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domingo, 29 de janeiro de 2023

O Principal Inimigo da Democracia é o Centro Comercial

Uma das minhas frases preferidas de Aldous Huxley, que até ostento aqui no blogue, e de quem li, por exemplo, "Admirável Mundo Novo", "Contraponto" ou "Também o Cisne Morre" é:
 
"A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento , os escravos terão amor à sua escravidão."

Ao ler a seguinte crónica no El País sobre como as pessoas estão a abdicar da democracia e da sua liberdade, porque estão a ser compradas pelo dinheiro de imediato lembrei-me de Huxley.
 



"No Qatar ganhas poder de compra mas renuncias a ser um cidadão. Vives à grande. Vi um colega comprar um Hummer. Vi espanholas de discurso progressista escravizar as suas criadas sudanesas. Para meu espanto o meu marido escocês disse "democracy is overrated"...

Cheguei a Doha em 2013. Podemos dizer, para simplificar, que estava farta de encadear contratos lixo na Europa e aceitei um emprego de professora bem remunerado num lugar assustador. Da janela do meu escritório na universidade pude ver um deserto sem dunas que mais parecia um deserto sem fim sob uma nuvem de poeira.

Morar lá é complicado com pouca empatia que se tem.

Um: deves-te proteger contra o sistema de castas; trabalhas para os cataris, lidas com pessoas em circunstâncias semelhantes às tuas - estrangeiros com empregos qualificados - e és servido por homens e mulheres pobres.

Dois: da janela do carro, todos os dias vês centenas de trabalhadores, escravos modernos, no momento em que são transferidos de autocarro dos locais onde dormem para os prédios - estádios, museus, hotéis - que eles constroem, ou vice-versa .

Três: deves acostumar-te a ter alguns alunos cujos rostos não vais poder ver.

Quatro: planeja sempre o medo de te meteres em encrencas sem querer.

Cinco: todas essas coisas que dizem sobre o Catar - que financia o Islão radical, principalmente - são difíceis de aceitar como pertencentes ao lugar que fazes a tua casa, então tenta não pensar nelas. A lista poderia continuar.

Como é curioso o coração humano: com tudo, acabas desenvolvendo um certo vínculo sentimental com aquele deserto onde, desde o início, só foste ganhar dinheiro.

Na Europa, a onda de indignação contra o Catar – alimentada pelo recente Campeonato do Mundo – tem sido unânime e ninguém pode negar que é bem fundamentada. É uma pena que os protestos vão cair em saco roto. Alguém pensa que o emirado se preocupa com as mensagens estridentes nas redes sociais, as pulseiras que têm a validade de um suspiro?

Nós, ocidentais, imaginamos os cataris como um povo de ex-camaleões fanáticos que tiveram a sorte de encontrar gás sob a restinga onde estavam acampados. Nós os pintamos como uma tribo de novos-ricos que gostam de bugigangas sofisticadas e luzes de LED. De acordo com o que Edward Said nos ensinou a pensar no Orientalismo, essa representação surge da nossa ansiedade pela perda de status, do desejo de salvar nossos móveis num planeta cujo centro está irremediavelmente deslocado para o Oriente.

Acredita, há algo comovente no Qatar. Uma ânsia muito juvenil de conquistar o mundo - de sediar as melhores universidades, os melhores museus, as melhores competições esportivas.

Quando me mudei para Doha, o slogan Qatar merece o melhor - “O Qatar merece o melhor” - preenchia os enormes outdoors atrás dos quais estádios e novos arranha-céus estavam sendo construídos. A morte de muitos trabalhadores torna pavoroso um país que, ao contrário de outros, soube fugir ao controlo colonial e preservar o seu património energético. Há boas razões para atender a esse país empoeirado e incompleto que está parcialmente moldando o século XXI, não apenas de seu fundo de investimento e conhecimento de negócios. Vamos enfrentá-lo o mais rápido possível: o Qatar tem um poder que supera os melindres europeus.

Coloque-te na seguinte situação. Imagina que o vento da vida o levou-te a trabalhar em uma universidade do Qatar, onde está prestes a acontecer um congresso internacional de tradução, e que cerca de cinquenta tradutores e romancistas de vários países escrevem uma carta aberta pedindo o boicote ao evento. A razão? A prisão de um poeta - Muhammad AlAjami -, condenado a prisão perpétua por ter recitado um poema dissidente. Pergunta: o que fazes? Saúdam a fábrica, arrancam a roupa e voltam para a Espanha, o país das oportunidades zero? Ou eles ficam quietos como um homem morto para não se meter em problemas?

Lembro-me da reunião do corpo docente em que discutimos a questão do boicote e na qual, admito, fiquei em silêncio. Parece que ainda ouço o Dr. Jian, um chinês, sussurrando em meu ouvido: “Ah, tem algum poeta na cadeia?” enquanto levanta delicadamente um único dedo. Aquele seu espanto, que ainda não sei interpretar, foi o mais perto que cheguei do pântano onde às vezes as culturas se cruzam.

