quinta-feira, 29 de maio de 2025

O Enforcado I

 


Gouveia e Melo acaba de apresentar a sua candidatura à presidência da república. Portanto, depois de dez anos da Múmia e de mais dez anos do Escorpião Traidor, e porque os portugueses adoram um bom aldrabão, que diz uma coisa e faz outra, arriscamo-nos de seguida a ter "O Enforcado I".

Sim, esta pirueta do almirante está ao nível da "demissão irrevogável" de Paulo Portas ou da "Nem que Cristo desça à Terra serei candidato à liderança do PSD".

Disse o almirante Gouveia e Melo em setembro de 2021 (retirado do jornal Público):

“Acho que daria um péssimo político. Não sinto necessidade de dar [o meu contributo] enquanto político, primeiro porque não estou preparado para isso, acho que daria um péssimo político e também acho que devemos separar o que é militar do que é político, porque são campos de actuação completamente diferentes”.

“Os militares devem fazer o que sabem fazer, que é ser militar e os políticos fazem o que sabem fazer, que é ser políticos (...) nós vivemos numa democracia estável, não devemos confundir as coisas”

"Se isso acontecer, dêem-me uma corda para me enforcar”.

Já em 2023: 

"Não gosto que me imiscuam na área política. Sou militar e não tenho intenção no futuro de me candidatar a nada. Isto é um não. Quando eu digo não é não"


Por favor, alguém que dê uma corda homem. 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Estou Emocionado com a Vossa Inteligência

Depois de se ter sabido que houve ciganos a votar no partido que odeia ciganos e comunistas muito satisfeitos com o trabalho do PCP na sua autarquia, mas a achar que o melhor é votar nos fascistas para o parlamento, já sem falar nas mulheres que votaram no partido que as quer proibir de votar e de mandar no seu próprio corpo, terminamos hoje o dia - nem de propósito, 28 de Maio, dia do golpe de Estado que instaurou uma ditadura em Portugal - com a contagem dos votos para as legislativas de 2025 a saber que os emigrantes votaram em massa nos partidos anti-imigração (tal como eles)!


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Os Intrusos

Às vezes pergunto-me porque se fecham as portas desta casa se os intrusos já vivem cá dentro.
Ao trancarmos as portas, no fundo, estamos a fechar-nos com eles cá dentro. 

Batem constantemente. Com que intuito? Não sei... 

Só sei que nada faz sentido... 

Com o passar do tempo somos menos à mesa e de caminho já não vivemos cá. 
Devo-me cuidar porque poderei ser o próximo... 

Ou será que os intrusos somos nós? 
Não me parece.

Só sei que nada faz sentido.



domingo, 25 de maio de 2025

Quem Adormece em Democracia...

 Frase do dia (adaptada):

Quem adormece em democracia, um dia pode acordar sem Constituição". 




Muitos Merecem Tudo o que o Futuro Lhes Teserve


Subimos um monte negro
E caímos na desventura 
À espera dum milagre
Sonhando com a fartura
Escolhemos ver apenas aquilo que dá mais jeito
Recusando ter o outro como alguém digno de respeito
Mão no peito a gritar um hino que não nos serve
Fala mano Dino, o sangue deles ferve
A fatura pesará e por muito que me enerve
Muitos merecem tudo o que o futuro lhes reserve


Na Loucura | Carlão | 2025

O Zé Tolinho Enfeitiçado

 


Cristina Sampaio | Jornal Público | 25 de Maio de 2025

sábado, 24 de maio de 2025

Unabomber - A Traição de um Irmão

Dilema ético não é ser eleito primeiro-ministro e continuar a mamar avenças debaixo da mesa. Isso é outra coisa mais parecida com falta de vergonha na cara. Dilema ético é seres confrontado com a possibilidade de denunciares o teu próprio irmão e este ser condenado à morte. Esta é a história do irmão de Unabomber que o denunciou, e que, pela longa reportagem que o New York Times fez, me parece que, tantos anos depois não ficou em paz com o que fez... 

Era maio de 1996, e David Kaczynski, conselheiro de jovens problemáticos no norte do estado de Nova Iorque, sentou-se para escrever uma carta ao seu irmão, Ted. Um mês antes, o seu irmão tinha sido chocantemente desmascarado como o enigmático Unabomber, responsável por uma campanha de atentados com explosivos que durou 17 anos e causou mortos e feridos por todos os Estados Unidos.

Ted Kaczynski, um matemático brilhante mas com perturbações mentais, que se tinha isolado anos antes numa cabana remota em Montana, fora detido graças a uma denúncia ao FBI, pondo fim a uma das maiores e mais dispendiosas caçadas humanas da história dos EUA. O denunciante do FBI foi David. Sentado em casa, em Schenectady, Nova Iorque, David começou a escrever a carta com lápis, consciente de que poderia ter de apagar e reescrever até acertar.

Só podia imaginar o quanto o Ted me odiava”, recordou numa entrevista. Perguntava na carta se Ted o permitiria visitar, para tentar explicar.

“Queria dizer-lhe pessoalmente que sentíamos uma obrigação moral de parar a violência,” disse.

Ted recusou colocá-lo na lista de visitantes e, quando respondeu, foi para descarregar toda a sua raiva no irmão.

“Vais para o inferno porque, para ti, veres-te como realmente és será o verdadeiro inferno,” escreveu.

David lembra-se de ter ficado magoado, mas não surpreendido.

“A carta do Ted confirmou os meus receios,” disse. “Foi como o destino a abater-se.”

Tentou novamente, desejando uma resposta diferente. Durante quase três décadas, David escreveu ao irmão, anos marcados por nostalgia, arrependimento e intensa auto-reflexão.

Em entrevistas ao The New York Times, David falou pela primeira vez em detalhe sobre esta longa correspondência - dezenas de cartas, postais e livros que pensava que Ted acharia interessantes — numa tentativa de reabrir uma linha de comunicação que se tinha fechado com a denúncia ao FBI.

As cartas variavam entre o mundano e o profundo: memórias de jogos de basebol da infância, notícias da reforma de David, atualizações sobre a saúde da mãe envelhecida. Por vezes, lamentava com saudade o fim do laço forte que outrora partilharam.

Esperava ter oportunidade de me encontrar com o Ted e explicar-lhe pessoalmente o que fiz e porquê,” disse David, de 75 anos, sobre a correspondência, parte da qual está arquivada na Universidade de Michigan, incluindo cartões de aniversário e de Natal. “Não esperava necessariamente que ele compreendesse o meu ponto de vista o suficiente para me perdoar. Mas pensei que ambos merecíamos uma oportunidade para nos olharmos nos olhos e partilharmos a verdade dos nossos princípios e sentimentos.

DOIS IRMÃOS, UMA INFÂNCIA

Os irmãos Kaczynski, filhos de imigrantes polacos de primeira geração, cresceram em Evergreen Park, um subúrbio operário de Chicago. Os pais valorizavam muito a curiosidade intelectual, o sucesso académico e a vida guiada por princípios éticos.

A família tocava música em conjunto, como um quarteto, e os rapazes desenvolveram amor pela natureza. Mas David, sete anos mais novo, via o irmão como socialmente desajeitado e notava que Ted não tinha amigos para além dele. A mãe disse uma vez que Ted era extremamente protetor de David e que este parecia ser a única pessoa de quem ele gostava.

David lembrava-se desses anos nas cartas a Ted.

