"Querer alguém, ou alguma coisa, é muito fácil. Mesmo assim, olhar e sentirmo-nos querer, sem pensar no que estamos a fazer, é uma coisa mais bonita do que se diz. Antes de vermos a pessoa, ou a coisa não sabíamos que estávamos tão insatisfeitos. Porque não estávamos. Mas, de repente, vemo-la e assalta-nos a falta enorme que ela nos faz. Para não falar naquela que nos fez e para sempre há-de fazer. Como foi possível viver sem ela? Foi uma obscenidade. Querer é descobrir faltas secretas, ou inventá-las na magia do momento. Não há surpresa maior. (...)
Querer é mais forte que desejar, pelo menos na nossa língua. Querer é querer ter, é ter de ser. Querer tem mesmo de ser. Na frase felicíssima que os portugueses usam "o que tem de ser tem muita força". Desejar tem menos. É condicional. Quem deseja, desejaria. Quem deseja, gostaria. Seria bom poder ter o que se deseja, mas o se deseja não dá vontade de reter, se calhar porque são muitas as coisas que se desejam e não se pode ter todas ao mesmo tempo.
Querer é querer ter e guardar, é uma vontade de propriedade; enquanto desejar é querer conhecer e gozar, é uma vontade de posse. O querer diminui-nos, mas o desejar não. Sabemos que somos completos quando desejamos - desejamos alguém de igual para igual. Quando queremos é diferente - queremos alguém com a inferioridade de quem se sente incapacitado diante de quem parece omnipotente. O desejo é democrático, mas o querer é fascista.
O que desejamos, dava-nos jeito, o que queremos fez-nos mesmo falta. Mas tanto desejar como querer são muito fáceis. Ter, isto é, conseguir mesmo o que se quer é mais difícil. E reter o que se tem, guardando-o e continuando a querê-lo, tanto como se quis antes de se ter, é quase impossível. Há qualquer coisa que se passa entre o momento em que se quer e o momento em que se tem. O que é?
"Cada pessoa - dizia Oscar Wilde - acaba por matar a coisa que ama". Mata-a, se calhar, quando sente que a tem completamente. (...)
A verdade, triste, é que uma pessoa completa, a quem não falta nada, não é capaz de querer outra pessoa como deve ser. No momento em que se sente que tem o que se quer, foi-lhe devolvida a parte que lhe fazia falta e passou a ter tudo outra vez. Fica peneirenta, sente-se gente outra vez. É feliz, está satisfeita e deixou de ser inferior à sua maior necessidade. O ter destrói aquilo que o querer tinha de bonito. Uma necessidade ocupa mais o coração, durante mais tempo, que uma satisfação. Querer concentra a alma no que se quer, mas ter distrai-a. Nomeadamente, para outras coisas e outras pessoas que não se têm. (...)
Querer é poder, não só porque porque há coisas que não se conseguem sem que sejamrealmente queridas, mas porque é realmente um poder. Quem não quer nada sofrer, por definição, de uma fraqueza. Por outras palavras, quem não quer nada a não ser o que se tem, não avança - tem uma situação que não arrisca, que não aquece nem arrefece. Porque é que estas pessoas, que parecem nada querer, são sempre as pessoas que queremos mais? Entre duas pessoas, quem está sempre prejudicado junto da outra pessoa, porque o querer é uma coisa que lhe está na cara. As vontades verdadeiras não se disfarçam.
Como então resolver o problema? Em primeiro lugar, nunca se pode ter nada ou ninguém tão completamente quanto se quis. No caso de se ter a pessoa que se quer, e haver outra que nos quer ter, nunca nos podemos dar completamente. Quem nos quer, quer-nos in toto, mas satisfaz-se com pouco. Não se pode dar mais. Um bocadinho tem de parecer bastante. E se dermos tudo, tem de parecer pouco. Ela nunca pode perceber. Senão perdemo-la. É preciso haver sempre uma parte que parece inacessível. O que é o mistério de uma pessoa senão a parte dessa pessoa que adivinha, que se sonha que (sobretudo) se desconhece? É preciso haver bocados de nós que não se dão, que permanecem por descobrir, que pareçam uma espécie de desafio, mesmo que apeteça dá-los totalmente.
No caso de ser uma pessoa que se quer, é preciso querer manter essa vontade, como uma coisa que é rara e boa só por si. É preciso ver que é a própria vontade a coisa mais querida que pode haver. Querer é como fazer luz. Aquilo que a luz ilumina (que pode ser tudo) nunca pode ser tão importante como a própria luz (que tudo pode iluminar). Em certo sentido, é necessário não querer o que se tem, e não ter o que se quer. Porque é muito difícil querer o que se tem e ter o que se quer. Só por isso.
Quando se quer realmente, dar-se-ia tudo por ter. A coisa ou a pessoa que se quer têm o valor imediato igual a todas as coisas e pessoas que já se têm. Trocavam-se todas as namoradas, ou todos os namorados, que já se namoraram pelo namoro de uma única pessoa que se quer namorar. É esta violência. É esta injustiça. Mas é também a beleza, Quem aceitaria que um novo amor significaria apenas parte de uma vida? Não sendo a vida inteira, não sendo tudo o que importa, numa dada altura, num dado estado do coração, por que nos haveríamos de ralar?
Querer é uma arte delicada. Ser querido também é. Idealmente quem tudo quisesse nunca aceitaria tudo o que lhe fosse dado, para não perder a prenda principal, que é a vontade verdadeira de outra pessoa, e tudo faria, até, para causar problemas, entraves entre uma pessoa e outra, exagerando diferenças entre elas, esquecendo semelhanças. Nada atrai como a diferença e a estranheza ligeiramente longínquas. Por outro lado, quem fosse querido nunca daria mais do que é necessário para a outra pessoa continuar a querer. Ora continuar a querer - coisa que se deve tentar conseguir - não é nada a mesma coisa que ter. Continuar a ser querido não é a mesma coisa que ser tido.
O querer é bonito porque, concentrando-se na coisa ou na pessoa que se quer, elimina o resto do mundo. O resto do mundo é uma entidade muito grande que tem graça e tem valor eliminar. Querer um homem em vez de todos os homens, uma mulher em vez de todas as mulheres é fazer a escolha mais impossível e bela. Acho que se pode ter tudo o que se quer de muitas pessoas ao mesmo tempo, mas não se pode querer senão uma pessoa. Ter todas as pessoas não chega para satisfazer, mas basta querer só uma, e não a ter, para nos insatisfazer, É por isso que se tem de dar valor à vontade. Poder-se-á querer ter alguém sem querer também ser querido por essa pessoa? Eu não sei. (...)
Ter o que se quis não é tão bom como se diz, nem querer o que não se tem é assim tão mau. O segredo deve estar em conseguir continuar a querer, não deixando de ter. Ou, por outras palavras, o melhor é continuar a ser querido sem por isso ser deixado de ser tido. O que é que todos nós queremos no fundo dos fundos? Queremos querer. Queremos ter. Queremos ser queridos. Queremos ser tidos. É o que nos vale: afinal queremos exatamente o que os outros querem. O problema é esse.
"Os meus problemas" / Miguel Cardozo / 1988