Viver em um lugar como o Qatar constitui o expatriado. Quando Peter Sloterdijk fala sobre como o habitar gera uma “práxis de fidelidade ao lugar”, acredito que a ideia crucial está na palavra práxis. Viver é fazer as coisas à maneira do novo contexto, razão pela qual quem emigra vê o seu quotidiano transformado pelo local de destino.

É incrível o que nós, ocidentais, nos tornamos quando começamos a ganhar um salário em rials. O regime do Qatar é habitável porque dá dinheiro e oferece lugares brilhantes para gastá-lo. O shopping é muito divertido! Ele é o verdadeiro rival da democracia.

No Qatar ganhas muito dinheiro mas desistes de ser um cidadão. Vives à grande. Vi um colega do departamento comprar um Hummer; Vi mulheres espanholas de discurso progressista escravizarem suas criadas sudanesas. Para meu horror, meu companheiro escocês Connor, que criava suas filhas lá, disse um dia: “democracy is overrated” (a democracia é sobrevalorizada)

O desafio que enfrentamos no Qatar não é apenas que os direitos dos homossexuais e das mulheres não sejam respeitados lá. Muitos cataris removem sua abaya preta assim que embarcam em um avião para Londres. O difícil será que a democracia seja globalmente um objetivo atrativo.

Divertindo-se até a morte, Neil Postman alertou sobre isso, fazendo sua própria profecia de Aldous Huxley: "As democracias ocidentais cantarão e sonharão até o esquecimento". É doloroso, mas vamos cair a cereja o mais rápido possível: o planeta Terra está lotado de seres humanos que não são exigentes com a ideia de se estabelecerem num regime autocrático que promete segurança e riqueza.

Na entrada do hospital Sidra, na Cidade da Educação, bem perto de onde morei e ensinei, há um grupo de grandes esculturas de Damien Hirst. É intitulado The Miraculous Journey e representa o desenvolvimento de uma vida humana, desde a concepção até o nascimento. A sua instalação foi controversa. Alguns cataris consideravam-na imoral, por isso o complexo passava temporadas coberto por lonas pretas, acostumando aos poucos os mais ortodoxos a vê-lo sem levar as mãos à cabeça.

Ultimamente, tenho pensado muito naquele trabalho de Hirst e na dança de mostrá-lo e escondê-lo. Vejo nela um estranho desfolhamento da margarida, um chocante cabo de guerra entre a democracia e a tirania que resta saber por qual lado opta.

Raquel Taranilla / El País

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Porque é que os Ricos Compram Televisões e Jornais?

"Os demagogos não são os únicos nem mesmo os mais eficientes exploradores da sugestionabilidade humana.  Os proprietários dos jornais levaram a arte dos cavalheiros de indústria a um grau ainda mais alto. O alargamento da educação elementar foi acompanhado por um grande aumento de influência da imprensa. Quem lê pode correr - na mesma direção em que corre o seu jornal. Isto é um facto do qual os ricos não foram lentos em tirar vantagem. Praticamente falando, toda a imprensa inglesa está agora nas mãos de quatro ou cinco homens ricos. Oligarcas plutocráticos, aspiram a governar, sob a capa das instituições democráticas, impessoalmente e sem responsabilidade. Explorar a democracia, viram eles, é mais fácil e mais rendoso do que opor-se a ela. Deixem que os muitos votem mas conforme lhe disserem os poucos opulentos que são os donos dos jornais. Os muitos obedecem - geralmente, mas nem sempre. As eleições podem ser ganhas, como foi demonstrado pelos Liberais em 1860* e pelo Partido Trabalhista em 1923, em oposição direta com uma imprensa quase unanimemente hostil. Os proprietários dos jornais não governarão indisputavelmente enquanto não descobrirem em que circunstâncias os homens concordam, e em que outras correspondem al alvitre por contradição deliberada. Eles já se aperceberam (o que os mestres-escolas já descobriram há muito) de que a sugestão indireta está menos sujeita a levantar contradição do que a direta. As notícias deturpadas convencem muito mais efectivamente do que muitos artigos de fundo dogmáticos. Mas a ciência do cavalheirismo de indústria jornalístico está ainda na sua infância. Chegará sem dúvida o tempo em que os métodos de propaganda dos proprietários de jornais contemporâneos parecerão barbaramente verdes e ineptos. 

