domingo, 15 de abril de 2018

Prefiro Ser Eu Mesmo

"Estanho, estranho, muito estranho", tal era a opinião de Lenina acerca de Bernard Marx. De tal maneira estranho que durante as semanas que se sucederam ela perguntou a si mesma, mais de uma vez, se não faria melhor em mudar a ideia das suas férias no Novo México e ir antes para o Polo Norte com Benito Hoover. (...)

A ideia de voar de novo para oeste era deveras sedutora. E, depois, passariam pelo menos três dias, dos sete da viagem, na Reserva de Selvagens. Em todo o centro não havia mais de meia dúzia de pessoas que já tivessem penetrado no interior de uma Reserva de Selvagens. Na sua qualidade de psicólogo Alfa-Mais, Bernard era um dos raros homens, entre os seus conhecimentos, que tinham direito a uma autorização. Para Lenina a ocasião era única. E, no entanto, as bizarrias de Bernard eram também de tal maneira únicas que hesitava em aproveitá-la e por mais de uma vez tinha pensado em arriscar uma outra ida ao Pólo com esse bravo e divertido Benito. Pelo menos Benito era normal, ao passo que Bernard...

"Foi o álcool no seu pseudo-sangue, tal era a explicação que Fanny dava de cada uma dessas excentricidades. Mas Henry, com quem, numa noite em que estavam deitados juntos, Lenina tinha falado, não sem uma certa inquietação do seu novo amante, Henry tinha comparado o pobre Bernard a um rinoceronte. 
- Não se pode ensinar um rinoceronte a fazer habilidades - tinha ele explicado, no seu estilo breve e vigoroso. - Há indivíduos que são quase rinocerontes; não reagem convenientemente ao condicionamento. Pobres diabos! Bernard é um deles. Felizmente para ele, é bastante competente na sua especialidade. Sem isso, o Diretor já o teria posto na rua. No entanto - acrescentou num tom consolador -, creio que é completamente inofensivo.

Completamente inofensivo, talvez. Mas igualmente muito inquietante. Em primeiro lugar, essa mania de fazer as coisas na intimidade. O que equivaleria, na prática, a nada fazer. Que se pode fazer na intimidade? (À parte bem entendido, ir para a cama; mas não se pode fazer isso continuadamente.) Sim, que se pode fazer? Muito poucas coisas. (...)

- Mas então para que serve o tempo? - perguntou Lenina, admirada.
Aparentemente, para dar passeios na Região dos Lagos, pois era isso que ele propunha. Aterrar no cume do Skeddaw e fazer uma caminhada de duas horas entre as urzes.
- Sozinho consigo, Lenina.
- Mas Bernard, nós ficaremos sozinhos toda a noite.
Bernard corou e desviou o olhar.
- Eu queria dizer...sós para conversar murmurou.
Para conversar? Mas a respeito de quê? - Andar e conversar parecia-lhe uma estranha maneira de passar a tarde.
Por fim ela persuadiu-o, embora contra a sua vontade, a voarem até Amesterdão para verem a final do Campeonato Feminino de luta (pesos-pesados).
- Entre uma multidão - resmungou -, como e costume.
Conservou-se obstinadamente amuado toda a tarde; recusou-se a falar aos amigos de Lenina (que encontraram às dúzias no bar onde se bebiam gelados de soma nos intervalos das lutas), e, apesar do seu miserável estado de espírito, recusou-se terminantemente a tomar a dose de meio grama de sundae de framboesas que ela insistia que tomasse.

- Prefiro ser eu mesmo - disse - eu mesmo e desagradável.
E não qualquer outro, por mais alegre que seja.


Admirável Mundo Novo / Aldous Huxley / 1932

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