(Sem data)
Foste o melhor irmão mais velho que poderia ter tido quando era pequeno, e começava a formar uma noção de mim mesmo e do mundo à minha volta. Guardarei sempre com carinho as memórias da tua bondade.

Academicamente e profissionalmente, os caminhos dos dois divergiram. Ted, um prodígio da matemática, entrou em Harvard aos 16 anos e depois fez mestrado e doutoramento na Universidade de Michigan. Tornou-se professor assistente de matemática na Universidade da Califórnia, em Berkeley, mas os problemas de saúde mental levaram-no a abandonar a carreira. David, que sonhava ser escritor, formou-se em Línguas na Universidade de Columbia em 1970.

David admirava o irmão, impressionado pela sua inteligência e independência, e queria ser como ele.

Ambos partilhavam o desejo de fugir da sociedade e refugiar-se na natureza. No verão de 1969, Ted convidou David para ir com ele ao Yukon, no noroeste do Canadá, à procura de terreno. Passaram semanas a explorar florestas e a conversar à volta da fogueira.

Pouco depois, em 1971, compraram um terreno nos arredores de Lincoln, Montana, onde Ted construiu uma cabana sem água nem eletricidade. David vivia a cerca de 145 km de distância, em Great Falls, onde trabalhava numa fundição de zinco. Ficou contente por ter o irmão por perto.

Havia equilíbrio entre eles. “O Ted guiava-me nas caminhadas, e eu ajudava-o nas interações sociais, por modestas que fossem,” disse David. “Acho que não percebi na altura o quanto me tornara importante na vida do Ted como seu único e melhor amigo.

Mas David acabaria por sair de Montana. Depois de perder o emprego na fundição, aceitou um lugar como professor de Inglês numa escola secundária em Lisbon, Iowa, onde o pai tinha trabalhado.

Durante dois anos deu aulas, depois decidiu dedicar-se à escrita de um romance. Descrevendo-se como “anti-carreirista”, mudou-se para o deserto do Texas em 1982, inspirado pelo filósofo Martin Heidegger, e viveu em isolamento, durante quase oito anos, em condições primitivas - primeiro num buraco coberto com chapas de zinco, depois numa pequena cabana.

Viviam, ele e Ted, em universos paralelos. E trocavam cartas sobre as suas experiências.

A TRAIÇÃO DE UM IRMÃO

Os atentados começaram a 25 de maio de 1978, quando um segurança da Universidade Northwestern se feriu ao investigar um pacote suspeito. Outro engenho explosivo apareceu um ano depois. As primeiras vítimas sofreram ferimentos ligeiros; mas, ao longo da campanha, três pessoas morreram e 23 ficaram feridas.

David e a família nada sabiam da violência do irmão. Por volta de 1985, Ted cortou quase todo o contacto com os pais, acusando-os de o pressionarem demasiado e culpando-os pelo seu isolamento social.

Em 1990, após o pai se suicidar devido a um diagnóstico terminal, Ted telefonou à mãe a expressar condolências - um dos poucos gestos de contacto.

David, por seu lado, mudara-se para Nova Iorque, para viver com Linda Patrik, professora de Filosofia e antiga colega de escola. Quando contou a Ted que iam casar, recebeu uma carta furiosa a dizer que cometia “o maior erro da vida.” A seguir, Ted cortou todo o contacto com David.

Os ataques continuaram e as autoridades tinham poucas pistas. Mas em 1995, o Unabomber publicou um manifesto de 35 mil palavras, onde atacava a Revolução Industrial e os seus efeitos nefastos.

Linda levou David à biblioteca da universidade para ler o manifesto online. Era a primeira vez que usava a internet.

Linda perguntou: não te soam familiares algumas ideias?

David, embora a medo, começava a pensar o mesmo.

“Sem a Linda, provavelmente teria enfiado tudo numa gaveta,” disse.

Durante três meses, trabalhou com um investigador privado e um ex-especialista do FBI, até contactar um advogado que serviu de intermediário para alertar o FBI.

Ted foi preso seis semanas depois, em abril de 1996. Um acordo evitou a pena de morte, resultando numa pena perpétua sem possibilidade de liberdade condicional.

David escreveu-lhe pouco depois e recebeu uma resposta mordaz de três páginas, acusando-o de ser movido por inveja e ódio.

1996
Sabes que, acima de tudo, preciso de liberdade física, silêncio e solidão, e que, para mim, prisão perpétua é pior que a morte... A verdadeira razão por que me denunciaste é porque me odeias... Porque te sentes inferior a mim.

Mas David insistiu. Queria honrar uma promessa feita à mãe, Wanda: “Nunca abandones o teu irmão, porque é isso que ele mais teme.

Sete meses após a detenção de Ted, David pediu desculpa:

Outubro de 1996
Tive de encarar a minha própria crueldade, e é, como tu dizes, um tipo de inferno. Amo-te. Lamento profundamente o que fiz e o quanto te magoei.

Depositava dinheiro na conta prisional de Ted e enviava-lhe livros. Um deles, oferecido pela mãe no Natal de 2005, chamava-se Quem Encomendou Esta Carga de Esterco?. Ted riscou uma nota no rodapé da fatura: “Obviamente, isto foi direto para o lixo.”

Em 2007, David avisou Ted de que a mãe estava gravemente doente, implorando que a contactasse. Nunca houve resposta. Quando Wanda morreu em 2011, aos 94 anos, o capelão da prisão disse que Ted não queria falar.

NOVAS LIGAÇÕES

Sem conseguir chegar ao irmão, David encontrou amizade num lugar inesperado: Gary Wright, vítima de um dos atentados, que sobreviveu com mais de 200 estilhaços no corpo.

David e a mulher escreveram às vítimas a pedir desculpa. Poucos responderam. Um investigador sugeriu que ligasse a Gary Wright, que parecia aberto.

David ligou-lhe e falou durante 20 minutos. “David, não tens de pedir desculpa,” disse Gary. “Fizeste o que era certo.”

Foi um ponto de viragem. Tornaram-se amigos, visitaram o Hall da Fama do Basebol, falaram juntos em eventos contra a pena de morte e sobre o poder do perdão.

UMA CARTA NO NATAL

No Natal de 2021, uma carta de David para Ted foi devolvida. Estranhou. Soube então que Ted estava no Centro Médico Federal em Butner, Carolina do Norte - o maior complexo médico prisional dos EUA.

Descobriu depois que Ted tinha cancro terminal. Encontrou uma carta no Reddit em que Ted admitia: Não devo viver mais de dois anos, talvez nem um.

Escreveu-lhe com mais frequência: “Precisava de lhe dizer que o amava e como ele me influenciou positivamente.”

Na última carta, disse que as melhores ideias de Ted “sobreviveriam a todos nós.”

Em junho de 2023, depois de uma caminhada, recebeu a notícia: Ted suicidara-se. Sentiu um vazio.

“Uma relação unilateral é, ainda assim, uma relação,” disse. “Mas agora, se encontrar palavras para partilhar com o Ted, só as posso dizer a mim mesmo.”

Tentou contactar a prisão para saber se podia tratar dos restos mortais. Sem resposta. Escreveu:
Senhores, por favor, POR FAVOR, dêem-me o contacto de alguém. Ignorar-me assim é cruel.

Foi-lhe dito que Ted deixara instruções escritas e que teria de fazer um pedido oficial. Estava furioso.

“Denunciei o meu irmão ao FBI, salvando vidas,” escreveu. “Agora ignoram o meu pedido sobre os restos mortais dele? Isso é desumano.”