*no livro está escrito 1960, mas como este foi publicado em 1927 isso é impossível pelo que deduzo que seja 1860

Sobre a Democracia e Outros Estudos / Aldous Huxley (1927)


domingo, 24 de maio de 2020

Ninguém Pode Compreender Aquilo Que Não Sente

Acendeu um cigarro e continuou com o livro. Bateram à porta. Philip ergueu-se e foi abrir: era Elinor.
- Que tarde! - exclamou ela, atirando-se para uma cadeira. 
- Então que novidades me contas de Marjorie?
- Novidades? Nada que se pareça com isso... - disse Elinor num suspiro, enquanto tirava o chapéu. -A pobre criatura está insípida como sempre. Mas lamento-o sinceramente. 
- Que lhe aconselhaste?
- Nada. Que queres que ela faça? E Walter? - perguntou Elinor por sua vez.  - Achaste ocasião para fazer de papá severo?
- De papá semi-severo, digamos... Consegui que ele se fosse instalar em Chamford com Marjorie.
- Conseguiste? Foi um verdadeiro triunfo!
- Não tanto como julgas. Não tive inimigo contra quem combater. Lucy parte para Paris no próximo sábado .
- Esperemos que ela fique por lá... Pobre Walter!
- Sim, pobre Walter... Mas eu tenho que te falar dos diabos-marinhos.
Falou-lhe. 
- Um dia destes - concluiu - preciso escrever um Bestiário moderno. Que lições de moral! Mas dize-me, como achaste Everard? Tinha esquecido completamente que o tinhas visto.


- Não podias deixar de esquecer... - retorquiu ela desdenhosamente. 
- Achas? Não sei porquê...
- Não, não sabes. 
- Estou esmagado sob o peso do teu desdém - disse Philip com uma humildade fingida.
Houve um silêncio.
- Everard está apaixonado por mim - disse por fim Elinor, sem olhar para o marido, e com uma voz perfeitamente calma e fria. 
- Mas isso é novidade? Julguei que fosse um velho admirador. 
- Mas é a sério - prosseguiu Elinor- Muito a sério. - Ela esperava ansiosamente os comentários do marido. Estes vieram, depois de um curto silêncio. 
- Isso já deve ser menos divertido...
No fim de contas Philip não era um tolo. Ou talvez compreendesse muito bem e estivesse apenas a fingir o comentário; talvez estivesse mesmo secretamente contente com os sentimentos de Everard. Ou era então simplesmente a indiferença que o tornava cego? Ninguém pode compreender aquilo que não sente. Philip não podia compreendê-la, porque não sentia as coisas como ela. Estava confiante na crença de que as outras pessoas eram tão razoavelmente mornas como ele. 
- Mas gosto dele - afirmou Elinor em voz alta, fazendo uma derradeira tentativa desesperada para arrancar do marido pelo menos um simulacro de demonstração de amor. Se ao menos ele se mostrasse ciumento, ou triste, ou zangado, como ela seria feliz, como lhe ficaria reconhecida por isso!
- Gosto muito de Webley - continuou Elinor. - Há alguma coisa de muito atraente. Aquele seu carácter apaixonado, aquela violência...
Philip pôs-se a rir:
Exatamente o irresistível homem das cavernas, hem?
Elinor ergueu-se com um pequeno suspiro, pegou no chapéu e na bolsa e, inclinando-se para o marido, beijou-lhe a testa, como para lhe dizer adeus; depois afastou.-se e, sempre sem dizer palavra, subiu para o quarto.
Philip tornou a abrir o livro que tinha abandonado. Leu;
"Benellia viridis é um verme verde, não muito raro no Mediterrâneo. A fêmea tem o corpo da grossura aproximada de uma ameixa, munida de um apêndice proboscidinano em filamento, bífido na extremidade, fortemente contráctil, e que pode atingir os dois pés de comprimento. Mas o macho é microscópico, e vive no que pode ser denominado o conduto reprodutor (nephridium modificado) da fêmea. Não tem boca a alimenta-se unicamente do que absorve parasitariamente através das suas superfícies ciliadas..."
Mais uma vez Philip largou o livro. Ficou a pensar sobre se devia ou não subir e falar a Elinor. Estava convencido de que ela nunca chegaria a amar realmente Everard. Mas talvez ele, Philip, não devesse ter a coisa como muito certa. A mulher parecera-lhe um pouco transtornada. Talvez esperasse que ela lhe falasse, que lhe dissesse do seu amor e de quanto ficaria infeliz - e furioso - se ela deixasse de o querer. Mas eram estas precisamente as coisas mais impossíveis de dizer. Finalmente decidiu não subir. Ia esperar para ver... transferia para outra ocasião. Continuou a leitura sobre a Bonellia viridis.

Capítulo XXI / Contraponto (Point Counter Point) - Aldous Huxley (1928)

domingo, 15 de abril de 2018

Prefiro Ser Eu Mesmo

"Estanho, estranho, muito estranho", tal era a opinião de Lenina acerca de Bernard Marx. De tal maneira estranho que durante as semanas que se sucederam ela perguntou a si mesma, mais de uma vez, se não faria melhor em mudar a ideia das suas férias no Novo México e ir antes para o Polo Norte com Benito Hoover. (...)

