sábado, 31 de agosto de 2024

Conversas Improváveis 84 - Carros Voadores e Ananases num Hipermercado

 


O cinema prometeu carros voadores, disseram-nos quando eu era pequeno que as máquinas iriam trabalhar para nós, que, com a chegada dos computadores (e eu ainda sou do tempo das máquinas de escrever) o papel iria deixar de se usar. 

E, afinal, o papel só se deixou de usar nas cartas de amor porque as únicas cartas que ainda recebemos são com contas para pagar. A socialização passou da rua para os ecrãs dos telemóveis. No entanto, apesar das redes sociais prometerem conectar as pessoas, elas nunca como agora estiveram tão sozinhas e até os sites de encontros estão em declínio. E acabamos todos sós, a marcar encontros com ananases numa campanha de marketing de um qualquer hipermercado perto de si. 

Um Terramoto de Demagogia Acordou os Portugueses nos Postos de Combustível

 Esta 2a feira os portugueses acordaram com um terramoto. E não estou a falar do sismo, alegadamente de 5.3 na escala de Richter - e digo alegadamente porque não se entenderam se era 5.3 e 5.outra-coisa-qualquer - refiro-me sim ao terramoto de demagogia de Luís Montenegro e do PSD que, sem que quase ninguém tenha reparado, aconteceu precisamente no mesmo dia. 

Há menos de um ano Montenegro acusava o governo de António Costa de não ser sério porque não baixava o ISP, o imposto dos combustíveis. Pois não é que, quatro meses apensas depois de estar na liderança do governo, Montenegro aumento o imposto, que tanto criticava?, e tanto que nós ouvíamos falar nas taxas e taxinhas dos socialistas! 

De forma oportunista, e quando se anunciava a maior descida no preço dos combustíveis dos últimos seis meses, eis senão quando, esta descida é travada porque o governo aumentou o ISV. E quase ninguém notou, porque na imprensa e nos jornais que li, a notícia nem sequer foi dada.  

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

domingo, 25 de agosto de 2024

Fora da Caixa e Zona de Conforto


"Antigamente era imperioso pensar fora da caixa, agora é preciso estar fora da zona de conforto. Há uma obsessão filosófica com estar fora seja do que for. Ao que parece, enquanto sociedade temos verificado que estar dentro não é bom".

Não sei se isso é novidade, mas mais da metade do mundo daria tudo por um pouco de conforto. Atingir conforto é uma ambição de bilhões de pessoas. Mas um grupo de diletantes está tão confortável que se deixou tomar pelo enfado de primeiro mundo que só se apazigua saindo da zona de conforto".

Excertos da crónica de hoje de Ricardo Araújo Pereira na Folha de São Paulo. 



sábado, 24 de agosto de 2024

Se Alguém Nos Criou Era um Incompetente

Este verão e, depois de alguma insistência por parte de alguns colegas, cometi a maluquice de me meter num curso de treinador. Fins de semana inteiros a ter formação, estudar para fazer trabalhos, e ainda vou ter que fazer um estágio de um ano. E não, a ideia não era tornar-me no Erikson ou no Guardiola do ténis de mesa. Mas, meti-me nelas, então, lá terei que, melhor ou pior sair.

Numa parte sobre o corpo humano, o formador avisou em forma de graça (e diga-se que fez um excelente trabalho, não fosse preparador físico da seleção): "quem não for crente, vai passar a acreditar em Deus"! E falou-se do joelho, da rótula e da cartilagem. E de coeficientes de atrito de uma faca sobre gelo, e atrito quase zero na articulação do joelho. Então, para o formador, isso era a prova inequívoca que fomos criados por Deus, porque estava tudo muito bem pensado, muito bem planeado. 

E eu só pensava para comigo que aquilo não provava absolutamente! Nem de propósito, dias depois, lia este artigo, na secção de ciência, do jornal espanhol El País, que me parece bastante esclarecedor:






Perante todas as provas científicas, os que negam a evolução afirmam que é impossível explicá-la sem um plano prévio e um maestro.

"A evolução biológica é um facto, por mais que alguns insistam em negá-lo. A evidência científica que a sustenta é esmagadora. Os negacionistas da evolução tiveram que ir mudando o discurso e adaptando-o à medida que os seus argumentos se tornavam demasiado ridículos. Durante muito tempo assumiu-se que o relato bíblico da criação era literal. Com base na informação da Bíblia, o bispo James Usher calculou que a criação ocorreu a 22 de outubro do ano 4004 antes da era comum.

Isto contradiz o conhecimento geológico, que indica que a idade da Terra é de 4.500 milhões de anos e não explica a existência de fósseis de animais extintos datados em milhões de anos. Nenhum texto sagrado menciona esses fósseis. Perante isto, propuseram-se explicações peculiares, como a ideia de que os fósseis foram criados por Deus para testar a nossa fé, ou que os dinossauros não cabiam na arca de Noé e por isso se extinguiram, mas que antes do dilúvio coexistiram com os humanos. Claro que nunca foram encontrados fósseis de humanos e dinossauros no mesmo estrato geológico. Isso não dissuade os mais obstinados. As representações de homens primitivos a conviver com dinossauros são comuns em certa literatura religiosa.