Ted tinha deixado um testamento manuscrito:

Dezembro de 2014
Nenhuma pessoa ligada a mim por sangue ou casamento deverá possuir ou controlar qualquer parte dos meus bens.

David ainda hoje não sabe o que foi feito do corpo do irmão.

"My brother, the Unabomber", publicado no The New York Times (International Edition), de 5 de Maio de 2025, por Serge F. Kovaleski (com investigação de Susan C. Beachy e Kirsten Noyes):

A Ditadura em Curso nos Estados Unidos

No mesmo dia, duas entrevistas a duas artistas dos Estado Unidos na imprensa espanhola. Joan Baez e Coco Fusco e as duas vão no mesmo sentido: a ditadura já está em marcha.



"No documentário I Am a Noise (2023), Joan Baez fez um exercício de honestidade ao revelar segredos da sua vida, como o facto de, aos 50 anos, ter percebido através de hipnose que possivelmente tinha sido abusada em criança pelo pai, um reputado cientista mexicano — o que talvez explique as crises de ansiedade, as insónias, os ataques de pânico e o transtorno dissociativo de identidade que a acompanharam durante a adolescência e juventude.

Dois anos depois, a lendária poeta, cantora e activista publica agora "Quando vires a minha mãe, convida-a para dançar", uma colectânea de poemas escritos ao longo da vida pelos seus múltiplos “eus” - as várias Joans jovens que observavam o mundo com um olhar poético. A mãe guardou todos esses pedaços de papel com escritos e desenhos, e um dia ela decidiu mergulhar nessas experiências vitais. A “rainha da canção de protesto” conversa com La Vanguardia por videoconferência, desde a sua casa em Woodside, São Francisco.

Neste livro aparecem as suas irmãs, a sua mãe, o pai, amizades... Sente que é uma forma bonita de reunir uma vida?

Sim, estou contente por ele ter saído. Parte é escrita pelo “eu” adulto, mas basicamente são as outras entidades. É como apreciar a escrita de outra pessoa. Algumas assinam com nomes, outras apenas reconheço. Mas desde que me tornei uma pessoa inteira, já não consigo escrever assim, com essa magia que vinha das outras entidades dentro de mim — o que me entristece. E também me faz feliz ler.

Publica-o como terapia?

Não tinha um objetivo claro. Não me lembro se alguém me disse: “Vais publicar isto num livro?”. Mas montá-lo foi uma loucura: a poesia estava por todo o lado - no armário, debaixo da cama, no escritório, no armazém... Foi um processo longo. Acho que não me apercebi da profundidade que isso tinha para mim e de quão problemático foi para aquelas “pessoas interiores”, porque tive reações diferentes. Mas, sobretudo, não tive reação nenhuma - o que não fazia sentido, dada a natureza do material. Foi um desafio. E só percebi quão desafiante tinha sido ao vê-lo com alguma distância.

Que tipo de reações teve?

A maioria inconscientes. Sentia-me bem, e de repente já não me sentia assim tão bem, e pensava: “Porquê?”. Grande parte estava relacionada tanto com o filme como com o livro, e com expor toda a minha vida. Mas não faz sentido voltar à terapia à procura do detalhe. Não quero gastar energia nisso. Vivo a minha vida sem regressar a esse passado.

Esteve brevemente casada. Sente-se bem sozinha...

Já são 50 anos. E acho que cada vez é mais aceite. Quero dizer, já não é estranho nem mau que uma mulher diga que prefere estar sozinha. Se tivesse sido capaz de manter uma relação, teria sido bom. Mas não fui. Por isso, estou confortável sozinha. Tenho amigos por perto. O meu filho, pelo menos por algum tempo, esteve por perto. E tenho outras pessoas na minha propriedade que cuidam de mim. Viver sozinha para alguém sem qualquer ligação com o mundo seria outra coisa - não sei como me sentiria nessa situação.

O livro é também uma ode à sua mãe, que veio da Escócia com dois anos. No poema final pede a Jussi Björling, o tenor de que ela tanto gostava, que a convide para dançar. De onde vem essa fantasia?

Eu também volto sempre a esse tenor. A minha mãe dizia que ele tinha lágrimas na voz. E quando visitei o pequeno museu dedicado a ele nos arredores de Estocolmo, vi que era conhecido por isso - mas nós não tínhamos acesso a essa informação, simplesmente era assim que o sentíamos. Aos cinco ou seis anos, a sua música enchia a casa. E eu via - como aparece no poema - que a minha mãe largava tudo, suspirava fundo, e parava para ouvir. Foi daí que surgiu essa fantasia. A sua tristeza ligava-a àquela música. Porque naquela idade, e onde vivíamos, não lhe era permitido sentir essas tristezas.

Não tinha tempo.

Exactamente. À medida que falo, apercebo-me de mais coisas, porque nunca o tinha pensado assim.

Diria que os abusos em criança foram a origem da sua falta de auto-confiança, se nem sequer conseguia torná-los conscientes?

É que não te lembras durante o dia do que aconteceu à noite. Vives a vida como os outros miúdos… mas eu estava sempre exausta na escola e não fazia ideia porquê. Nessas situações sentes-te diferente. Os outros parecem ser o que devias ser, mas não há forma de o conseguires. Sentes-te inferior. Uma das coisas mais tristes que resulta do abuso é essa sensação de não seres suficiente. Porque só te lembras do tempo entre acordar e adormecer. E é depois que as coisas acontecem. É complicado, porque amas os teus pais. Ele era mais difícil de perdoar. Ela estava naquele papel que muitas esposas acabam por assumir: não conseguem travá-lo nem ajudar os filhos. A minha mãe não nos protegeu. Não podia.

Começar a sua carreira aos 17 anos foi uma forma de escapar à escuridão?

Acho que sim. Era o mesmo que me acontecia com o desenho. Comecei aos cinco. Há um desenho maravilhoso que encontrei no sótão: uma menina parada ao vento, a pipa vai numa direção com o vento e o cabelo noutra. Só me apercebi desse detalhe depois dos 50 anos. Mas é um bom desenho. Também fazia vacas com úberes enormes, uma atrás da outra… com um índio sentado num tipi. Desde pequena que ficaram muito sofisticados. Depois veio o ukulele, que recebi aos 13: tocava dia e noite, debaixo do cobertor, na cama… Depois passei à guitarra e foi igual. Era um prazer perceber que tinha jeito. A minha voz só se desenvolveu aos 15 ou 16. Era doce, mas ainda não forte.

Cantava em casa com as suas irmãs?

A minha irmã mais velha era muito tímida, não participava. Mas a Mimi e eu sentávamo-nos juntas durante horas. Há muito poucas pessoas com quem a voz se sente assim tão confortável. Só conheci mais duas com quem isso aconteceu. Era algo orgânico, fluía. Depois, o meu pobre pai… queria que a família se juntasse a cantar cânticos de Natal. Mas não queríamos estar em modo “família feliz”. Fazíamos tudo para o evitar: cantar mal, ir preparar leite quente, o que fosse.

Suponho que viu A Complete Unknown, sobre Bob Dylan (e também sobre si).

Bem, o importante é lembrar que é um filme. Porque os meus amigos estavam a defender-me, a verificar os factos, e eu dizia: “É um filme”. Algumas coisas estão bem feitas, outras não. O único problema é que isto acontecia em plena luta pelos direitos civis. Era 1963, o país estava a explodir, e não há qualquer referência. Mas por outro lado, era assim quando estavas perto do Bob: não havia mais nada, o resto não importava. O que provavelmente explica por que não me sentia confortável lá.

