Deixo aqui um artigo publicado ontem no El País sobre a filosofia do Heavy Metal. E, já agora, no fim, e porque vem a propósito, adicionei um documentário que já tinha visto no Youtube há uns tempos, sobre o porquê dos metaleiros serem das pessoas mais felizes e pacíficas e estar cientificamente provado que o heavy metal tem um impacto positivo na saúde mental.
"As chaves da filosofia metaleira: cepticismo, intensidade e honestidade brutal
É uma rocha a que agarrar num mar de disparates. “É mais do que música, é uma forma de olhar o mundo com lucidez e rebeldia, de encontrar sentido e irmandade no meio do caos”, reflecte por e-mail David Alayon, consultor e responsável pelo podcast Heavy Mental juntamente com o humorista Miguel Miguel e o engenheiro Javier Recuenco. “A forma como um metaleiro olha o mundo parte de uma mistura de cepticismo, intensidade e honestidade brutal. Não se trata de negar a escuridão, mas de a encarar de frente, transformá-la em força e converter a dor, a raiva ou o desespero em algo criativo e colectivo.”
Alguns relacionam as letras do metal com o pensamento existencialista. A jornalista Flor Guzzanti escreve na revista Rock-Art que aquilo que Black Sabbath ou Judas Priest exprimem através da distorção não é assim tão diferente do que Camus e Sartre escreveram: o confronto com o absurdo, a alienação e a liberdade. Descartar o metal é descartar a filosofia feita de som. Alayon concorda. “Partilhamos uma visão existencialista, aceitando que o mundo é duro e que a única coisa autêntica é manter-te fiel a ti mesmo e aos teus.” E vem à cabeça a voz do recentemente falecido Ozzy Osbourne a cantar Electric Funeral, que incita a não nos deixarmos prender numa cela em chamas.
Para Andrés Carmona, autor de Filosofía y heavy metal , o universo sónico da cultura heavy (na sua vertente proto-heavy, thrash, death, grunge, e também hard rock - embora a definição e os limites deixemos para os puristas) é uma boa ferramenta de aprendizagem filosófica. “Ainda que não nos apercebamos, andamos o dia todo a pensar no bom, no justo, no belo. Não podemos não filosofar, e a música ajuda”, explica por telefone. Carmona, professor de Filosofia num liceu de Ciudad Real, usa a canção Gaia, dos Mägo de Oz, para apresentar aos alunos Lynn Margulis e a sua teoria sobre o peso da cooperação na evolução, e explica o conceito de liberdade utilizando Ama, ama y ensancha el alma, uma canção dos Extremoduro que contém versos como “hay que dejar el camino social alquitranado / prefiero ser un indio que un importante abogado” (do poeta Manolo Chinato).
Num artigo da revista Crawdaddy, William Burroughs escreveu que o rock era uma tentativa de sair deste universo morto e sem alma e devolver magia ao mundo. Se assim é, a sua vertente mais heavy procura uma catarse colectiva através da experiência física. A música tem o poder de transformar e, no caso do heavy, “algumas bandas actuam como uma unidade de ressonância que move o público, que quer ser chamado em busca de contacto e transformação junto com outras pessoas”, segundo Hartmut Rosa. Porque, enquanto o presente e o futuro se dirigem para as abstrações do digital, na cultura heavy o ritual físico é fundamental. Há a viagem, o vestuário, o encontro prévio, a explosão da música ao vivo vivida em comunidade e o seu caloroso reencontro quando voltamos a ouvir essas mesmas canções a sós. “Num concerto combinam-se sentimentos, emoções, cantar um tema com outras pessoas ao mesmo tempo. E há também o disco, em vinil ou em CD, a importância das capas, das letras… Não gosto de listas de reprodução”, ri-se o sociólogo alemão.
Na parafernália heavy metal há luz e trevas, há anjos e demónios, infernos e céus, fadas e monstros - uma encenação alimentada por uma imaginação que joga com certa ironia romântica, que leva as coisas meio a brincar, meio a sério. Mas há uma certeza: seja na Alemanha, em Espanha, na Noruega, no Japão, no Irão, na Argentina ou na Austrália, para a irmandade metaleira a música é fundamental. Segundo um estudo do psicólogo Nico Rose — autor de Hard, heavy & happy, um best-seller na Alemanha -, quase 40% dos 6 mil inquiridos concordaram que o metal os afastou de pensamentos negros, com a sensação de que “lhes tinha salvo a vida pelo menos uma vez”.
O embrião do heavy metal está em Birmingham, um dos epicentros da revolução industrial inglesa (e com uma riquíssima tradição musical nos anos sessenta do século passado). Os seus maiores representantes no início dos anos setenta - Black Sabbath, com Ozzy Osbourne à cabeça, ou Judas Priest - vinham da classe trabalhadora ou eram quase marginalizados. E outros grupos, como Saxon, Iron Maiden, Slayer, Anthrax ou Metallica, também. Talvez por isso as suas canções sejam hinos contra a ordem social, o controlo ou a falta de liberdade, e os seus seguidores constituam uma imensa “comunidade de marginalizados voluntários que encontram nos riffs, nos concertos e na estética do metal uma forma de pertença sem submissão. Ninguém te exige que acredites em nada, apenas que sintas e resistas”, segundo Alayon.
Mas será que essa comunidade aceita todas as pessoas por igual? Há quem considere que o universo heavy é sexista e heteronormativo até ao paroxismo. No entanto, faz mais de 25 anos que Rob Halford, vocalista dos Judas Priest — considerado o Deus do Metal — se assumiu abertamente como gay, e figuras como Girlschool, Thundermother, Doro Pesch ou Arch Enemy desmentem essa uniformidade masculina. Mas ainda há trabalho pela frente. Como reflecte Guzzanti, “hoje, os colectivos feministas reclamam espaços em festivais, fanzines e plataformas online, afirmando que a resistência deve ser interseccional. A sobrevivência do metal depende de abraçar esta inclusividade”.
Nietzsche dizia que a vida sem música é um erro, uma fadiga, um exílio. É preciso continuar a procurar - e talvez não seja má ideia fazê-lo através da crueza metaleira. “É preciso aguentar sem medo a dança sobre a fenda existencial: este parece-me ser o feito do heavy metal”, sentencia Hartmut Rosa. Como cantam os AC/DC, for those about to rock (we salute you): A todos os que vão rockar… saudamos-vos.
EL PAÍS – 30 Nov 2025 – por Mar Padilla