Há uma corrente de pensamento que passa ao lado dos argumentos criacionistas mais radicais, mas que defende a impossibilidade de explicar a evolução sem a existência de um plano previamente estabelecido, ou como preferem dizer, sem um design inteligente. Não deixa de ser uma tentativa de introduzir a ideia de Deus na evidência da evolução biológica, mas tentando camuflar o pano de fundo religioso e dando-lhe uma aparência de pensamento científico. Aceita-se que os seres vivos evoluem, mas essa evolução necessita de um director. Não pode ser por puro acaso. Uma das partes mais belas da teoria de Darwin-Wallace é que explica a evolução biológica em termos de mudanças aleatórias e de seleção pelas circunstâncias da natureza. Não necessita de um ser superior a controlar o processo nem de uma folha de rota. A espécie humana existe, mas noutras circunstâncias poderia não existir. Se as circunstâncias ao longo da história do planeta tivessem sido diferentes, agora a espécie dominante poderia ser uma raça de ornitorrincos fluorescentes ou de fetos tecnológicos. 

Um dos argumentos mais utilizados pelos defensores do design inteligente é o da complexidade irreduzível. Existem estruturas biológicas muito complexas, como o olho humano, que necessitam da junção de muitos elementos. Segundo os argumentos negacionistas da evolução darwiniana, não podem ter-se formado por acaso e pela acumulação de pequenas mudanças. É fácil de refutar. O que acontece na evolução é que alguns elementos vão adquirindo novas funções. No caso das proteínas, é frequente que muitas tenham mais do que uma função e que não estejam relacionadas entre si. No exemplo do olho, existem animais na atualidade que conservam estruturas precursoras do atual olho.

O maior argumento contra o design inteligente é toda a evidência que aponta que, se existir um designer, não é inteligente. Estudando a biologia em detalhe, fica claro que, ou tudo acontece por puro acaso, ou se há um designer, ele é um incompetente. A evolução biológica seria como tentar fazer melhorias numa casa já construída. Não se pode demolir e reconstruir, mas pode-se derrubar uma parede, aumentar uma porta ou acrescentar outro andar. As obras vão-se sobrepondo, de forma semelhante às catedrais que se construíam ao longo de vários séculos e onde coexistem diferentes estilos. Há algumas estruturas que em determinado momento são úteis, mas que, para se adaptarem aos novos tempos, é preciso fazer remendos ou improvisações, ou tornam-se uma carga, podendo em alguns casos conduzir à extinção da espécie. Um exemplo destes remendos resolvidos em cima da hora seria o canal deferente que liga o testículo à uretra, e que tem de contornar o ureter devido ao facto de os nossos antepassados evolutivos terem os testículos mais acima. E poderíamos continuar. Dores nas costas, hérnias discais e hemorroidas devido aos milhões de anos que fomos quadrúpedes e que ainda não somos eficientes a andar sobre duas pernas. Poderíamos mencionar as crianças que morrem engasgadas porque o canal alimentar partilha espaço com a via respiratória, quando seria tão simples separá-los, ou as infeções graves por colocar a principal saída de resíduos sólidos do corpo ao lado dos genitais. E não só na anatomia se vêem as improvisações de design. Existem muitas rotas bioquímicas onde se nota este efeito de ir pondo remendos e que graças à engenharia genética podemos melhorar. Já que é para acreditar num ser supremo, ao menos que seja mais competente.

J. M. MULET, ILUSTRAÇÃO DE SEÑOR SALME | El País, 11 de agosto de 2024

A Melhor Coisa Que Vais Ler Hoje..

... é esta entrevista do New York Times ao Pepe Mujica:



"José Mujica recusou-se a viver no palácio presidencial do Uruguai. “Tem quatro andares,” disse ele. “Para tomar chá, tens de andar três quarteirões. Inútil. Deviam transformá-lo numa escola secundária.”

Há uma década, o mundo teve uma breve fascinação por José Mujica. Ele era o presidente do Uruguai, conhecido pela sua simplicidade, que rejeitou o palácio presidencial da nação para viver numa pequena casa com telhado de zinco com a sua esposa e o seu cão de três patas.

Em discursos para líderes mundiais, entrevistas com jornalistas estrangeiros e documentários na Netflix, Pepe Mujica, como é universalmente conhecido, partilhou inúmeras histórias de uma vida digna de filme. Assaltou bancos como guerrilheiro urbano de esquerda; sobreviveu a 15 anos como prisioneiro, fazendo amizade com uma rã enquanto estava preso num buraco no chão; e ajudou a transformar a sua pequena nação sul-americana numa das democracias mais saudáveis e socialmente liberais do mundo.

Mas o legado de Mujica será mais do que a sua história colorida e compromisso com a austeridade. Ele tornou-se uma das figuras mais influentes e importantes da América Latina, em grande parte, pela sua filosofia franca sobre o caminho para uma sociedade melhor e uma vida mais feliz.

Agora, como diz o próprio Mujica, ele está a lutar contra a morte. Em abril, anunciou que iria submeter-se a radioterapia para tratar um tumor no esófago. Aos 89 anos e já diagnosticado com uma doença autoimune, admitiu que o caminho para a recuperação seria árduo.

Este mês, viajei para os arredores de Montevideu, a capital do Uruguai, para visitar Mujica na sua casa de três divisões, cheia de livros e frascos de vegetais em conserva, na pequena quinta onde cultiva crisântemos há décadas. Quando o sol se pôs num dia de inverno, ele estava agasalhado num casaco de inverno e num chapéu de lã em frente a um fogão a lenha. O tratamento tinha-o deixado fraco e quase sem apetite. “Estás a falar com um velho estranho,” disse ele, inclinando-se para me olhar de perto, com um brilho nos olhos. “Eu não me encaixo no mundo de hoje.”

E assim começámos.

Esta entrevista foi editada e condensada para maior clareza.

Como está a sua saúde?

Fizeram-me um tratamento de radioterapia. Os meus médicos disseram que correu bem, mas estou quebrado.

(Espontaneamente.)

Acho que a humanidade, como está, está condenada.

Porque diz isso?