A ideia de voar de novo para oeste era deveras sedutora. E, depois, passariam pelo menos três dias, dos sete da viagem, na Reserva de Selvagens. Em todo o centro não havia mais de meia dúzia de pessoas que já tivessem penetrado no interior de uma Reserva de Selvagens. Na sua qualidade de psicólogo Alfa-Mais, Bernard era um dos raros homens, entre os seus conhecimentos, que tinham direito a uma autorização. Para Lenina a ocasião era única. E, no entanto, as bizarrias de Bernard eram também de tal maneira únicas que hesitava em aproveitá-la e por mais de uma vez tinha pensado em arriscar uma outra ida ao Pólo com esse bravo e divertido Benito. Pelo menos Benito era normal, ao passo que Bernard...

"Foi o álcool no seu pseudo-sangue, tal era a explicação que Fanny dava de cada uma dessas excentricidades. Mas Henry, com quem, numa noite em que estavam deitados juntos, Lenina tinha falado, não sem uma certa inquietação do seu novo amante, Henry tinha comparado o pobre Bernard a um rinoceronte. 
- Não se pode ensinar um rinoceronte a fazer habilidades - tinha ele explicado, no seu estilo breve e vigoroso. - Há indivíduos que são quase rinocerontes; não reagem convenientemente ao condicionamento. Pobres diabos! Bernard é um deles. Felizmente para ele, é bastante competente na sua especialidade. Sem isso, o Diretor já o teria posto na rua. No entanto - acrescentou num tom consolador -, creio que é completamente inofensivo.

Completamente inofensivo, talvez. Mas igualmente muito inquietante. Em primeiro lugar, essa mania de fazer as coisas na intimidade. O que equivaleria, na prática, a nada fazer. Que se pode fazer na intimidade? (À parte bem entendido, ir para a cama; mas não se pode fazer isso continuadamente.) Sim, que se pode fazer? Muito poucas coisas. (...)

- Mas então para que serve o tempo? - perguntou Lenina, admirada.
Aparentemente, para dar passeios na Região dos Lagos, pois era isso que ele propunha. Aterrar no cume do Skeddaw e fazer uma caminhada de duas horas entre as urzes.
- Sozinho consigo, Lenina.
- Mas Bernard, nós ficaremos sozinhos toda a noite.
Bernard corou e desviou o olhar.
- Eu queria dizer...sós para conversar murmurou.
Para conversar? Mas a respeito de quê? - Andar e conversar parecia-lhe uma estranha maneira de passar a tarde.
Por fim ela persuadiu-o, embora contra a sua vontade, a voarem até Amesterdão para verem a final do Campeonato Feminino de luta (pesos-pesados).
- Entre uma multidão - resmungou -, como e costume.
Conservou-se obstinadamente amuado toda a tarde; recusou-se a falar aos amigos de Lenina (que encontraram às dúzias no bar onde se bebiam gelados de soma nos intervalos das lutas), e, apesar do seu miserável estado de espírito, recusou-se terminantemente a tomar a dose de meio grama de sundae de framboesas que ela insistia que tomasse.

- Prefiro ser eu mesmo - disse - eu mesmo e desagradável.
E não qualquer outro, por mais alegre que seja.


Admirável Mundo Novo / Aldous Huxley / 1932

domingo, 3 de julho de 2016

Todo dinheiro é assaz imundo

- E quanto ao dinheiro? continuou Pete. - Acha que eu deva recebê-lo, sabendo de onde vem e a quem pertence?

- Todo o dinheiro é assaz imundo - disse Mister Propter - e não me consta que o do pobre Jo seja sensivelmente mais imundo que o de outro qualquer. Talvez você o ache, mas isso porque vê, pela primeira vez, o dinheiro na sua fonte - fonte pessoal e humana. Você é como uma dessas crianças acostumadas a receber o leite em garrafas esterilizadas, de um camião branco e reluzente. Quando vão ao campo vêem ser extraído de um animal enorme, gordo, malcheiroso, ficam horripiladas, enojadas. O mesmo se dá com o dinheiro. Você está acostumado a recebê-lo detrás de uma grade de bronze, ao balcão de um Banco monumental todo de mármore. Agora veio para o campo; mora no estábulo com o animal que segrega o dinheiro que recebe. E o processo não lhe parece primar pela delicadeza ou pela higiene. Mas, mesmo enquanto você não sabia, esse processo realizava-se. Se não estivesse a trabalhar para Jo Stoyle, provavelmente trabalharia para alguma universidade ou colégio. Mas, de onde sai o dinheiro das universidade e colégios? Dos ricos. Em outras palavras: de gente como Jo Stoyle. De modo que seria a mesma imundície servida em recipientes esterilizados e distribuída por cavalheiros de beca e capelo. 
- Então o senhor acha bem que eu continue a ser o que sou? 
- Sim - respondeu Mister Propter - entendendo-se por isto que não é escandalosamente pior que qualquer outra coisa. 