Mas a autenticidade que transmitem em palco fascina as novas gerações, saturadas de impostura.

Nesse sentido tem sido muito útil, sim, ficam boquiabertos. Qualquer miúdo com um mínimo de sensibilidade musical fica maravilhado com a música do filme. Mas a minha visibilidade é enorme - chega a ser ridículo. Mas tudo bem, dá-me uma segunda vida entre os jovens. Adoro, se algum miúdo me quiser fazer perguntas, respondo com todo o gosto.

Quando era jovem estava muito envolvida com o Vietname, os direitos civis, Martin Luther King... Onde está a juventude nesta América de Trump?

Estamos em estado de choque. Muitos começam a perguntar-se se isto está mesmo a acontecer. Os maggots [em alusão aos apoiantes do Make America Great Again] fizeram como tinham planeado. Todos os dias há algo novo, repugnante, prejudicial, cruel. Estamos a tentar manter-nos firmes e ser decentes num tempo em que até a palavra “empatia” virou insulto - para eles significa pena, fraqueza. Eu trabalho com um grupo de apoio a famílias de deportados, já não têm o homem que trazia o sustento. As comunidades ficaram espalhadas: latinos que trabalham aqui na aldeia assistem à Fox News. “Vai ser difícil por um tempo, mas depois tudo ficará bem”, dizem. Eu distribuo cartões: “Conheça os seus direitos”. E quero trabalhar com advogados - são o nosso único muro de contenção. Ainda podem entrar nas prisões, visitar os deportados. E em breve vou partilhar no meu Facebook formas de ajudar, locais onde fazer voluntariado, para tirar as pessoas deste estado de paralisia. O problema é que o risco é alto... “Junta-te à marcha, se fores preso, ótimo”, dizíamos nos anos 60. Na prisão cantávamos e dávamos flores aos polícias. Hoje, se incentivares alguém a correr riscos, tens de ter cuidado: pode acabar num buraco de cimento para o resto da vida. É isso que está a acontecer. Não é que venha uma ditadura. Uma ditadura, com outro nome, já está em andamento.

Entrevista de Maricel Chavarría a Joan Baez, publicada a 23 de Maio no jornal La Vanguardia



"À artista e escritora Coco Fusco (Nova Iorque, 64 anos) não surpreende o silêncio da cultura norte-americana perante as políticas repressivas de Trump. “Os americanos não têm experiência com a censura. Embora pessoas como Robert De Niro, Bruce Springsteen ou Taylor Swift estejam a falar, a maioria dos meus colegas está naquela fase do ‘isso não é verdade’ ou ‘isso não me vai acontecer’. É lógico. Quando chega o sistema autoritário, se algo acontecer, pensamos sempre que será com os outros”, contou ontem a norte-americana de ascendência cubana, sentada num sofá numa das salas da retrospetiva que reúne 30 anos da sua obra e que hoje é inaugurada no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba).

As suas obras já passaram pela Bienal de Veneza, pela Bienal do Whitney em Nova Iorque ou pela de Sidney, e agora inaugura a sua primeira monografia em Espanha, mas Fusco sabe que, por muito reconhecimento internacional que receba, nada é garantido neste mundo. “Há artistas que acham que estão a salvo por terem uma grande exposição num grande museu ou por estarem a vender obras por um milhão. Para além de egoísta, é pouco racional. Nos anos 30 também havia muitos judeus ricos e o dinheiro não os protegeu”, acrescenta. A sua é uma atitude de resistência ativa que define até o nome da mostra, Aprendi a nadar em seco, uma metáfora sobre a sobrevivência face a tudo e que homenageia a primeira frase de Natação, um conto de 1957 do autor cubano Virgilio Piñera.

Comissariada pela diretora do Macba, Elvira Dyangani Ose, em colaboração com o Museu del Barrio de Nova Iorque, a exposição permanecerá até 11 de janeiro. A monografia reúne mais de 100 obras de uma carreira multidisciplinar em que Fusco cruza antropologia, desobediência ativa e denúncia política através da performance, vídeo-arte e ensaio. A sua obra é um megafone contra a censura política, a degradação dos valores democráticos, a perversão das políticas migratórias e o peso da alteridade na herança colonial. “Os seus 30 anos de investigação sobre aspetos como identidade, pátria ou comunidade, bem como o apoio à literatura, poesia e cinema cubano reprimidos, são fundamentais não só para compreender Cuba, mas para prestar atenção ao nosso presente. A sua obra é um remédio necessário para um momento tão duro como o que vivemos”, resume Dyangani Ose sobre a relevância da exposição.

Se Fusco diz estar vacinada contra o espanto face às políticas autoritárias, é porque a repressão definiu, literalmente, a sua vida. A mãe, uma cubana que concluiu os estudos de Medicina nos EUA nos anos 50 e não quis voltar após a Revolução, engravidou dela para conseguir os papéis quando o visto expirou. “Tenho uma foto com um mês a chegar a Havana nos braços da minha mãe. O Governo dos EUA disse-lhe que tinha de regressar a Cuba quando eu nascesse para formalizar os novos papéis. A minha mãe deu à luz, voltou à ilha, deixou-me nos braços da minha avó e foi diretamente para a fila para pedir o regresso”, explica.

A artista passou a adolescência a lidar com a burocracia migratória e viveu a explosão cubana em Miami, onde o tio se instalou com os oito filhos e onde passava parte dos verões. Mas na universidade quis conhecer Cuba. “Precisava de me confrontar com essas histórias de horror”. Fê-lo em 1985, graças aos voos de reunificação familiar e ao vínculo com três artistas cubanos que tinham exposto obras em Nova Iorque. “Havia coisas chocantes, claro. Na minha primeira visita roubaram-me o passaporte e nalguns restaurantes não nos deixavam entrar por causa da roupa, mas liguei-me ao sentido de humor e à forma como negociam com a realidade. Voltei e voltei.”

Nessa viagem sedimentou-se a suspeita em relação ao relato triunfal da Revolução. “Nas três primeiras décadas, a maioria dos cineastas fazia muitos trabalhos a celebrar os seus feitos, eu identifico-me mais com os intelectuais e artistas que aplicam um olhar crítico ao processo”, esclarece.

A exposição do Macba abre com A praça vazia (2012), um vídeo inspirado nos protestos que encheram as praças da Primavera Árabe de 2011, onde se vê Fusco, sozinha e minúscula, numa desolada Praça da Revolução de Havana, a questionar-se sobre porque é que esse espaço se tornou num anfiteatro inóspito pisado apenas por turistas que tiram selfies. “Essa praça foi o teatro político de Fidel, mas o tempo degradou-a. Agora só se enche quando há uma celebração oficial ou um desfile militar. As pessoas estão tão mal que, se aparecem, é porque lhes oferecem uma t-shirt ou uma sandes”, comenta a artista.

Décadas de dissidência

Na mostra, a dissidência é explorada por décadas, desde A confissão (2015), sobre a detenção e confissão forçada, em 1971, do poeta contra-revolucionário Heberto Padilla, até ao projeto em colaboração com outros artistas para reivindicar Luis Manuel Otero, o preso político mais famoso de Cuba.