Perdemos muito tempo inutilmente. Podíamos viver mais tranquilamente. Veja o Uruguai. O Uruguai tem 3,5 milhões de pessoas. Importa 27 milhões de pares de sapatos. Fazemos lixo e trabalhamos com sofrimento. Para quê?

És livre quando escapas à lei da necessidade - quando passas o tempo da tua vida a fazer o que desejas. Se as tuas necessidades se multiplicam, passas a tua vida a suprir essas necessidades.

Os humanos podem criar necessidades infinitas. O mercado domina-nos e rouba-nos as nossas vidas.

A humanidade precisa de trabalhar menos, ter mais tempo livre e estar mais ligada à terra. Para que tanto lixo? Porque tens de trocar de carro? Trocar de frigorífico?

Só temos uma vida e ela acaba. Tens de lhe dar um sentido. Lutar pela felicidade, não apenas pela riqueza.

Acredita que a humanidade pode mudar?

Poderia mudar. Mas o mercado é muito forte. Criou uma cultura subliminar que domina o nosso instinto. É subjetivo. É inconsciente. Tornou-nos compradores vorazes. Vivemos para comprar. Trabalhamos para comprar. E vivemos para pagar. O crédito é uma religião. Por isso, a bem dizer estamos fodidos.

Parece que não tem muita esperança.

Biologicamente, tenho esperança, porque acredito no homem. Mas quando penso nisso, sou pessimista.

No entanto, os seus discursos costumam ter uma mensagem positiva.

Porque a vida é bela. Com todos os seus altos e baixos, eu amo a vida. E estou a perdê-la porque é a minha hora de partir. Que sentido podemos dar à vida? O homem, comparado a outros animais, tem a capacidade de encontrar um propósito.

Ou não. Se não o encontrares, o mercado fará com que passes a vida a pagar contas.

Se o encontrares, terás algo pelo qual viver. Aqueles que investigam, aqueles que tocam música, aqueles que amam desporto, qualquer coisa. Algo que preencha a tua vida.

Porque escolheu viver na sua própria casa como presidente?

Os resquícios culturais do feudalismo permanecem. O tapete vermelho. A corneta. Os presidentes gostam de ser louvados.

Uma vez fui à Alemanha e colocaram-me num Mercedes-Benz. A porta pesava cerca de 3.000 quilos. Puseram 40 motas à frente e outras 40 atrás. Fiquei envergonhado.

Temos uma casa para o presidente. Tem quatro andares. Para tomar chá, tens de andar três quarteirões. Inútil. Deviam transformá-la numa escola secundária.

Como gostaria de ser lembrado?

Ah, como aquilo que sou: um velho louco.

Só isso? Fez muito.

Tenho uma coisa. A magia da palavra. O livro é a maior invenção do homem. É uma pena que as pessoas leiam tão pouco.

Não têm tempo.

Hoje em dia, as pessoas fazem grande parte da sua leitura nos telemóveis.

Há quatro anos, deitei o meu fora. Deixou-me maluco. Todo o dia a falar de disparates.

Devemos aprender a falar com a pessoa que está dentro de nós. Foi ele que me salvou a vida. Como estive sozinho durante muitos anos, isso ficou comigo.

Quando estou no campo a trabalhar com o trator, às vezes paro para ver como um passarinho constrói o seu ninho. Ele nasceu com o programa. Já é arquiteto. Ninguém o ensinou. Conheces o pássaro joão-de-barro? São pedreiros perfeitos.

Admiro a natureza. Quase tenho uma espécie de panteísmo. Tens de ter olhos para vê-la.

As formigas são dos verdadeiros comunistas que existem. São muito mais antigas do que nós e vão sobreviver-nos. Todos os seres coloniais são muito fortes.

Voltando aos telemóveis: Está a dizer que são demais para nós?

Não é culpa do telemóvel. Somos nós que não estamos preparados. Fazemos um uso desastroso dele.

As crianças andam com uma universidade no bolso. Isso é maravilhoso. No entanto, avançámos mais na tecnologia do que nos valores.

No entanto, o mundo digital é onde grande parte da vida é agora vivida.

Nada substitui isto. (Ele gesticula para os dois a conversar.) Isto é intransmissível. Não estamos apenas a comunicar com palavras. Comunicamos com gestos, com a nossa pele. A comunicação direta é insubstituível.

Não somos tão robóticos. Aprendemos a pensar, mas antes de mais somos seres emocionais. Acreditamos que decidimos com a cabeça. Muitas vezes, a cabeça encontra os argumentos para justificar as decisões tomadas pelo instinto. Não somos tão conscientes como parecemos.

E isso é bom. Esse mecanismo é o que nos mantém vivos. É como a vaca que segue o que é verde. Se há verde, há comida. Vai ser difícil desistir do que somos.

Disseste no passado que não acreditas em Deus. Qual é a tua visão de Deus neste momento da tua vida?

Sessenta por cento da humanidade acredita em algo, e isso deve ser respeitado. Existem perguntas sem respostas. Qual é o sentido da vida? De onde viemos? Para onde vamos?

Não aceitamos facilmente o facto de sermos uma formiga na infinidade do universo. Precisamos da esperança de Deus porque gostaríamos de viver.

Tens algum tipo de Deus?

Não. Respeito muito as pessoas que acreditam. É como um consolo perante a ideia da morte.

Porque a contradição da vida é que é um programa biológico destinado a lutar para viver. Mas a partir do momento em que o programa começa, estás condenado a morrer.

Parece que a biologia é uma parte importante da tua visão do mundo.

Somos interdependentes. Não poderíamos viver sem os procariotas que temos nos intestinos. Dependemos de uma série de bichos que nem sequer vemos. A vida é uma cadeia e ainda está cheia de mistérios.