"Também o cisne morre" / Aldous Huxley (1939)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Pobres que se tornam Ricos e que odeiam Pobres

Mister Stoyle era um rico que já fora pobre. Nos seis anos decorridos entre o dia que fugira de casa do pai e da avó, em Nashville, e o dia em que fora adotado pela ovelha ranhosa da família, o tio Tom, da Califórnia, Jo Stoyle aprendera - ao que suponha - tudo o que se podia aprender sobre a pobreza . Ficara-lhe desses anos um ódio inveterado às circunstâncias da pobreza, e, ao mesmo tempo, um enextirpável desprezo por todos os que, por demasiadamente estúpidos, fracos ou sem sorte, não tinham logrado sair do inferno em que caíram ou nasceram. Os pobres eram-lhe odiosos, não apenas por constituírem uma ameaça potencial à sua posição na sociedade, não apenas por os seus infortúnios reclamarem uma simpatia que não estava disposto a dar, mas também por lhe lembrarem o que sofrera no passado e, ao mesmo tempo, porque o facto de ainda serem pobres era prova suficiente, a um tempo, da sua desprezibilidade  e da superioridade dele, Jo. E, já que sofrera o que eles sofriam agora, era apenas justo que continuassem a sofrer o que ele tinha sofrido. Além do mais, visto como a continuação da pobreza, provava a desprezibilidade dessa gente, era justo que ele, agora rico, os tratasse como às criaturas desprezíveis que mostravam ser. Era esta a lógica das emoções de Mister Stoyte. E vinha agora Bill Propter censurá-la, dizendo ao agente que não deviam aproveitar-se da superabundância do trabalho para para baixar os salários: que, pelo contrário, deviam aumentá-los - imaginem! - numa época em que os vagabundos pululavam no Estado como uma praga de gafanhotos... E não era tudo: que deviam construir-lhes acomodações, cabanas como as que ele próprio - aquele idiota! - lhes construíra: cabanas de dois quartos, que custavam seiscentos e setecentos dólares, para gente dessa laia, as suas mulheres e aquelas crianças nauseabundas, tão sórdidas que ele nem nos hospital as receberia - a menos que estivessem realmente a morrer de apendicite ou coisa que o valha, pois, nesse caso, naturalmente, não podia rejeitá-las. Mas fosse como fosse, onde diabo tinha Bill Propter a cabeça? E esta não era a primeira vez que ele tentava intrometer-se.  

Também o cisne morre / Aldous Huxley / 1939


sábado, 7 de novembro de 2015

Admirável Mundo Novo - Pré-Condicionamento

"...estão todos vestidos de verde", disse uma voz doce, mas clara, começando no meio de uma frase, "e as crianças Deltas estão vestidas de caqui. Oh não, não quero brincar com as crianças Deltas. E os Epsilões são ainda piores. São tão estúpidos que nem sabem ler ou escrever. E, além disso, estão vestidos de negro, que é uma cor ignóbil. Como estou contente por ser uma Beta."
Houve uma pausa. Depois a voz recomeçou:
"As crianças Alfas estão vestidas de cinzento. Elas trabalham muito mais que nós, porque são formidavelmente inteligentes. De facto, estou muito contente por ser um Beta, pois não trabalho tanto. E, depois, somos muito superiores aos Gamas e aos Deltas. Os Gamas são patetas. Estão todos vestidos de verde e as crianças Deltas estão vestidas de caqui. Oh, não, não quero brincar com as crianças Deltas. E os Epsilõe são ainda piores. São tão estúpidos que nem sabem..."
O Diretor pôs o interruptor na primitiva posição. A voz calou-se. Apenas o longínquo fantasma continuou a murmurar debaixo dos oitenta travesseiros. 
- Ouvirão isto repetido ainda quarenta ou cinquenta vezes antes de acordar; depois novamente na quinta-feira: e igualmente no sábado. Cento e vinte vezes, três vezes por semana, durante trinta meses. Em seguida passarão a uma lição mais avançada.





- Rosas e descargas elétricas, o caqui dos Deltas e um cheiro a assa-fétida, ligados indissoluvelmente antes que a criança saiba falar. Mas o condicionamento que não é acompanhado por palavras é grosseiro e inteiriço. É incapaz de fazer  conhecer as distinções mais delicadas, de inculcar as mais complexas formas de conduta. Para isso são necessárias palavras, mas sem nexo. Enfim, a hipnopedia, a maior força moralizadora e socializadora de de todos os tempos. 