A carreira de Fusco, definida pela “aspiração partilhada” com outras vozes e artistas, pode observar-se na colaboração com Nao Bustamante e a sua visão das fantasias sexuais coloniais na figura das jineteras cubanas (Stuff, 1996–1999), ou na série fotográfica Paquita e Chata (1996), a sua versão viva das bonecas mexicanas Lupita, usadas para representar prostitutas. Essa representação do outro marcou também a sua relação com Espanha. Em 1992, durante dois anos, representou com Guillermo Gómez-Peña a famosa performance Casal na jaula: dois ameríndios visitam o Ocidente, onde ambos se disfarçavam de ameríndios e se apresentavam como uma curiosidade exótica dentro de uma jaula. Embora a jaula esteja agora no MoMA, esta sátira sobre o exotismo e o primitivismo não foi compreendida na altura. “Naquela época celebrava-se o multiculturalismo de forma muito folclórica, parecia que cada um tinha de representar a sua cultura quase como num anúncio da Benetton. Nós quisemos denunciar a colonização e a história dos zoológicos humanos, mas o público não percebeu”, explica.

A sua missão de denúncia não se expressa apenas na arte e nos textos. Desde Brooklyn, Fusco continua a intermediar entre migrantes que procuram asilo político. “No meu bairro há muitos centros de acolhimento e eu trabalho como voluntária como intérprete. O medo do migrante foi instrumentalizado. Eu sei o que eles fazem para sobreviver. E garanto-te que nenhum branco americano vai fazer o trabalho que faz um imigrante recém-chegado”.

Noellia Ramirez | El País 23 de Maio de 2025

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Tudo Está Verdadeiramente Errado

"Tive de desistir da necessidade de acreditar
Que alguém pudesse vir e salvar-me
Tudo está errado, verdadeiramente errado"



Everything Is Wrong | Interpol | 2014

São Pepe Mujica - Padroeiro dos Políticos

 Para ilustrar com texto estas páginas de jornais de todo o mundo sobre a morte de Pepe Mujica (13 de maio), e que, diga-se, não teve, infelizmente, grande eco em Portugal, escolhi o texto de John Carlin intitulado "Habemus Pepem!" publicado no jornal espanhol La Vanguardia:

"Por que não um santo para os ateus? Por que não um papa secular? Tenho o candidato: Pepe Mujica, um homem que demonstrou que se pode ser cristão sem acreditar em Deus, que se pode viver uma vida mais de acordo com a mensagem de Cristo do que muitos - quase todos, atrever-me-ia a dizer – daqueles que o louvam todos os domingos diante de um altar.

Bom, é demasiado tarde para que Pepe seja Papa, já que acabou de falecer. Mas o ex-presidente do Uruguai tem os atributos para ser declarado um santo católico, salvo o detalhe de que não partilhou o mistério da fé santa. Não transformou água em vinho, que se saiba, nem conseguiu a ressurreição de nenhum morto, mas realizou milagres suficientes para ser nomeado santo honorário dos políticos.

O primeiro representaria uma enorme exceção à regra: nunca permitiu que o poder lhe subisse à cabeça. Não considerou que estivesse acima de qualquer outro ser humano, nem sequer de qualquer outro ser terrenal. Quando lhe perguntaram uma vez como gostaria de ser lembrado, respondeu: “Não me preocupa. Pensamos que somos importantes… não somos nem um grão de areia na magnitude do universo. Não sei por que razão haveríamos de ser mais importantes do que as formigas”.

O segundo milagre: nunca caiu na tentação, porque simplesmente não lhe interessava, de transformar o poder em riqueza pessoal. Longe de viver numa mansão com paredes de ouro ou de aceitar o presente de um Boeing 747 de um xeque do Catar, viveu até à sua morte, e mesmo quando era presidente, numa espécie de cabana e conduziu não um Mercedes, mas um decrépito Volkswagen Carocha.

Visitei-o na sua cabana – bom, chacra – há um ano, no campo, a meia hora de Montevideu. Cheguei à porta de entrada por um caminho de terra que, devido às chuvas, se transformou num lamaçal. O interior era escuro, os móveis pareciam mais velhos do que ele, aos seus 88 anos, e não havia espaço para uma sala de jantar nem para uma sala de estar. Recebeu-me, como a todos, na cozinha; o seu trono, uma pequena cadeira de madeira.

Como corresponde ao currículo de todo bom santo, tinha sofrido: quase quinze anos como preso político, sete deles em solitária, a mais absoluta das solitárias, sem sequer acesso a livros. Do sofrimento não extraiu rancor, mas sim um modo de viver com decência e generosidade. Aprendeu a riqueza da humildade, ou como ele a chamava: “o estoicismo”.

“É viver leve de bagagem, tentar cultivar uma sobriedade feliz, aplicar aquele velho princípio: ‘nada em demasia’… no fundo, é uma questão de liberdade, porque se estou submetido à necessidade, não sou livre”.

Não foi a primeira vez que pensei no bem que faria a muitos políticos passar algum tempo presos para refletirem sobre o que é importante na vida e possível na política. Mujica disse-me que, na solidão dos seus pensamentos, arrependeu-se das “loucuras” da sua juventude, loucuras do ego que outros políticos nunca abandonam. Tal como Nelson Mandela, aprendeu que o perfeito é inimigo do bom e que não devemos deixar-nos contaminar pela vaidade do poder.

Pensei também na injustiça da vida, no facto de que pessoas como Mujica e Mandela passaram, entre os dois, mais de 40 anos na prisão, enquanto que um par de personagens que me vêm à mente estão hoje em liberdade quando deveriam estar a cumprir prisão perpétua por corrupção, assédio sexual e insurreição armada ou por múltiplos assassinatos e sequestros de crianças, entre milhares de outros crimes.

Claro, nestes dois casos, nunca houve nada a fazer. Com eles, a minha regra das vantagens filosóficas do encarceramento cai por terra. Ou nasceram maus ou as circunstâncias da vida os fizeram maus. Hitler esteve preso (apenas nove meses, é verdade) e saiu mais determinado do que nunca a vingar-se da humanidade.

Mas o exemplo serve, quero acreditar, para reforçar o argumento a favor desta espécie de canonização que proponho para Mujica. Foi posto à prova, in extremis, e emergiu não cheio de ódio, mas de amor. E não um amor ao estilo do convertido católico J.D. Vance, que entende a mensagem cristã em termos relativos – valorizar mais a tua família e os teus vizinhos do que os desconhecidos – mas sim como a verdadeira mensagem revolucionária (o outro é fácil): valorizar e amar todos por igual. O novo Papa, que Deus o abençoe, criticou a interpretação dos evangelhos feita pelo seu compatriota Vance, o vice-presidente dos Estados Unidos. Disse que ele está errado, e em grande.

Talvez o Papa norte-americano não esteja tão de acordo com um dos principais motivos que eu proporia para que Mujica fosse rebatizado como São Pepe. Ao contrário de todas as outras personagens que a Igreja nomeou como santos, Mujica amou o próximo e viveu com humildade sem qualquer incentivo. Ele foi bom por ser bom, e ponto final. Sem antecipar recompensa nem no Céu nem na Terra. Pelo contrário, até desafiou a Igreja na vez em que falei com ele na sua cozinha.

“Eu penso – disse-me – que as religiões monoteístas fizeram um mal do caralho à humanidade. Geraram um fanatismo e uma intolerância profundas que se estendem ao mundo político”.

Isso, suponho, é o que se chama um pecado. Mas não deslegitima, creio eu, o direito que Mujica teria de dizer que viveu uma vida cristã no seu sentido mais essencial. Um Deus cristão consequente e justo (perdoem-me a heresia) poderia perfeitamente dar mais mérito a uma boa pessoa que não acredita na salvação eterna do que a uma boa pessoa que acredita. Ou estarei enganado?