Espero que a vida humana seja prolongada, mas estou preocupado. Existem muitas pessoas loucas com armas atómicas. Muito fanatismo. Deveríamos estar a construir moinhos de vento. No entanto, gastamos em armas.

Que animal complicado é o homem. Ele é ao mesmo tempo inteligente e estúpido.

Lições de um guerrilheiro assaltante de bancos que se tornou presidente | Jack Nicas


sábado, 17 de agosto de 2024

Não é o que Dizes - É o que se Fazes pela classe Trabalhadora

Declaração de interesse: entre Donald Trump e um poio de merda, eu estou do lado do poio de merda. 

Mas isto não invalida que, ao contrário de tanta gente, eu não tenha ficado eufórico com a vitória de Biden há quatro anos, nem fique agora extremamente eufórico com Harris, que veio substituir o velho senil democrata na corrida pelas eleições americanas de novembro, por uma coisa muito simples: mais fachos ou menos fachos, conservadores e democratas, são todos de direita, e eu não morro propriamente de amores por políticas que aumentam as diferenças e as desigualdades entre as pessoas. 

Mas desde que Harris substitui Biden os democratas ganharam novo fôlego e, ao que parece, as coisas inverteram o rumo que vinha seguindo, de vitória certa de Trump (ainda que com menos votos porque, aquela coisa a que chamam democracia lá pelos States, é mais complicado de entender que um jogo de basebol!). 

E por estes dias, Kamala, tentando que a classe média se identificasse com ela, veio dizer que, como um em cada oito estadunidenses, trabalhou no Mcdonalds.  


Por cá já tivemos Paulo Portas a dizer que sabe o que custa a vida por ter ficado, sabe-se lá em que condições, em hotéis três estrelas, ou Assunção Cristas que, coitada, teve que calçar botas e vestir calças de ganga para visitar bairros sociais (não fosse apanhar alguma doença); Passos Coelho declarou que era o mais africanista de todos os candidatos e tinha uma sensibilidade diferente e entendia melhor os problemas das comunidades imigrantes, simplesmente por ter casado com uma mulher da Guiné-Bissau (mas foi pena que isso não o tivesse impedido recentemente de proferir mentiras afirmando que os imigrantes aumentam a criminalidade) e, mais recentemente, Pedro Nuno Santos veio lembrar que é neto de sapateiro.

Contudo, convém lembrar que Che Guevara nasceu numa família burguesa e era médico ou que o pai de Fidel Castro era rico. Karl Marx era de classe média e Engels era filho de empresário. Não é o que se diz de onde se veio que dá mais credibilidade para mostrar que se está ao lado da classe trabalhadora. É o que se faz pela classe trabalhadora e pelos mais desfavorecidos. Podes ser empresário e fazer mais pelos trabalhadores do que aqueles que querem passar por cordeiros mas que, assim que podem, metem o pé no pescoço dos mais carenciados, como está a fazer agora o Chega no governo dos Açores.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Fildel Castro e Che: Raízes de uma Revolução

Camaradas:


"Nos anos 50, o ideólogo argentino percorre a América Latina. Numa noite de verão, no México, encontra-se com o carismático revolucionário cubano. Das discussões apaixonadas nasce uma amizade imediata entre os dois homens que derrubarão a ditadura em Havana.

Esta é a história de um advogado que convence um médico na humidade pegajosa de uma noite mexicana. Em plena estação das chuvas, numa sala enevoada, envolta no cheiro dos charutos. O advogado é alto, com um bigode ainda tímido. Tem um rosto duro de homem determinado, olhos ligeiramente semicerrados que raramente encontram o seu sorriso. O médico é mais baixo. Ainda imberbe, mas não por muito tempo. Tem um riso fácil, mas quando escuta, franze as sobrancelhas. Os seus olhos de sonhador ficam encobertos. 

"Demasiado bonito para ser inteligente", pensou aquela que se tornou sua companheira, Hilda, ao vê-lo pela primeira vez. Os dois homens estão a aproximar-se dos trinta. O primeiro tem quase 29 anos, o segundo acaba de fazer 27. Em 1940, o México tinha visto morrer Trotsky e, com ele, uma certa esquerda. Quinze anos depois, a capital vê desfilar todos os revolucionários da América Latina. A Revolución, a verdadeira, está prestes a nascer. Nessa noite de verão de 1955, Fidel Castro e Che Guevara encontram-se pela primeira vez.

Fidel acabou de chegar ao México. Dois meses antes, as autoridades cubanas tinham-no amnistiado após quase dois anos de prisão. Devia cumprir quinze anos pela tentativa de golpe contra o regime de Fulgencio Batista. O jovem não suportou o golpe de Estado do coronel. Isso levou-o a atacar o quartel de Moncada, a 26 de julho de 1953, na esperança de provocar uma insurreição generalizada. O ataque foi um desastre combinado com um massacre. Mas Castro, poupado por um triz, entrou na lenda ao escrever a sua própria defesa. 

"A história absolver-me-á", declarou com uma veemência que nunca mais o abandonaria. Agora quer vingar-se e prepara uma expedição para libertar a sua ilha. Ernesto, por sua vez, está no México há mais tempo. Já há dez meses fugiu de outro golpe de Estado, na Guatemala. O argentino está na sua segunda viagem pela América Latina. Na primeira, de moto, deparou-se de frente com as desigualdades do continente, sem perceber realmente de onde vinham. No final da segunda, está convencido de que são resultado do braço do imperialismo americano. O mesmo que acabou de derrubar o presidente socialista Jacobo Arbenz, considerado culpado pela CIA e pela United Fruit Company de ir longe demais na sua reforma agrária. Já tinha lido Marx e Engels, mas foi uma economista peruana, Hilda Gadea Acosta, que completou a sua adesão ao comunismo, por amor tanto quanto por convicção.

