pessoa detida ou condenada por algum crime perde a liberdade. Já não há trabalhos forçados nem o desterro. E há quem desvalorize mas, na minha modesta opinião, a liberdade é talvez das coisas mais importantes que temos na vida. Mas um recluso não perde só a liberdade. Como ele bem lembrou, perde-se também a privacidade.
Ainda que tenha televisão e Playstation 2, que vos vai parecer uma enorme mordomia, na sua cela estão seis pessoas, e, se não me engano, três beliches. E tem sempre que lidar com aquelas pessoas, quer goste delas ou não. Ainda bem que, ao que parece, está tudo tranquilo. Mas perde-se a privacidade em tudo, mesmo nas necessidades mais básicas, curiosamente as que mais constrangimento podem causar, não houvesse, por exemplo, casais que nem o quarto de banho partilham.
Não há reinserção nenhuma. Há de tudo lá dentro e a cadeia não será uma escola de vida. Os seguranças, segundo ele, é meio-meio. Uns são tranquilos e afáveis, outro nem por isso, e compreende-se, há que impor respeito e disciplina porque haverá por lá muita gente que não é propriamente um menino de coro. Apesar dos controlos, há de tudo lá dentro. Sim, smartphones e droga. E também há "brigas" e "não se confia em ninguém".
Ele pareceu-me bem, quer fisicamente quer mentalmente, e, apesar das queixas da comida e dos horários, pudera, jantar às quatro e meia da tarde não me parece muito agradável, a verdade é que nestes três meses já engordou oito quilos e ainda bem, porque todos achávamos que estava muito magro. E lá dentro há comida que se pode comprar para complementar a refeição que é dada e também contou os esquemas improvisados como cozinham mesmo dentro da própria cela.
Em três meses leu doze livros. Muita psicologia, muito Freud. Está na média de Lula da Silva, que naquele ano do golpe em que o meteram na cadeia ano leu cerca de cinquenta livros. O mais curioso nesta questão dos livros é que, quando foi detido, tinha na mochila a bíblia que eu, ateu, lhe tinha arranjado, porque ele mesmo me tinha pedido quando fui a um armazém e comprei uma data de livros, todos por um euro cada um. Explicou também que ter sido detido é entrar no mesmo processo que se passa no luto. E comprou uma caneta e começou a escrever. Se ler, além de ocupar o tempo, é ter a possibilidade de viajar e sair do local onde está, escrever pode ser terapêutico.
Apesar de toda esta situação, que não é nada agradável, saímos de lá muito bem conosco mesmos e ambos passamos o dia a refletir naquilo que vivemos. É uma coisa que não se esquece. E se há algo que passo a vida a repetir, é sobre o excelente exercício que é, sabermo-nos colocar no lugar dos outros.
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