Os estudantes garatujaram isto nos seus cadernos. O conhecimento colhido diretamente na sua origem.
O Diretor carregou novamente no interruptor.
"...são formidavelmente inteligentes", dizia a voz doce, insinuante, infatigável. "De facto, estou muito contente por ser um Beta, pois..."
Não exatamente como gotas de água, se bem que a água seja capaz de, lentamente, perfurar o mais duro granito, antes como gotas de lacre líquido, gotas que aderem, se incrustam, se incorporam a tudo em que caem, até que, finalmente, a rocha nada mais seja que uma única massa escarlate. 
- Até que o espírito da criança seja essas coisas sugeridas e que a coma dessas coisas sugeridas seja o espírito da criança. E não apenas o espírito da criança, mas igualmente o espírito do adulto, e para toda a vida. O espírito que julga, deseja e decide, constituído por essas coisas sugeridas. Mas todas essas coisas sugeridas são aquelas que nós sugerimos , nós!
- Com entusiasmo, o Diretor quase gritou. - Que o Estado sugere. Deu um murro sobre a mesa mais próxima . - Disto resulta por consequência...
Um ruído fê-lo voltar-se.
- Oh Ford! disse, noutro tom. - Então não acordei as crianças!?

Capítulo Segundo / Admirável Mundo Novo / Aldous Huxley / 1932

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Já não sei bem ao certo. Mas acho que comecei a ler este livro teria entre 15 e 17 anos... por aí. E sei que não o cheguei a acabar. Aconteceu-me o que acontece a muita boa gente, simpática como eu, que decide emprestar as suas coisas, mas que depois infelizmente estas não fazem o caminho de volta. E como eu sempre detestei emprestar coisas que depois não voltavam. Sei que fiquei sem alguns livros e sem alguns discos além de outras coisas mais, à custa de não querer dizer que não, e isto porque as pessoas não sabem o que significa a palavra emprestar.  
Mas sei muito bem que gostei de livro pois não mais o esqueci, e quase tinha prometido a mim mesmo, que um dia ainda o haveria de o ter e de ler, desta vez até ao fim. E foi por isso, por ter gostado do livro, que voltei recentemente ao autor, e peguei no Contraponto, e entretanto já li outras coisas, e até devo receber por estes dias outro livro dele. Provavelmente voltarei a citar excertos deste livro, por certo para falar da personagem "multi-resistente" da obra, que se questiona acerca da sociedade onde vive, sociedade esta do futuro, imaginada por Huxley, e que tantas semelhanças tem com a atual, em que vivemos neste momento. 

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Do instinto da aquisição

O instinto de aquisição comporta mais perversões, na minha opinião, do que o instinto sexual. Pelo menos as pessoas parecem-me mais estranhas em questões de dinheiro do que mesmo em questões de amor. Que parcimónias espantosas  não se encontram constantemente, sobretudo nos ricos! Que extravagâncias fantásticas, também. Muitas vezes as duas qualidades, ao mesmo tempo e na mesma pessoa. E, depois, os entesouradores e enterradores, as pessoas que vivem inteira e quase incessantemente preocupadas com o dinheiro! Ninguém se preocupa com o sexo assim dessa maneira incessante - sem dúvida porque a satisfação fisiológica é possível em assuntos sexuais, ao passo que não existe quando se trata de dinheiro. Quando o corpo está saciado o espírito cessa de pensar em alimentos ou em mulheres. Mas o apetite do dinheiro, a necessidade de o possuir, é de ordem mais ou menos exclusivamente mental. Não há nenhuma satisfação física possível. É o que explicará os excessos e as perversões do instinto de aquisição. O nosso corpo obriga, por assim dizer, o instinto sexual a conduzir-se normalmente. É preciso que as perversões sejam muito violentas para que possam dominar as tendências fisiológicas normais. Mas no que diz respeito ao instinto de aquisição, não há no corpo regulado, nem massa de carne sólida em demasia para ser empurrada para fora dos trilhos do hábito fisiológico. A menor tendência para a perversão torna-se imediatamente manifesta. Mas talvez a palavra "perversão" não tenha sentido neste contexto. Porque a perversão implica a existência de uma norma que lhe sirva de ponto de partida. Qual é a norma do instinto de aquisição? Pode-se entrever vagamente algum meio honesto; mas estará aí, de facto, a verdadeira norma estatística? Quanto a mim imagino que sou antes um subaquisitivo; menos interessado que o comum das gentes do dinheiro e nas posses em geral. Illidge diria que isto se deve inteiramente ao facto de eu ter sido educado numa atmosfera de largas facilidades pecuniárias. Isso pode ser verdade em parte. Mas não inteiramente, na minha opinião. Consideremos o grande número de pessoas que nasceram ricas e que vivem unicamente preocupadas com ganhar dinheiro. Não, a minha "subaquisitividade" é hereditária e também adquirida. Seja como for, não tenho muito interesse pela posse, e não sinto senão pouca simpatia pelos que se interessam por ela; não os compreendo também. Nenhuma personagem cuja dominante seja o instinto de adquirir figura em algum dos meus romances... É um defeito; porque os aquisitivos são manifestamente muito comuns na vida real. Mas é duvidoso que eu possa tornar uma tal personagem interessante - pois que eu mesmo não me interesso pela paixão aquisitiva. Balzac podia; as circunstâncias e a hereditariedade tinham-no feito apaixonadamente interessado pro dinheiro. Mas quando achamos um assunto aborrecido, a nossa tendência é tornarmo-nos também aborrecidos ao tratarmos dele...