"NÃO TE ABANDONAREI"

Na Guatemala, um cubano deu-lhe o apelido de "Che", pois usava esta interjeição tipicamente argentina a toda a hora. Esse amigo, Antonio Nico López, o apresentará aos Castro quando eles chegarem ao México. Primeiro apresenta-lhe Raúl, marxista como ele, depois os outros membros do Movimento 26 de Julho, criado por Fidel, um homem cujo carisma o argentino começa a perceber. Ernesto ainda navega entre as lutas de cada um para encontrar a que lhe permitirá salvar o mundo. Quer libertar a América Latina das garras do capitalismo. Sonha em construir um homem novo. Mas ainda não sabe como. Até aquela noite de 9 de julho de 1955.

Bastou uma noite. Dez horas, segundo a lenda, de discussões apaixonadas. Frente a frente. Olhos nos olhos. Che conta sobre a Guatemala e as suas indignações fundamentais; Fidel apresenta-lhe Cuba e a sua luta final. O argentino fica imediatamente impressionado por esse "homem excepcional". Castro vê um ideólogo convicto, radical, sem limites, de uma integridade fora do comum, quase cruel. Che quer mudar o mundo, Fidel propõe começar pelo seu país. É um amor à primeira vista revolucionário. Cada um encontra o que procura. O primeiro paira num romantismo desmedido que sonha em aterrar. O segundo tem os pés bem assentes num pragmatismo astuto, e sonha com inspiração para finalmente se erguer. 

Ao amanhecer, Fidel junta-se aos seus: "Camaradas, está feito: encontrei um médico para a nossa expedição." A guerrilha começa ali, no dia seguinte a essa noite febril, nas campanhas mexicanas até ao final de 1956. O Movimento 26 de Julho treina no manejo de armas. A travessia está a ser preparada. Fidel faz viagens de ida e volta aos Estados Unidos para angariar fundos, preparar o Granma, o barco que comprou e que deve navegar até Cuba. De volta ao acampamento, é um irmão mais velho impressionado pela abnegação e resistência do seu recruta argentino. O médico já é um soldado exemplar, tão determinado quanto as suas ideias são firmes. O seu movimento preocupa a polícia mexicana que os prende. 

Fidel e Che encontram-se na mesma cela, condenados a ruminar os seus planos para derrubar Batista, libertar a ilha das Caraíbas, talvez até salvar o mundo. As suas ideias escapam-se entre as paredes sujas de uma sala ladrilhada, sentados em simples camas de ferro. O cubano é libertado primeiro, considerado menos perigoso ideologicamente. Quando veste o casaco do seu fato demasiado largo, Guevara, de tronco nu e cinto desapertado, diz-lhe para não o esperar para zarpar. O outro vira-se: "Não te abandonarei."

PRIMEIRAS DESAVENÇAS DISCRETAS

O resto é mais conhecido, todo de fardas caqui e rostos barbudos. Primeiro há o naufrágio, no sul de Cuba, numa noite de dezembro de 1956. A lenta progressão nos pântanos onde assobiam as balas dos homens de Batista. Ali, Che teria finalizado a sua vocação de guerreiro. Perdendo um camarada, forçado a escolher entre uma caixa de medicamentos e outra de munições. O juramento de Hipócrates ficou preso na lama. Depois começa a lenda da Sierra Maestra: a de um grupo dizimado de uma dezena de homens que vai, em breve, reunir todos os oprimidos pelo capitalismo selvagem imposto por um ditador militar. 

A aparência atraente desses revolucionários hirsutos fará o resto. Fidel e Che acima de todos os outros. Um, tribuno e carismático, transpira autoridade. O outro, impávido e exemplar, impressiona pela sua intransigência. Ernesto Guevara está em todas as ações, em todas as operações. Inflige ao exército de Batista operações cirúrgicas, dolorosas, eficazes. Também cuida dos camponeses, instrui os novos recrutas. Castro nomeia-o segundo: Che torna-se comandante. Enquanto isso, Fidel ocupa a frente mediática, multiplica as entrevistas clandestinas na Sierra, atraindo novos guerrilheiros. É também aí que surgem as primeiras dúvidas, as primeiras desavenças discretas. Para tranquilizar os liberais, e sobretudo os americanos, o chefe da guerrilha jura em plena Guerra Fria não ter nada a ver com o comunismo. A Che, que fica indignado, promete o contrário. A dúvida persiste, mas Ernesto Guevara permanece fiel.

É mesmo ele quem vai ganhar a batalha decisiva de Santa Clara, no final de dezembro de 1958. O último golpe no regime que vê o seu ditador fugir, deixando os casinos de Havana e os turistas americanos assustados. A rota para a capital está aberta, os barbudos entram lá a 1 de janeiro, mas Che fica para trás para não roubar o protagonismo ao grande Fidel: este acaba de proclamar o triunfo da revolução num discurso em Santiago, que designa como nova capital. Só entra em Havana a 8 de janeiro com o nativo de Rosario. O desafio do poder vai abalar a amizade entre os dois homens. Primeiro ministro da Defesa, Fidel torna-se rapidamente primeiro-ministro e envia Che ao cadafalso, como carrasco. Será encarregado de julgar, rapidamente, os traidores de Batista que são executados em série. O argentino detém o apelido de "pequeno açougueiro de La Cabaña" porque não treme, tal como na floresta quando era necessário punir desertores reais ou supostos. Nada pode impedir a causa. E esta impõe, por vezes, decisões "difíceis". Ou melhor, desumanas.

