"...estão todos vestidos de verde", disse uma voz doce, mas clara, começando no meio de uma frase, "e as crianças Deltas estão vestidas de caqui. Oh não, não quero brincar com as crianças Deltas. E os Epsilões são ainda piores. São tão estúpidos que nem sabem ler ou escrever. E, além disso, estão vestidos de negro, que é uma cor ignóbil. Como estou contente por ser uma Beta."
Houve uma pausa. Depois a voz recomeçou:
"As crianças Alfas estão vestidas de cinzento. Elas trabalham muito mais que nós, porque são formidavelmente inteligentes. De facto, estou muito contente por ser um Beta, pois não trabalho tanto. E, depois, somos muito superiores aos Gamas e aos Deltas. Os Gamas são patetas. Estão todos vestidos de verde e as crianças Deltas estão vestidas de caqui. Oh, não, não quero brincar com as crianças Deltas. E os Epsilõe são ainda piores. São tão estúpidos que nem sabem..."
O Diretor pôs o interruptor na primitiva posição. A voz calou-se. Apenas o longínquo fantasma continuou a murmurar debaixo dos oitenta travesseiros.
- Ouvirão isto repetido ainda quarenta ou cinquenta vezes antes de acordar; depois novamente na quinta-feira: e igualmente no sábado. Cento e vinte vezes, três vezes por semana, durante trinta meses. Em seguida passarão a uma lição mais avançada.
- Rosas e descargas elétricas, o caqui dos Deltas e um cheiro a assa-fétida, ligados indissoluvelmente antes que a criança saiba falar. Mas o condicionamento que não é acompanhado por palavras é grosseiro e inteiriço. É incapaz de fazer conhecer as distinções mais delicadas, de inculcar as mais complexas formas de conduta. Para isso são necessárias palavras, mas sem nexo. Enfim, a hipnopedia, a maior força moralizadora e socializadora de de todos os tempos.
Os estudantes garatujaram isto nos seus cadernos. O conhecimento colhido diretamente na sua origem.
O Diretor carregou novamente no interruptor.
"...são formidavelmente inteligentes", dizia a voz doce, insinuante, infatigável. "De facto, estou muito contente por ser um Beta, pois..."
Não exatamente como gotas de água, se bem que a água seja capaz de, lentamente, perfurar o mais duro granito, antes como gotas de lacre líquido, gotas que aderem, se incrustam, se incorporam a tudo em que caem, até que, finalmente, a rocha nada mais seja que uma única massa escarlate.
- Até que o espírito da criança seja essas coisas sugeridas e que a coma dessas coisas sugeridas seja o espírito da criança. E não apenas o espírito da criança, mas igualmente o espírito do adulto, e para toda a vida. O espírito que julga, deseja e decide, constituído por essas coisas sugeridas. Mas todas essas coisas sugeridas são aquelas que nós sugerimos , nós!
- Com entusiasmo, o Diretor quase gritou. - Que o Estado sugere. Deu um murro sobre a mesa mais próxima . - Disto resulta por consequência...
Um ruído fê-lo voltar-se.
- Oh Ford! disse, noutro tom. - Então não acordei as crianças!?
Capítulo Segundo / Admirável Mundo Novo / Aldous Huxley / 1932
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Já não sei bem ao certo. Mas acho que comecei a ler este livro teria entre 15 e 17 anos... por aí. E sei que não o cheguei a acabar. Aconteceu-me o que acontece a muita boa gente, simpática como eu, que decide emprestar as suas coisas, mas que depois infelizmente estas não fazem o caminho de volta. E como eu sempre detestei emprestar coisas que depois não voltavam. Sei que fiquei sem alguns livros e sem alguns discos além de outras coisas mais, à custa de não querer dizer que não, e isto porque as pessoas não sabem o que significa a palavra emprestar.
Mas sei muito bem que gostei de livro pois não mais o esqueci, e quase tinha prometido a mim mesmo, que um dia ainda o haveria de o ter e de ler, desta vez até ao fim. E foi por isso, por ter gostado do livro, que voltei recentemente ao autor, e peguei no Contraponto, e entretanto já li outras coisas, e até devo receber por estes dias outro livro dele. Provavelmente voltarei a citar excertos deste livro, por certo para falar da personagem "multi-resistente" da obra, que se questiona acerca da sociedade onde vive, sociedade esta do futuro, imaginada por Huxley, e que tantas semelhanças tem com a atual, em que vivemos neste momento.
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