Contraponto / Aldous Huxley




- Dinheiro! O dinheiro é uma espécie de instinto, uma das caraterísticas da natureza humana é fazer dinheiro. Não tem nada a ver com o que uma pessoa faça, nem é um jogo. É uma espécie de acidente permanente da nossa própria natureza. Quando se começa, faz-se dinheiro e não se pára mais, até um determinado ponto, é claro. 
- Mas é preciso começar - respondeu Clifford. 
- Oh absolutamente, é preciso entrar na roda, quando se está de fora não se consegue nada. Tem de se lutar para entrar, e uma vez que o tenha conseguido, é inevitável. 
- Mas poderia ter ganho dinheiro sem as peças?
- Oh provavelmente não! Posso ser bom ou mau, mas sou escritor teatral, e não podia ser outra coisa. Disso não tenho a menor dúvida. 

O Amante de Lady Chatterley / D.H. Lawrence 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Da novidade das dores e dos Prazeres




- Ninguém pode recordar a dor - disse ele, em voz alta.
- Eu posso.
- Não, não podes. Podes apenas recordar a ocasião dela, os seus acessórios.
A ocasião fora em casa da parteira na rue de la Tombe-Issoire; os acessórios, a sujidade e a humilhação. O rosto dela carregou-se ao ouvir-lhe as palavras.
- Nunca poderás recordar a sua qualidade efetiva - continuou ele. - Como não poderás recordar-te da qualidade de um prazer físico. Por exemplo, hoje, há meia hora... não podes lembrar-te. Não há uma recriação do acontecimento. E ainda bem. - E sorria agora. - Imagina se pudéssemos recordar exatamente os perfumes e os beijos! Como seria fatigante a realidade deles! E que mulher dotada de memória teria alguma vez mais do que um filho?
Helen mexeu-se, inquieta.
- Não posso imaginar como alguma mulher os possa ter - disse, numa voz débil.
- Assim, prosseguiu ele - as dores e os prazeres são novos de cada vez que os experimentamos. Inteiramente novos. Cada gardénia que alguma vez cheiramos. E cada parto...
- Lá estás tu outra vez a falar como um tolo - interrompeu ela, irritada. - A confundir as coisas.
- Pensei que as estava esclarecendo - protestou ele. - Mas, afinal, de que se trata?
- Trata-se de mim, de ti da vida real, da felicidade. E tu a tagarelar para aí tolices, como um parvo!
- E tu? - perguntou ele. - Serás porventura muito experiente da vida real? Um perito de felicidade?

Sem olhos em Gaza / Aldous Huxley /1936

sábado, 22 de agosto de 2015

Post Coitum Triste

ou Da intelectualidade e da dificuldade do saber viver

Ah! Que dificuldades há em transpor esse abismo! Percebo agora que o verdadeiro encanto da vida intelectual - da vida consagrada à erudição, à pesquisa científica, à filosofia, à estética, à crítica - é a sua facilidade. É a substituição de simples esquemas intelectuais por complicações da realidade; da morte calma e formal pelos movimentos desconcertantes da vida. É incomparavelmente mais fácil saber muitas coisa, digamos, sobre a história da arte e ter ideais sobre metafísica e sociologia do que conhecer pessoalmente, intuitivamente, os seus semelhantes e ter relações agradáveis com os seus amigos e as suas amantes, a sua mulher e os seus filhos. Viver é muito mais difícil que o sânscrito, que a química ou que a economia política. 




A vida intelectual é um brinquedo de criança; eis porque os intelectuais têm uma tendência para voltar à infância, para cair em seguida na imbecilidade e, finalmente, como demonstra com clareza a história política destes últimos século, para se tornarem homicidas loucos e selvagens. As funções reprimidas não morrem. atrofiam-se, degeneram, revertem ao estado primitivo. Mas por ora é muito mais fácil ser criança, louco ou besta, do que homem adulto harmonioso. É por isto que, (entre outras razões) a educação superior é exigida da maneira que se vê. A corrida para os livros e para as universidades lembra a corrida para as tabernas. As pessoas necessitam de afogar a consciência que têm das dificuldades que há em viver decentemente neste mundo contemporâneo tão grotesco: têm necessidade de esquecer a sua própria e deplorável insuficiência como peritos na arte de viver. Uns afogam as suas tristezas no álcool, mas outros, ainda mais numerosos, afogam-nas nos livros, e no diletantismo artístico: uns procuram achar esquecimento de si mesmos no sexo, na dança, no cinema, na radiofonia; outros nas conferências e nas ocupações científicas. Os livros e as conferências são melhores para afogar as mágoas que a bebida e o sexo; não deixam dor de cabeça nem essa sensação de post coitum triste.