MÁRTIR NA SUA PRÓPRIA CAUSA

É também uma forma de não expor demasiado o marxismo-leninismo reivindicado pelo Comandante. Porque, entretanto, Fidel navega entre as duas superpotências da época. Tenta apaziguar Washington – onde faz uma breve estadia multiplicando declarações tranquilizadoras –, enquanto se apoia no Partido Comunista Cubano – a formação mais sólida em 1959 na ilha –, mesmo que isso faça fugir os mais liberais que retomam o caminho das armas. Ernesto Guevara e Raúl Castro são da opinião de virar claramente para leste, longe do inimigo imperialista. A crescente tensão com os Estados Unidos acabará por convencer o Líder Máximo. E impõe ainda mais Guevara como uma figura central da revolução. 

Primeiro com a reforma agrária, poucos meses após modificar a Constituição para permitir "a um estrangeiro que se tenha particularmente destacado durante a guerrilha e recebido o grau de comandante" entrar no governo: só há um único interessado. Depois, multiplicando os cargos. No final de novembro de 1959, numa reunião com os líderes do movimento, Fidel pergunta: "Quem aqui é economista?" No fundo da sala, Ernesto levanta a mão. Surpresa geral. "Disseste comunista?" Não importa, Che Guevara, o homem que quer abolir o dinheiro, torna-se chefe do Banco Central. Assina até notas de 3 pesos, que hoje são peças de coleção.

Mas surgem nuvens entre Fidel e o seu soldado preferido. Após o episódio da Baía dos Porcos e o embargo americano, vem a crise dos mísseis, em 1962. Uma das piores da Guerra Fria, que deveria ver a URSS de Nikita Khrushchev, após uma negociação conduzida pelo Comandante, instalar lançadores a 200 km do território americano, antes de finalmente recuar, para grande desagrado do principal interessado. Fidel, bom tacticista político, e consciente da dependência do seu regime em relação a Moscovo, alinha-se com as escolhas do seu melhor aliado. 

O idealista Guevara não aceita. Tornado "embaixador da revolução", critica abertamente os líderes soviéticos, multiplica discursos virulentos, nomeadamente em Argel, em 1965, sobre a suposta complacência de Moscovo em relação ao seu rival americano. Aposta nos não-alinhados, única salvação possível para acabar com o capitalismo. De volta a Cuba, Fidel dá-lhe um sermão, e Ernesto decide, desautorizado e envergonhado, ir embora para exportar a revolução. O advogado cubano anuncia a partida do médico argentino lendo a sua carta de despedida perante a Assembleia Nacional em março de 1965: "Outras terras do mundo reclamam o concurso dos meus modestos esforços" – o texto inspirará a famosa canção Hasta Siempre de Carlos Puebla. Primeiro no Congo, numa revolta condenada contra Mobutu. Depois na Bolívia, com um pequeno grupo de cubanos que se enterra na selva. Esta última missão parece um plano bem preparado. O país não está pronto para a revolução. E o grupo revolucionário acaba por ser descoberto. Che será executado, enfraquecido por meses de privações, mártir da sua própria causa, morto pelo seu extremismo.

Não há dúvida de que Fidel sabia que o seu amigo nunca voltaria. Deixou-o partir com o coração pesado ou aliviado? A questão permanece em aberto. Mas, mesmo morto, Che serve para fazer sobreviver a sua revolução. Celebrado como herói e exemplo a seguir. Até o matar uma enésima vez, erigindo a sua silhueta de Rimbaud das Américas num símbolo que hoje é vendido em t-shirts por dólares".

Fidel Castro et Che Guevara, au clair de la lutte / Benjamin Delille / Libération 

(Fidel Castro nasceu no dia de hoje, 13 de Agosto de 1926)

Indignações Religiosas Seletivas


 "A reconstituição de um quadro, na abertura dos Jogos Olímpicos, indignou espectadores de todo o mundo. A certa altura da cerimônia, um grupo de drag queens posou de modo a, ao que parecia, reproduzir o célebre quadro “A Última Ceia”, de Leonardo Da Vinci, o que naturalmente melindrou um grande número de pessoas.

A este tipo de pessoa costuma chamar-se “floco de neve”, para indicar uma espécie de hipersensibilidade, mas é uma alcunha enganadora, porque estes flocos de neve não costumam ter sensibilidade nenhuma. Se tivessem, não teriam se indignado desta forma. Como é evidente, teriam se indignado muito mais.

O quadro de Da Vinci representa Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo que constitui uma flagrante violação do segundo mandamento: “Não faças para ti ídolos, nenhuma representação daquilo que existe no Céu ou na Terra.” Ou seja, a paródia das drag queens é uma blasfêmia sobre outra blasfêmia, e não se percebe porque é que o senhor Da Vinci - que, além do mais, partilhava com as drag queens algumas inclinações - ficou isento de críticas.

(...)

Em última análise, o lamento significa que aquela mensagem de dar a outra face e de perdoar a quem nos ofende é deplorável. Não sei quem teve essa ideia mas, ao que tudo indica, no entender de quem se ofendeu com a cerimônia é uma pessoa que merecia ser parodiada"

Ricardo Araújo Pereira | Folha de São Paulo

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

domingo, 11 de agosto de 2024

Mas Quem é Que Falou em Urgência?


Durão Barroso prometeu baixar os impostos e depois mal se viu no governo aumentou-os. 
Passos Coelho gritou chega de austeridade e mal se viu no governo roubou os salários.
Montenegro prometeu um choque fiscal, com promessas que afinal já continham verbas anunciadas pelo governo de Costa, e foi-se a ver foi um choquezinho. O verdadeiro choque fiscal foi para as grandes empresas, como a EDP que viu o imposto que pagava reduzido para metade.

