segunda-feira, 25 de maio de 2020

Amor ao Primeiro Ouvido

Depois dos inúmeros telefonemas que fizemos ao longo do último mês, finalmente conheci o senhor Mário e ele acabou também por me ficar a conhecer a mim. Eu não o imaginava assim mas julgo que ele ficou bem mais surpreendido comigo, e foi por isso mesmo que, depois de me ter metido no carro sorria para mim mesmo, com o ar de surpresa com que ele me olhou, quase boquiaberto.

Se eu passasse por ti na rua sem te conhecer, nunca que diria que és a pessoa que és.

A visão é um dos sentidos mais importantes que temos mas, nas relações humanas, não raras são as vezes que, infelizmente, desvia-nos do essencial e foca-nos no supérfluo. Concentra-nos demasiado no papel que embrulha e ignora o que está lá dentro. Claro que todos nós gostamos de rostos atraentes, de sorrisos bonitos com dentes direitinhos e corpos tonificados e com esta ou aquela característica consoante o gosto de cada um.  Mas já por diferentes vezes eu já me perguntei se por caso fôssemos todos cegos, se escolheríamos as mesmas pessoas com que nos envolvemos romanticamente. E a resposta é: não.

Os ouvidos não vêem. Os olhos vêem mas não prestam atenção.

E o coração, precisa de ver ou de escutar?

A partir do momento que iniciamos a comunicação com uma pessoa que não conhecemos pessoalmente nem sequer imaginamos como é fisicamente, de imediato começamos a pintar-lhe o perfil na tela em branco. E ao longos dos últimos quatorze anos muitas foram as vezes que isto me aconteceu. E a grande aproximação, principalmente se começamos pela escrita, é a voz. E agora que penso, veja-se como já existem video-chamadas há tantos anos, mais de dez certamente, mas as pessoas continuam a colocar os telemóveis nos ouvidos e não nos olhos. Não é curioso isso? Foi assim tão importante essa invenção? Sim, se for para fazer umas poucas vergonhas certamente que tem a sua grande utilidade da estimulação visual, de resto, a verdade é que ainda hoje, seja nas empresas ou do ponto de vista particular, não tem grande utilidade.

É muito curioso que agora, até nas redes sociais e tudo, que me vou apercebendo de coisas que já toda a gente sabia menos eu. Coisas como, num vídeo ou numa fotografia em que alguém está a falar de determinado assunto, as pessoas muitas vezes vão ignorar o que está a ser dito, e vão reparar na estante que está lá atrás ou em todo e qualquer pormenor sem importância e a mensagem que é importante perde-se. Os olhos não filtram, muitas vezes perturbam. Há um termo na fotografia que era revelada em película que se chamava grão ou ruído. E o mesmo se passa com os nossos olhos analógicos. Perante um determinado cenário eles focam-se um determinado ponto que lhe interessam, e tudo à volta fica granulado, com ruído, desfocado.

A este propósito observei por estes dias um bom exemplo. Naquele programa dos agricultores, o mais jovem agricultor tinha em casa três jovens mulheres. De imediato focou-se só numa e toda a sua linguagem corporal denunciava-o claramente. Olhava sempre para a mesma, a que de imediato reclamava mais atenção como se fosse uma cria de pássaro a piar mais alto e a abrir mais o bico que as outras. E ele caiu no engodo e só alimentava aquela cria que ia ficando cada vez mais gorda ao passo que as outras, se calhar tão mais cheias de virtudes, ficaram esquecidas. E o que qualquer homem no lugar dele deveria fazer era tratar todas as convidadas por igual, ouvi-las a todas por igual. Mas não é isso que as pessoas fazem. E eu quase que aposto que, se lhes fossem só mostradas as fotografias das concorrentes, a escolha deles recairia exatamente na mesma pessoa que vão escolher, ao fim de todo aquele tempo para supostamente as conhecer.

Não há amor à primeira vista. Há beleza à primeira vista.
Há beleza à primeira vista para saber se estás, ou não, à minha altura. Há conta bancária à primeira vista, para saber se és, ou não, um bom partido para mim. Há a pressão social. E o que é que os outros vão dizer? E não duvido que na maior parte dos casos é isso que pesa: a pressão social.

Eu namorava contigo mas só se cortasses o cabelo.

Por artes mágicas, foi também numa Primaverava passada, que uma certa desconhecida de uma terra distante para onde, curiosamente, eu  há vinte anos, todos os anos me dirigia, haveria de me telefonar. E eu sempre achei, ou quis achar, ou comecei a querer acreditar porque a vida tem-me mostrado que comigo é assim que vem acontecendo, que nós andamos sempre à volta daquela pessoa com quem eventualmente um dia haveremos de chocar. E nos vinte anos a correr para aquela localidade, é bem provável que já tivéssemos estado bem próximos, mas quis o sortilégio da vida que haveria ser naquela Primavera, por causa dum interesse comum, que só naquele ano é que tinha passado a ser comum. Se naquele ano, por um milhão de pequenos acasos, esse interesse não tivesse sido plantado na sua cabeça, não teríamos tido oportunidade de ter chocado um contra o outro.

E o tal dia que me haveria de telefonar chegou. Os dois desconhecidos chocaram. A conversa decorria com tal sintonia e interesse que até me haveria de esquecer dum encontro lá com a malta do ténis-de-mesa. Todo eu era todo ouvidos e estava a gostar muito do que estava a ouvir daquela pessoa eu não sabia absolutamente nada: idade, estado civil ou índice de massa corporal. Nada. Falava-me da paixão comum das plantas; que certo dia carregou o carro com livros e os doou à biblioteca (logo eu que os continuo a acumular sem ler metade). Falava-me de Mujica e do tempo, e de como todas as coisas que temos não são compradas com dinheiro, mas sim compradas com o tempo que perdemos a trabalhar... E que coisa tão bonita de se ouvir.

Ouvindo-a com atenção, a determinada altura já me tinha decidido encantar-me bem antes de saber se um dia ainda nos iríamos conhecer pessoalmente...

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