Questões teológicas à parte, chamem-lhe santo ou chamem-lhe o que quiserem, Mujica oferece um exemplo a seguir raramente visto. Ele disse uma vez: “Dediquei-me a mudar o mundo e não mudei um caralho”. Enganou-se. Alguma coisa mudou – pelo simples facto de ter sido como foi. Deixou-nos a mensagem de que se um líder como ele pôde existir, podem voltar a existir mais. De que se alguém aspira a governar, não tem de ser um pobre narcisista cuja motivação consiste, em primeiro lugar, em alimentar a sua frágil vaidade. Mujica foi, acima de tudo, um homem seguro de si mesmo, um papa laico firme nas suas convicções morais, rico na pobreza, mais consciente da sua insignificância na magnitude do universo do que do seu imenso valor. 

(Nome do Artigo: ¡Habemus Pepem! Publicação: La Vanguardia Autor: John Carlin | 18 de Maio de 2025)









Frases recolhidas no artigo "Sou um velho louco" da Folha de São Paulo de 17 de Maio de 2025:

“O único caminho para a libertação nacional e a revolução socialista é a luta armada” —aos 35 anos, em 1967, quando era Facundo, comandante dos Tupamaros.

“A coisa mais linda é entrar num banco com um Colt 45: todo mundo te respeita.”

“Não tenho vocação para herói.

‘Aprendemos que a luta do tudo ou nada é o melhor caminho para não mudar nada. A maior parte dos países que estão socialmente à frente tem uma vida política serena, de pouca épica, poucos heróis, poucos vilões’, afirmou Mujica, em 2010, ao tomar posse da Presidência do Uruguai

Na verdade, peguei vários anos de cana porque me apanharam; me faltou velocidade.”

“Não seria quem sou se não fosse a solidão da cela. Seria mais fútil, mais frívolo, mais superficial.”

“O problema é que o mundo é dirigido por pessoas velhas que se esquecem de como eram quando jovens.”

“Aprendemos que a luta do tudo ou nada é o melhor caminho para não mudar nada. A maior parte dos países que estão socialmente à frente tem uma vida política serena, de pouca épica, poucos heróis, poucos vilões” —aos 74, em 2010, ao tomar posse na Presidência.

“Descobrimos que governar é bem mais difícil do que pensávamos. Que os recursos públicos são finitos e as demandas sociais infinitas.

Bruna Barros

Que a burocracia tem vida própria e a economia tem regras ingratas, mas obrigatórias. Tivemos de aprender, com enorme dor e vergonha, que nem todos do nosso lado são imunes à corrupção.”

“Deveria eleger-se um comandante dos bombeiros para presidente; sua função mais importante é apagar incêndios.”

“Fui uma vez à Alemanha e me puseram num Mercedes-benz. Só a porta pesava uns 3.000 quilos. Botaram 40 motocicletas na frente e outras 40 atrás. Fiquei com vergonha. Ficamos na casa para presidentes. Tinha quatro andares. Para tomar um chá você tinha de andar três quarteirões. Era totalmente inútil. Deviam transformá-la numa escola.”

“A sobriedade é uma forma de viver, uma luta para manter a liberdade. Se deixo que as necessidades se multipliquem ao infinito, tenho que viver para cobrir as necessidades e não sobra tempo para fazer o que me motiva. Pobre é quem precisa muito.”

“O homem deve superar o capitalismo, mas os caminhos que tentou foram de uma ingenuidade espantosa.”

“O capitalismo não é a solução. Há que se buscar outra coisa. A América Latina não tem soluções, a América Latina procura. Pertencemos a essa busca.”

“Nada de colocar o Estado como patrão, porque já vimos esse filme. E nada de passar para o lado do capitalismo. Temos de achar outro caminho para chegar ao socialismo.”

“A sífilis é evitável; o capitalismo por enquanto não.”

“Confunde-se desenvolvimento com o fetiche de acumular coisas.”

“Não viemos ao mundo para desenvolver a economia, mas para sermos felizes.”

“Os ricos não querem mudar nada, e os pobres não podem.”

“O que estou fazendo? Reinventando o capitalismo, mas não renuncio ao socialismo.”

“A sociedade uruguaia protegeu os funcionários públicos muito mais que os trabalhadores privados. Na crise de 2002 e 2003, quase 300 mil perderam o emprego e 200 mil tiveram redução de salário. Todos trabalhadores privados. Todos.”

“Não quero nos chamar de latino-americanos porque não descendemos só de latinos. Somos descendentes de negros, povos indígenas, asiáticos. Somos descendentes de todos os pobres e perseguidos do mundo que vieram para a América sonhando com um futuro.”

“A religião é uma forma de consolo, não de transformação social.”

“Sou um velho meio louco” — aos 89 anos, em novembro do ano passado, em sua última entrevista.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Legislativas 2025 - Tudo Isto é Triste, Tudo Isto é Facho

 Na sequência da descoberta que o primeiro-ministro tinha uma empresa para ser avançado por debaixo da mesa, fomos para novas eleições, porque o homem é como o outro - para ser mais honesto do que ele é preciso nascer duas vezes - e não quis esclarecer nada e vai daí, cai outro vez o governo e tivemos novamente eleições. 

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Esperava-se que tudo ficasse na mesma e, na prática, foi o que aconteceu, mas, o grave, é a direita, sozinha, e sem o PS poder rever a Constituição. O que se calhar ninguém estaria à espera é que - depois dos roubos das malas, dos nazis, da pedofilia e o diabo-a-sete - que o partido ilegal tivesse quase tantos votos como o PS, que caiu bastante; e que o Bloco de Esquerda ficasse sem bancada parlamentar, à custa da movimentação dos eleitores para o LIVRE que, diga-se, não me convence. Sim, o Rui Tavares é um grande historiador e escritor e parlamentar, tem boas ideias, mas o partido ainda vive muito - à semelhança do CH - à custa dele. E ainda há coisas ali que me deixam de pé atrás, sem falar naquela ideias de gastar à toa o orçamento do Estado em armas. O LIVRE é uma espécie de novo PS, onde, diga-se, o próprio Rui Tavares já esteve, como esteve no Bloco de Esquerda. 

Passei a noite eleitoral à conversa com três mulheres, duas amigas, e a ex-colega de trabalho. As três mandaram mensagem a manifestar-me a sua estupefação. 

À minha piada "20% das mulheres andam a deitar-se com fachos", uma resposta improvável: "foi o meu caso" e, quando descobriu, passou quatro meses a dormir no sofá e depois pô-lo a andar.

Outra, filha de pai espanhol, diz-me que não deve ser difícil obter a nacionalidade espanhola, que se for o caso casamos e eu também obtenho também a nacionalidade! 

Eu decidi deixar de seguir toda a gente que segue a conta do quarto pastorinho de Fátima e a partir de agora, sempre que vir alguém a partilhar merdas do partido ilegal será imediatamente bloqueado. 

É assustador pensar que vivemos rodeados de fascistas - "ai não lhes chamem isso, coitadinhos, são só revoltados" - pois, mas é isso que acabam por ser ao votar no partido racista, xenófobo e misógino. Uma em cada quatro pessoas que foi votar, votou no CH, é assustado tamanha ignorância. 

Ficou claro - escrevi - que, a maioria dos portugueses, quer trabalhar mais horas e receber menos; quer ter ainda mais dificuldades para comprar ou arrendar casa; que a Saúde Pública fique ainda mais doente e a educação com menos professores; que o país é para eucaliptar e é preciso meter as mulheres na cozinha e que as touradas são cultura. 


