domingo, 24 de maio de 2020

Ninguém Pode Compreender Aquilo Que Não Sente

Acendeu um cigarro e continuou com o livro. Bateram à porta. Philip ergueu-se e foi abrir: era Elinor.
- Que tarde! - exclamou ela, atirando-se para uma cadeira. 
- Então que novidades me contas de Marjorie?
- Novidades? Nada que se pareça com isso... - disse Elinor num suspiro, enquanto tirava o chapéu. -A pobre criatura está insípida como sempre. Mas lamento-o sinceramente. 
- Que lhe aconselhaste?
- Nada. Que queres que ela faça? E Walter? - perguntou Elinor por sua vez.  - Achaste ocasião para fazer de papá severo?
- De papá semi-severo, digamos... Consegui que ele se fosse instalar em Chamford com Marjorie.
- Conseguiste? Foi um verdadeiro triunfo!
- Não tanto como julgas. Não tive inimigo contra quem combater. Lucy parte para Paris no próximo sábado .
- Esperemos que ela fique por lá... Pobre Walter!
- Sim, pobre Walter... Mas eu tenho que te falar dos diabos-marinhos.
Falou-lhe. 
- Um dia destes - concluiu - preciso escrever um Bestiário moderno. Que lições de moral! Mas dize-me, como achaste Everard? Tinha esquecido completamente que o tinhas visto.


- Não podias deixar de esquecer... - retorquiu ela desdenhosamente. 
- Achas? Não sei porquê...
- Não, não sabes. 
- Estou esmagado sob o peso do teu desdém - disse Philip com uma humildade fingida.
Houve um silêncio.
- Everard está apaixonado por mim - disse por fim Elinor, sem olhar para o marido, e com uma voz perfeitamente calma e fria. 
- Mas isso é novidade? Julguei que fosse um velho admirador. 
- Mas é a sério - prosseguiu Elinor- Muito a sério. - Ela esperava ansiosamente os comentários do marido. Estes vieram, depois de um curto silêncio. 
- Isso já deve ser menos divertido...
No fim de contas Philip não era um tolo. Ou talvez compreendesse muito bem e estivesse apenas a fingir o comentário; talvez estivesse mesmo secretamente contente com os sentimentos de Everard. Ou era então simplesmente a indiferença que o tornava cego? Ninguém pode compreender aquilo que não sente. Philip não podia compreendê-la, porque não sentia as coisas como ela. Estava confiante na crença de que as outras pessoas eram tão razoavelmente mornas como ele. 
- Mas gosto dele - afirmou Elinor em voz alta, fazendo uma derradeira tentativa desesperada para arrancar do marido pelo menos um simulacro de demonstração de amor. Se ao menos ele se mostrasse ciumento, ou triste, ou zangado, como ela seria feliz, como lhe ficaria reconhecida por isso!
- Gosto muito de Webley - continuou Elinor. - Há alguma coisa de muito atraente. Aquele seu carácter apaixonado, aquela violência...
Philip pôs-se a rir:
Exatamente o irresistível homem das cavernas, hem?
Elinor ergueu-se com um pequeno suspiro, pegou no chapéu e na bolsa e, inclinando-se para o marido, beijou-lhe a testa, como para lhe dizer adeus; depois afastou.-se e, sempre sem dizer palavra, subiu para o quarto.
Philip tornou a abrir o livro que tinha abandonado. Leu;
"Benellia viridis é um verme verde, não muito raro no Mediterrâneo. A fêmea tem o corpo da grossura aproximada de uma ameixa, munida de um apêndice proboscidinano em filamento, bífido na extremidade, fortemente contráctil, e que pode atingir os dois pés de comprimento. Mas o macho é microscópico, e vive no que pode ser denominado o conduto reprodutor (nephridium modificado) da fêmea. Não tem boca a alimenta-se unicamente do que absorve parasitariamente através das suas superfícies ciliadas..."
Mais uma vez Philip largou o livro. Ficou a pensar sobre se devia ou não subir e falar a Elinor. Estava convencido de que ela nunca chegaria a amar realmente Everard. Mas talvez ele, Philip, não devesse ter a coisa como muito certa. A mulher parecera-lhe um pouco transtornada. Talvez esperasse que ela lhe falasse, que lhe dissesse do seu amor e de quanto ficaria infeliz - e furioso - se ela deixasse de o querer. Mas eram estas precisamente as coisas mais impossíveis de dizer. Finalmente decidiu não subir. Ia esperar para ver... transferia para outra ocasião. Continuou a leitura sobre a Bonellia viridis.

Capítulo XXI / Contraponto (Point Counter Point) - Aldous Huxley (1928)

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