Montenegro anunciou um plano de emergência para a saúde e prometeu resolver os problemas do SNS em 60 dias: "É um programa que visa dar uma resposta URGENTE, IMEDIATA a vários desses problemas e constrangimentos"

Entretanto, perante o caos instalado, e nunca visto (ainda que agora não vejamos jornalistas à porta dos hospitais e, em vez de se falar em caos, fala-se em "constrangimentos" - viva a imprensa livre!), vem-se então agora dizer que "ninguém de boa fé..." 

Sim, ninguém de boa fé, e olhando para o que tem sido o rol de mentiras do PSD poderia alguma vez acreditar que os partidos que votaram contra a criação do Serviço Nacional de Saúde (PSD e CDS), alguma vez iriam fazer alguma coisa para o tornar melhor. 

Não, pelo contrário. É para ficar cada vez pior e meter no cu dos privados milhões dos nossos impostos que deveriam sim ser investidos na saúde pública. 


terça-feira, 6 de agosto de 2024

Verde - Como a Cor do Diabo se Tornou a Cor dos Ambientalistas

O jornal francês Libération está a publicar diariamente uma série de reportagens bem interessantes sobre a história das cores nas lutas políticas e sociais. Depois de ter partilhado o nº1 que foi sobre o vermelho, o nº2 é sobre o verde:


"As cores impregnaram as lutas políticas e sociais. Hoje, o verde, cujo nome e tonalidade cativaram partidos e movimentos de defesa do ambiente.

Traçar a união entre o verde e a luta ecologista seria como contar a história de um velho casal, daqueles que já não se questionam e cuja solidez dos laços se materializa até no nome. E, no entanto, esta associação nem sempre foi evidente. "O verde ecologista é recente, surgido nos anos 60-70. Como o que parecia mais ameaçado era o mundo vegetal durante essa tomada de consciência, o verde tornou-se a cor dos movimentos ecologistas", observa o historiador especialista em cores Michel Pastoureau.

DESTINO

Sob o impulso do partido alemão Die Grünen, a cor tornou-se política, iniciando o começo de uma quase unidade internacional. Embora alguns prefiram optar pelo termo "ecologista", pelo menos quarenta partidos utilizam o denominativo "verde", começando por Europe Ecologie-les Verts (mas que passou a chamar-se les Ecologistes em outubro de 2023) ou The Green Party em vários países anglófonos. "No Reino Unido, o nome 'Ecology Party' estava associado a uma ciência com a qual o cidadão comum não se identificava necessariamente. A substituição por The Green Party correspondia, provavelmente, a uma vontade de tornar o partido mais popular", analisa a linguista Camille Biros no seu estudo sobre "As cores do discurso ambiental".

A tonalidade clorofila, antes de ser a da natureza, era a da mudança, do destino. Na Europa Ocidental, existe a ideia de que traz má sorte. "A razão principal é que era uma cor instável. Sabia-se como fabricá-la, tanto em pintura como em tintura, mas não se conseguia fixá-la. Havia, portanto, a ideia de que seria instável", explica o historiador, acrescentando que está associada a tudo o que não dura: "A juventude, a sorte, a felicidade." Na Idade Média, o verde também era a cor do diabo, dos demónios, dos feiticeiros. Desde o ano 1000, o Islão fez também do verde a sua cor.

CÓDIGO

Foi apenas "a partir da época romântica que a ideia de natureza começou a ser associada ao mundo vegetal e, portanto, ao verde", recorda Michel Pastoureau. Antes disso, a natureza era percepcionada como a soma dos quatro elementos fundamentais: a água, a terra, o ar e o fogo. Quatro cores deveriam, portanto, representá-la logicamente. Como recorda o jornal suíço Le Temps, o código de cores do primeiro Dia da Terra, que mobilizou milhões de americanos a 22 de abril de 1970, inclinava-se mais para o azul. Uma passagem breve.

Hoje, o verde quase rivaliza com o vermelho como a cor ideológica mais associada a um movimento. "Se alguém diz 'o verde é a minha cor preferida', pensa-se logo que é um ecologista. Isso não acontece com outras cores", observa Michel Pastoureau. Algo que alimenta sem esforço o tão falado greenwashing. "Nos últimos cinquenta anos, há cada vez mais logótipos verdes, uma boa maneira de se associar vagamente à defesa do planeta, sem ter de pôr a mão no bolso", acrescenta.

Mas estará o vibrante verde esmeralda, recuperado a todo o custo, a esmorecer? "A pertinência do verde para representar a causa ambiental é por vezes posta em causa […]. Perdeu o seu significado", escreve Camille Biros. Nos últimos anos, o azul tem-se imposto, o da água, do céu, uma referência a esta "planeta azul" tal como é vista da estratosfera. Um sinal de uma evolução na luta ecologista, em que "os problemas ambientais são menos pensados numa escala local" e onde "a preservação de todo o ecossistema da Terra" é central, acrescenta a linguista. A poluição do ar e a questão da água ocupam um lugar cada vez mais importante. Se o verde ainda predomina, as empresas já estão preparadas para recuperar a sua simbologia, como ilustra a gama Bluemotion da Volkswagen, promovida pelo fabricante automóvel como menos emissora de CO2. Um prenúncio de bluewashing?

Marlène Thomas | Libération 5 de agosto de 2024

domingo, 4 de agosto de 2024

Fugir da Internet


Sara Barquinero, escritora e autora do livro "Os escorpiões" (considerado o livro de uma geração em Espanha), em entrevista ao El País:

... "Foi chamado o romance de uma geração, qual seria a essência dessa geração?