Como em toda a Europa, com a feliz exceção dos nossos vizinhos espanhóis, o vírus da ignorância espalha-se. Chegou mais tarde, mas acabou por chegar a Portugal. 

Apesar de todas as contingências que estou a viver, saí de casa para ir votar. Acordei às cinco da manhã da noite eleitoral com a revoltante constatação: o meu voto foi para o lixo e não serviu para eleger ninguém. No fundo valeu tanto como se tivesse ficado em casa. 

Vi depois também a declaração da candidata a deputada em quem votei, socióloga de formação: 

"Sei também de forma muito triste, que as pessoas que estão a celebrar a redução da bancada parlamentar do Bloco de Esquerda, são aquelas que mais irão precisar de nós no futuro.

Não é segredo para quem por aqui passa e me lê, que, à semelhança de Sócrates, não me revejo minimamente na democracia. Mas é mais revoltante ainda quando, depois de ter visto os jornalistas a levar ao colo o quarto pastorinho de Fátima, vermos que os nossos concidadãos, são uma cambada de idiotas a votar em quem os irá esmagar. Mas é lidar, talvez o idiota seja eu, e a vida dos portugueses vá ficar muito melhor. Pelo menos para a Spinumviva já ficou. 

domingo, 18 de maio de 2025

O Fascismo Tira a Tosse

"Cada vez mais médicos fumam Camel".

Este é um cartaz de 1946 que vendia a ideia que fumar fazia bem à saúde, afinal, até os médicos os fumavam. Hoje todos sabemos que fumar mata. Infelizmente, muitos, esqueceram-se que o fascismo também mata.



Não vi nenhum debate, não perdi tempo com os tempos de antena. Não me deixo seduzir por sorrisos cínicos, por candidatos com a voz colocada junto do cantor popular plagiador, ou com implantes capilares e cabelos imaculadamente pintados para esconder as brancas. Não me iludo com promessas bacocas. Voto de forma útil naqueles que me representam. 

A Receção Vem Aí


No final do ano passado o governador do banco de Portugal já avisado  que com o rumo que este governo está a levar íamos voltar aos défices. Agora, ainda por cima o Benfica não foi campeão. Estamos mesmo fodidos. A receção vem aí. Mais um motivo para hoje votarem bem. 

quarta-feira, 14 de maio de 2025

André: o Diabo Está Nos Detalhes

Chego a casa do treino e tenho uma mensagem da minha colega de trabalho:
- Então o Ventura sentiu-se mal?
Bom, eu não sabia de nada, mas fui logo ao céu (Bluesky) para tentar saber o que se passou. E comentei logo sem me ter inteirado dos detalhes, porque a cartilha da extrema-direita é sempre a mesma, seja com Trump ou Bolsonaro, e já se esperava que acontecesse o mesmo com Ventura. 

Falou-se em ataque cardíaco mas o diagnóstico acabou por ser azia! "Uma doença que está para o enfarte como os rateres da mota estão para os tiroteios" (Jovem Conservador de Direita)

Eu já estive internado quatro vezes em dois hospitais diferentes. Nunca até hoje vi um doente ser internado num hospital público com relógio de pulso e depois acordar de camisa! Se o doente não vai prevenido com pijama de casa, o hospital fornece dos seus.
 
André: se é para fazer uma encenação de vítimazinha estilo facada de Bolsoanro, então faz a coisa a sério, de forma convincente, porque este teatro que fizeste num 13 de Maio saiu quase pior que a encenação que aconteceu na Cova da Iria em 1917. 

É que o Diabo está nos detalhes.



Conversas Improváveis (86) - Mãe-de-Sete



No trabalho, um dos colegas vira-se para a colega que está sentado ao meu lado: 

"A tua mãe..." 

Ao mesmo tempo, o outro colega ouve um programa de finanças pessoais, em que uma mulher questiona o apresentador e autor do programa sobre a forma como tem aplicado o seu dinheiro, e usa uma linguagem cheia de anglicismos modernaços  

No segundo seguinte à pergunta do colega "A tua mãe..." eu interpelo:

- A tua mãe-de-sete? 

(sou muito sério e saturnino - culpem o mapa astral - há que confessar que, às vezes, ainda que muito raramente, sou tão engraçado!)

sábado, 10 de maio de 2025

Daqui por Quatro Anos um Carro a Gasóleo Não Vale Nada! (2)

"Hoje é muito evidente que quem comprar um carro a diesel muito provavelmente daqui a quatro ou cinco anos não vai ter grande valor na sua troca". 

(Matos Fernandes, Ministro do Ambiente, Janeiro/2019)


"Em abril, abastecer um carro a gasóleo ficava mais barato 49 cêntimos por cada 100 quilómetros percorridos (...) Mas há mais: é que os mesmos 100 quilómetros feitos por um carro a gasóleo vão sair mais barato 49 cêntimos, num total de 7,40 euros. Os dados divulgados pela UVE mostram que o custo do quilowatt/hora está a subir desde janeiro.

Pacifistas do PCP

É só Esteves anunciar o corte de feriados para financiar os milhões gastos em armas que os portugueses viram logo pacifistas do PCP num instantinho.


 

Esperávamos o Apocalipse Mas Foi Apenas a Luz que Foi Abaixo

 Mais um texto excelente sobre a nossa sociedade atual publicado no El País no fim de semana passado e que aqui vou deixar.

"Vivíamos como se fosse realmente o fim da história. Como se a prosperidade e a abundância fossem um facto viral incontestável, capaz de garantir o fim dos grandes conflitos, da luta pela sobrevivência. Íamos acabar com a fome, com o cancro e com a pobreza. A guerra e os regimes autoritários eram apenas uma espécie em vias de extinção. Era o ponto final da nossa evolução ideológica. A democracia liberal ocidental era a forma definitiva de governo. Depois vieram os atentados, a crise financeira e os furacões; a pandemia, os genocídios, a crise energética e os vulcões em erupção. Vimos o assalto ao Capitólio em tempo real pela CNN e pelas stories que os próprios assaltantes publicaram no Twitter, Instagram e TikTok. O fim da história tinha-se transformado no fim do mundo — em modo paródia. Parafraseando o verso mais famoso de T. S. Eliot: É assim que o mundo acaba. / É assim que o mundo acaba. / É assim que o mundo acaba. / Não com uma explosão, mas com um meme.

Começámos a fantasiar com um final abrupto. A comprar latas de conserva e comprimidos purificadores de água, ligaduras com antibiótico, canivetes suíços e lanternas LED. Queríamos aprender a fazer coisas com as mãos, sem usar a internet. Se tudo corresse mal, iríamos para a casa da aldeia cultivar uma horta com um cão, três galinhas e uma vaca. Os preppers (preparacionistas) recomendavam comprar uma espingarda, uma antena e um gerador. O apagão apanhou-nos todos desprevenidos, a escrever e-mails, comprar fraldas, esperar aviões e reciclar garrafas de plástico. Acabámos a ouvir o rádio a pilhas com os vizinhos numa praça ou varanda do bairro. Nas horas seguintes, a incerteza dissolveu-se no puro prazer de estarmos juntos, desligados do telefone, suspensos num estado colectivo de alegria e desamparo. Os sinais do apocalipse raramente são tão confusos. Esperávamos o apocalipse, mas apenas foi abaixo a luz.

