- Ninguém pode recordar a dor - disse ele, em voz alta.
- Eu posso.
- Não, não podes. Podes apenas recordar a ocasião dela, os seus acessórios.
A ocasião fora em casa da parteira na rue de la Tombe-Issoire; os acessórios, a sujidade e a humilhação. O rosto dela carregou-se ao ouvir-lhe as palavras.
- Nunca poderás recordar a sua qualidade efetiva - continuou ele. - Como não poderás recordar-te da qualidade de um prazer físico. Por exemplo, hoje, há meia hora... não podes lembrar-te. Não há uma recriação do acontecimento. E ainda bem. - E sorria agora. - Imagina se pudéssemos recordar exatamente os perfumes e os beijos! Como seria fatigante a realidade deles! E que mulher dotada de memória teria alguma vez mais do que um filho?
Helen mexeu-se, inquieta.
- Não posso imaginar como alguma mulher os possa ter - disse, numa voz débil.
- Assim, prosseguiu ele - as dores e os prazeres são novos de cada vez que os experimentamos. Inteiramente novos. Cada gardénia que alguma vez cheiramos. E cada parto...
- Lá estás tu outra vez a falar como um tolo - interrompeu ela, irritada. - A confundir as coisas.
- Pensei que as estava esclarecendo - protestou ele. - Mas, afinal, de que se trata?
- Trata-se de mim, de ti da vida real, da felicidade. E tu a tagarelar para aí tolices, como um parvo!
- E tu? - perguntou ele. - Serás porventura muito experiente da vida real? Um perito de felicidade?
Sem olhos em Gaza / Aldous Huxley /1936
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