10 de Janeiro
(...)
Contou-me então a sua história com a mulher dum amigo: ao fim de um mês, decidiram acabar, conscientes de que não deveriam.
- Foi a única coisa grandiosa da minha vida. Não que me sentisse apaixonado, ela também não se apaixonara por mim. Mas era bom, aquilo poderia ter prosseguido por muito tempo. E foi somente por dever que renunciámos, Bonito, heróico, hem? - Pretendia falar com um certo cinismo. - Ainda hoje me parece espantoso, um indivíduo como eu! Mas é verdade! E o mais incrível é que nenhum de nós se sentia em pecado, compreendes? - Eu achava graça à palavra pecado na boca de um ateu. - Não enganávamos o marido, eu era sinceramente amigo dele. No entanto... Isto: ele viria a sofrer se soubesse o que se passava. Pronto.
- Cansaram-se um do outro, foi o que foi.
- Não, pelo contrário. E ficaram muitas coisas incompletas. Por exemplo, só ontem me lembrei: nunca cheguei a beijar-lhe os joelhos. Se soubesses como esse pequeno pormenor, este pequeno nada que não cheguei a fazer, me dói... Às vezes penso que vou quebrar todas as minhas decisões só para lhe beijar os joelhos, depois talvez fique enfim repousado... Mas não... Deitámo-nos duas vezes, compreendes? Não conseguimos, apesar de tudo, vencer uma certa timidez, há dezenas de coisas que não fizemos, e me queimam a existência só porque não as fiz. - Tirara o anel do dedo, brincava com ele em cima do tampo da mesa. - Seja como for, não voltamos a trás, acabou-se.
Não sei porquê, senti-me subitamente esse marido e perguntei-lhe com ar natural, como se de nada suspeitasse:
- Conheço-o?
Hesitou (ou pareceu hesitar), disse:
- Não. - Insistiu: - Que milagre fará um bicho como nós suspender um prazer só porque...? Não é espantoso? - Olhava para mim, muito sério, como se quisesse dar-me a entender que desistira, e estava disposto a morrer sem lhe beijar os joelhos. Que com esse gesto demonstrava por mim uma amizade profunda.
Bolor / Augusto Abelaira / 1968
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