É gente para a qual a internet era uma porta de salvação pessoal diante do descontentamento que tinham com a própria vida. Tinham em comum esse escape.

A internet era um escape?

Naquele momento era. Agora as pessoas escapam da internet, mas antes fugíamos para a internet.

Por que agora fugimos da internet?

Porque antes a internet tinha um componente que funcionava como umas férias. Ninguém te conhecia, ninguém esperava nada de ti. Agora, para muita gente, a internet é uma ferramenta de trabalho, uma pressão constante, uma notificação no telemóvel. Agora, escapar é desligar a internet e encontrar-se com as pessoas.

É também o fim do anonimato?

Também, e também me parece que agora pode ser mais difícil mudar de opinião.

Na internet ou em geral?

Em geral. Agora exige-se que nos posicionemos muito rapidamente sobre coisas complicadíssimas e depois temos que ficar naquele ponto. Quantas pessoas influentes na internet disseram: "Mudei de opinião sobre este conflito bélico"? É muito difícil e já te prendeste a um lugar e isso, em conversas privadas, era mais fácil.

Como lidas com a exposição pública?

Se não tivessem prestado atenção ao livro, eu estaria profundamente deprimida. Então, toda vez que penso que estou ficando sobrecarregada, digo: preferias que ninguém tivesse lido?

Lês tudo o que se publica sobre ti?

Não leio nada.

Como te vês daqui a 20 anos?

Não tenho ideia. Antes, quando pensava no meu futuro, via-me como professora universitária, mas como mandei a filosofia para o espaço, não criei uma imagem alternativa de mim mesma. Só sei que adoraria ter um monte de animais.

Estás escrevendo agora?

Sim.

Sobre o quê?

Conto-te se não publicares na entrevista.

sábado, 3 de agosto de 2024

História: Como o Vermelho Passou de Cor Pacifista a Cor Política?

"O vermelho domina o cortejo do 1º de Maio, aparece nos logótipos de muitos partidos de esquerda, está presente nas grandes manifestações dos sindicatos... No entanto, durante muito tempo o vermelho não teve nenhuma conotação política ou ideológica. Na Europa, essa cor vibrante, durante muito tempo um símbolo de poder e riqueza, foi usada inicialmente para alertar sobre o perigo. Um legado que ainda encontramos nos nossos semáforos e sinais de proibição. Sob o Antigo Regime, durante grandes movimentos de multidões, as autoridades públicas agitavam uma bandeira ou um pano vermelho para convidar a multidão a se dispersar.

O dia 17 de julho de 1791 marca uma viragem na percepção dessa cor. "Havia muita gente no Campo de Marte que veio exigir a destituição de Luís XVI, após a fuga para Varennes. A bandeira vermelha foi exibida para convidar a multidão a se dispersar; era uma bandeira pacífica, e, sem se saber por quê, a guarda nacional atirou na multidão", relata o historiador especializado em cores Michel Pastoureau. Os disparos causaram cerca de uma centena de mortos, que foram elevados à condição de mártires da Revolução em curso. "A partir desse momento, o vermelho adquiriu uma significação política. De neutra, até pacifista, tornou-se insurrecional, o emblema da multidão que veio exigir a destituição de Luís XVI. Esse é o ponto de partida de tudo o que sabemos sobre o vermelho da esquerda, da extrema esquerda."

DISCURSOS

A bandeira vermelha estará presente em todas as revoltas populares, da Revolução Francesa ao século XIX. Após a abdicação de Luís Filipe, durante a revolução de 1848, o povo até pediu que ela fosse substituída pela bandeira tricolor. Alphonse de Lamartine, ministro das Relações Exteriores do governo provisório, opôs-se a isso num discurso histórico pronunciado diante do Hôtel de Ville de Paris: "A bandeira tricolor deu a volta ao mundo com a República e o Império, com as vossas liberdades e glórias, e a bandeira vermelha apenas deu a volta ao Campo de Marte, manchada com o sangue do povo." Estandarte dos insurgentes da Comuna de 1871, o vermelho transfere-se pouco a pouco ao socialismo. 

Os movimentos operários organizam-se e fazem dele o seu símbolo em toda a Europa. "A bandeira vermelha já estava bem estabelecida antes da revolução soviética de 1917 a 1922. Ela torna-se o emblema da URSS, do comunismo e, por extensão, dos países afiliados", observa o historiador. Mas cuidado para não se deixar levar por uma leitura anacrônica. A Praça Vermelha em Moscovo não recebe esse nome nem dos tijolos ao redor, nem de uma associação tardia com o comunismo. Em russo antigo, "krasny" tanto significa "belo" como "vermelho". A Praça Vermelha deve, portanto, ser compreendida no sentido de praça "bela".

"FORTE" 

Se hoje o vermelho pode parecer indissociável da esquerda e, em particular, do comunismo, essa norma cromática, muito difundida na Europa e na Ásia, não é universal. Um sinal da ambivalência social e cultural das cores: nos Estados Unidos e no Canadá, o vermelho é republicano, ou seja, conservador. "Para um olhar ocidental, nenhuma cor jamais encarnou tanto um movimento ideológico porque é a cor mais forte. É a primeira cor no plano simbólico", destaca Michel Pastoureau. Essa primazia não é por acaso. O vermelho é a primeira cor dominada pelo ser humano para pintar e tingir: "Na alta Antiguidade, um tecido tingido é mais frequentemente vermelho porque não se sabia fazer em outras cores." Longe de ser a cor favorita dos franceses, o vermelho mantém sua aura de primeira cor simbólica.

"Quand la gauche s’est mise à voir rouge" / Marlène Thomas / Libération (3 de Agosto de 2024)