Os sistemas que nos permitem aceder a água potável, eliminar águas residuais, comunicar instantaneamente com qualquer pessoa ou deslocar-nos rapidamente para qualquer lugar são invisíveis — até falharem. Quando falham, a crise deixa de ter ambiguidades. Quando se corta a eletricidade, deixamos de funcionar. A distopia é mais intuitiva e, durante muito tempo, manifesta-se sobretudo nas contradições. Por exemplo: a economia e a população crescem, mas o planeta está a desaparecer. As empresas mais lucrativas e com mais futuro são as que menos pessoas empregam. Porque é que a Apple tem menos de 200.000 trabalhadores, quando o El Corte Inglés emprega mais de 80.000, e paga menos impostos do que uma padaria de bairro? Vivemos saturados de notícias, mas cada vez é mais difícil saber o que está a acontecer. Os líderes políticos são as principais fontes de desinformação. Conseguimos editar ADN e prever a estrutura das proteínas, mas em países como os Estados Unidos, a esperança média de vida está a diminuir.

Geram-se mais dados do que nunca, mas o poder tornou-se completamente opaco. A inteligência artificial é intangível e infinita, mas trouxe-nos de volta formas de exploração vitorianas. Vivemos sob um regime de controlo e vigilância imposto pelos mesmos sistemas que prometiam salvar-nos. Entre os mais pobres, muitos votam em candidatos que prometeram acabar com o contrato social. Vamos conquistar Marte num futuro que fantasia com o passado mais retrógrado e imperial. É a vida de sempre, mas nada parece como antes. A resistência soa exagerada. Somos infinitamente adaptáveis — sabemos viver com a inquietação.

O apocalipse é um acontecimento revolucionário que muda tudo num instante. A vida que sobrevive tem de se reinventar do zero. Um regresso às origens, onde já não existe contrato social. A distopia é um processo muito mais subtil. É uma utopia que se torce até se tornar no oposto daquilo que afirma representar. O apocalipse é um acidente, um castigo divino, ou pelo menos a consequência lógica de um deteriorar irresponsável no qual todos participámos. A distopia é um exercício de destruição deliberada que se faz passar por degradação natural — e que pode passar despercebida se não estivermos atentos. 

A literatura distópica oferece-nos ferramentas para interpretar os sinais, e anticorpos para resistir à lógica implacável das suas engrenagens. Graças a George Orwell e Aldous Huxley, Philip K. Dick, Franz Kafka e Margaret Atwood, reconhecemos os ingredientes com que se constrói uma nova era de opressão.

Os sinais são inequívocos, uma vez identificado o padrão. Reconhecemos em 1984 as formas de controlo dos corpos através da vigilância permanente. A eficácia política do panóptico, cuja genialidade é fazer com que o povo vigie o próprio povo, interiorizando a sua própria repressão codificada como educação, ambição e outras expressões de estatuto numa hierarquia que todos querem escalar. Mas também as formas mais subtis de controlo do pensamento — através da manipulação da linguagem, da reescrita constante da história, do uso oportunista da nostalgia para justificar a violência. Quem controla o passado, controla o futuro. Entendemos a importância dos nomes e o ato de nomear como forma de resistência íntima. Como disse Ursula K. Le Guin ao receber a Medalha de Contribuição Distinta às Letras Americanas: “Precisamos de escritores que se lembrem da liberdade.”

Admirável Mundo Novo identifica o entretenimento, o consumo e outras iterações compulsivas típicas do nosso tempo como partes de um sistema de automedicação. Para quê amedrontar a população, se é tão fácil distraí-la com séries da Netflix, jogos de futebol e debates televisivos sobre género e transversalidade? Reconhecemo-nos nessas fórmulas massivas mas subtis de consolo — através do prazer imediato, do debate inconsequente, do sexo desligado e da prática de rituais sem comunidade. Nesse sentido, não há mundo mais feliz do que o estado de confinamento, quando as plataformas digitais expandiram os seus domínios sobre os escombros do colapso, estabelecendo os limites literais do possível em todos os aspectos da nossa vida: social, laboral, emocional, intelectual. Como explica Hannah Arendt em A Condição Humana, o espaço público é o espaço da aparição.

Apóstolo da paranoia, Philip K. Dick antecipou a pós-verdade em todos os seus contos, descrevendo a tecnologia e os meios de comunicação como veículos para impor realidades paralelas sobre a percepção humana. Propôs a depressão e a loucura como os nossos únicos anticorpos num mundo interpretado e corporativo de consciências artificiais, antes de Mark Fisher as classificar como sintomas estruturais do capitalismo tardio. The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), de Margaret Atwood, identifica o ataque aos direitos reprodutivos e sexuais como o canário na mina de uma regressão iminente. Também nos lembra que até as redes mais pequenas são actos políticos capazes de projectar a liberdade para lá dos seus limites. O oposto do totalitarismo não é a sobrevivência, mas a solidariedade.

Todos os relatos distópicos alertam para a sua temporalidade enganadora. “Disseram que seria temporário, mas nada muda de repente”, diz Offred, a protagonista do romance de Atwood, para explicar como deixaram que a democracia colapsasse sem oferecer resistência. É o mesmo processo de adaptação que descreve Hannah Arendt — uma mistura de indiferença calculada, baseada em princípios de cortesia e conforto. Tudo parece avançar gradualmente, num processo de mudanças tão incrementais que se infiltram silenciosamente no quotidiano, reconfigurando a realidade enquanto fazemos maratonas de Netflix e debatemos sobre nadadoras trans ou a saudação nazi de Elon Musk. A continuidade e acessibilidade das rotinas superficiais tranquilizam-nos até que, subitamente, há uma aceleração vertiginosa e tudo parece desencadear-se de uma vez. Parece um acontecimento, mas é a conclusão lógica de um processo muito anterior.

Os grandes apagões funcionam como elemento simbólico, mas também nos ajudam a diagnosticar — porque revelam algo sobre as ordens sociais. Dizem que o famoso apagão de Nova Iorque, no verão de 1977, originou saques generalizados que expuseram as tensões sociais de uma cidade marcada pelo desemprego e pela crise económica. Como muitos notaram esta semana, não foi isso que aconteceu aqui. Seguindo a linha mediática das semanas anteriores, pareceria que ficámos sem luz nas piores circunstâncias: ausência de futuro, de valores, de sentido; num estado de incerteza e desamparo. Um mundo onde a tecnologia nos ultrapassa, a política nos satura, a comunidade nos enfurece. Quando mais ansiávamos por uma explosão. E, no entanto, Espanha conseguiu ultrapassar o apocalipse sem lutas, pilhagens ou acidentes de viação — sentados à volta de um rádio que nunca parou de emitir. Nas suas Teses sobre a Filosofia da História, Walter Benjamin diz que cada segundo é “a pequena porta no tempo por onde pode entrar o Messias”. Há muita luz nesta escuridão.

"Luzes para entender as nossas fanasias distópicas" | Marta Peirano | 4 de Maio 2024 | El País

quinta-feira, 8 de maio de 2025

A Minha Frase do Dia (3) - Os Estranhos

 


A minha geração, que cresceu na rua a jogar à bola e à malha, e a última ainda a fazer um sem número de coisas na rua, cresceu também a ouvir os pais a dizer-lhes para para nunca falarem com estranhos. 

Hoje, os pais, que são a minha geração, tiram fotografias dos filhos de três e quatro anos e metem em todos os cantos da internet para todos os estranhos do mundo verem, colocando-os eles mesmos em perigo quando deveria ser eles os primeiros a querer protegê-los.