quinta-feira, 23 de julho de 2015

O que ando a ler VI

- Pensa bem - avisara ele antes do casamento. - Vamos ser pobres. Verdadeiramente pobres: não pobres com mil libras por ano como os teus amigos pobres. Não haverá criados. Será preciso que vás para a cozinha, que remendes roupa, que cuides da casa.
Mary limitou-se a rir.
- Pois quem há-de achar isso desagradável serás tu - respondeu ela. - Pelo menos enquanto eu não aprender a cozinhar...
Mary nem sequer sabia fritar um ovo quando casou com Mark Rampion.
Coisa bastante estranha, aquele entusiasmo infantil à maneira de Marie-Antoniette para fazer as coisas. - para cozinhar num fogão de verdade, usando de uma verdadeira máquina de varrer tapetes, de uma máquina de costura autêntica - sobreviveu aos primeiros meses de novidade e excitação. Mary continuou a divertir-se.
- Eu nunca poderia voltar a ser uma perfeita dama da sociedade - costumava ela dizer. - Isso havia de me matar de aborrecimento. Deus lá sabe como pode ser aborrecido e exasperante dirigir uma casa, fazer os trabalhos domésticos, cuidar dos filhos. Mas viver completamente sem contacto com todos os factos ordinários da existência, viver num planeta diferente do mundo quotidiano, da realidade física, é muito pior.
Rampion era da mesma opinião. Recusava-se a transformar a arte e o pensamento em desculpas para viver uma vida de abstração. Nos intervalos entre os seus trabalhos de pintor e escritor, ajudava Mary no trabalho doméstico.
- Não se pode esperar que brotem flores de um belo vácuo limpo. - Era este o seu argumento. - Elas precisam de húmus, argila e estrume. Assim é a arte.




Para Rampion havia também uma espécie de obrigação moral de viver a vida dos pobres. Mesmo quando já estava a ter um rendimento perfeitamente razoável, o casal mantinha apenas uma criada e costumava fazer sozinho grande parte do trabalho doméstico. Ela para ele um caso de noblesse oblige - ou antes, de roture oblige. Viver como rico, numa confortável abstração dos cuidados materiais, seria - sentia ele - uma espécie de traição à sua classe, à sua própria gente. Se ele se deixasse ficar sentado na sua cadeira e pagasse a criados para fazer o serviço, estaria de certo modo a insultar a memória de sua mãe, estaria a dizer-lhe postumamente que ele, Mark Rampion, era bom demais para levar a vida que ela levava.
Havia ocasiões em que Mark odiava aquela obrigação moral, porque sentia que ela o compelia a fazer coisas tolas e ridículas; e, odiando-a, tentava revoltar-se contra ela. Como tinha ficado absurdamente escandalizado, por exemplo, diante do hábito que Mary tinha de ficar na cama de manhã! Quando ela sentia preguiça, não se levantava; estava tudo acabado. A primeira vez que a coisa aconteceu, Rampion ficou verdadeiramente angustiado.
- Mas tu não podes ficar na cama toda a manhã - protestara ele.
- Porque não?
- Porque não? Porque não podes.
- Mas eu posso - disse Mary calmamente. - Posso e fico.
O caso escandalizou-o, Sem motivo, como percebeu ele mesmo ao tentar analisar os seus próprios sentimentos. Mas, apesar de tudo, ficou escandalizado. Porque ele sempre se levantara cedo, porque toda a sua gente tinha sido sempre obrigada a deixar a cama cedo. Ficou escandalizado porque não se devia ficar na cama enquanto os outros estavam de pé a trabalhar. Levantar tarde era de certa maneira juntar insulto à ofensa. E no entanto o facto de uma pessoa se levantar cedo sem necessidade não auxiliava em nada as outras que se levantavam cedo por obrigação. Levantarmo-nos quando nada nos obriga a isso é simplesmente um tributo de respeito, como descobri-se numa igreja. E ao mesmo tempo é um acto propiciatório de sacrifício para apaziguar a própria consciência.
- Não se pode ter sentimentos como esses - refletia Mark Rampion.  - Imagine-se um grego a sentir coisas assim!
Era inimaginável. No entanto o facto permanecia inalterado; por mais que ele reprovasse aquele sentimento, a verdade é que aquele sentimento continuava a existir nele.
"Mary é mais sã do que eu", pensava Mark. E lembrou-se deste versos de Walt Whitman sobre os animais "Ele não lutam nem se lamentam por causa da sua condição. Não passam as noites em vigília, a chorar os seus pecados." Mary era assim; era bom ser assim. Ser um perfeito animal e ao mesmo tempo um humano perfeito, eis o ideal... Apesar de tudo, Mark ficava escandalizado quando Mary não se levantava de manhã. Procurava não ficar, mas ficava. Rebelando-se, permanecia algumas vezes na cama também., até ao meio-dia; por princípio. Era seu dever não ser um bárbaro da consciência. Mas foi preciso muito tempo para que ele pudesse gozar verdadeiramente da sua preguiça.

Contraponto - Aldous Huxley - 1928

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