Capítulo XXVI / Contraponto / Aldous Huxley / 1928

quinta-feira, 23 de julho de 2015

O que ando a ler VI

- Pensa bem - avisara ele antes do casamento. - Vamos ser pobres. Verdadeiramente pobres: não pobres com mil libras por ano como os teus amigos pobres. Não haverá criados. Será preciso que vás para a cozinha, que remendes roupa, que cuides da casa.
Mary limitou-se a rir.
- Pois quem há-de achar isso desagradável serás tu - respondeu ela. - Pelo menos enquanto eu não aprender a cozinhar...
Mary nem sequer sabia fritar um ovo quando casou com Mark Rampion.
Coisa bastante estranha, aquele entusiasmo infantil à maneira de Marie-Antoniette para fazer as coisas. - para cozinhar num fogão de verdade, usando de uma verdadeira máquina de varrer tapetes, de uma máquina de costura autêntica - sobreviveu aos primeiros meses de novidade e excitação. Mary continuou a divertir-se.
- Eu nunca poderia voltar a ser uma perfeita dama da sociedade - costumava ela dizer. - Isso havia de me matar de aborrecimento. Deus lá sabe como pode ser aborrecido e exasperante dirigir uma casa, fazer os trabalhos domésticos, cuidar dos filhos. Mas viver completamente sem contacto com todos os factos ordinários da existência, viver num planeta diferente do mundo quotidiano, da realidade física, é muito pior.
Rampion era da mesma opinião. Recusava-se a transformar a arte e o pensamento em desculpas para viver uma vida de abstração. Nos intervalos entre os seus trabalhos de pintor e escritor, ajudava Mary no trabalho doméstico.
- Não se pode esperar que brotem flores de um belo vácuo limpo. - Era este o seu argumento. - Elas precisam de húmus, argila e estrume. Assim é a arte.




Para Rampion havia também uma espécie de obrigação moral de viver a vida dos pobres. Mesmo quando já estava a ter um rendimento perfeitamente razoável, o casal mantinha apenas uma criada e costumava fazer sozinho grande parte do trabalho doméstico. Ela para ele um caso de noblesse oblige - ou antes, de roture oblige. Viver como rico, numa confortável abstração dos cuidados materiais, seria - sentia ele - uma espécie de traição à sua classe, à sua própria gente. Se ele se deixasse ficar sentado na sua cadeira e pagasse a criados para fazer o serviço, estaria de certo modo a insultar a memória de sua mãe, estaria a dizer-lhe postumamente que ele, Mark Rampion, era bom demais para levar a vida que ela levava.
Havia ocasiões em que Mark odiava aquela obrigação moral, porque sentia que ela o compelia a fazer coisas tolas e ridículas; e, odiando-a, tentava revoltar-se contra ela. Como tinha ficado absurdamente escandalizado, por exemplo, diante do hábito que Mary tinha de ficar na cama de manhã! Quando ela sentia preguiça, não se levantava; estava tudo acabado. A primeira vez que a coisa aconteceu, Rampion ficou verdadeiramente angustiado.
- Mas tu não podes ficar na cama toda a manhã - protestara ele.
- Porque não?
- Porque não? Porque não podes.
- Mas eu posso - disse Mary calmamente. - Posso e fico.
O caso escandalizou-o, Sem motivo, como percebeu ele mesmo ao tentar analisar os seus próprios sentimentos. Mas, apesar de tudo, ficou escandalizado. Porque ele sempre se levantara cedo, porque toda a sua gente tinha sido sempre obrigada a deixar a cama cedo. Ficou escandalizado porque não se devia ficar na cama enquanto os outros estavam de pé a trabalhar. Levantar tarde era de certa maneira juntar insulto à ofensa. E no entanto o facto de uma pessoa se levantar cedo sem necessidade não auxiliava em nada as outras que se levantavam cedo por obrigação. Levantarmo-nos quando nada nos obriga a isso é simplesmente um tributo de respeito, como descobri-se numa igreja. E ao mesmo tempo é um acto propiciatório de sacrifício para apaziguar a própria consciência.
- Não se pode ter sentimentos como esses - refletia Mark Rampion.  - Imagine-se um grego a sentir coisas assim!
Era inimaginável. No entanto o facto permanecia inalterado; por mais que ele reprovasse aquele sentimento, a verdade é que aquele sentimento continuava a existir nele.
"Mary é mais sã do que eu", pensava Mark. E lembrou-se deste versos de Walt Whitman sobre os animais "Ele não lutam nem se lamentam por causa da sua condição. Não passam as noites em vigília, a chorar os seus pecados." Mary era assim; era bom ser assim. Ser um perfeito animal e ao mesmo tempo um humano perfeito, eis o ideal... Apesar de tudo, Mark ficava escandalizado quando Mary não se levantava de manhã. Procurava não ficar, mas ficava. Rebelando-se, permanecia algumas vezes na cama também., até ao meio-dia; por princípio. Era seu dever não ser um bárbaro da consciência. Mas foi preciso muito tempo para que ele pudesse gozar verdadeiramente da sua preguiça.

Contraponto - Aldous Huxley - 1928