Este verão e, depois de alguma insistência por parte de alguns colegas, cometi a maluquice de me meter num curso de treinador. Fins de semana inteiros a ter formação, estudar para fazer trabalhos, e ainda vou ter que fazer um estágio de um ano. E não, a ideia não era tornar-me no Erikson ou no Guardiola do ténis de mesa. Mas, meti-me nelas, então, lá terei que, melhor ou pior sair.
Numa parte sobre o corpo humano, o formador avisou em forma de graça (e diga-se que fez um excelente trabalho, não fosse preparador físico da seleção): "quem não for crente, vai passar a acreditar em Deus"! E falou-se do joelho, da rótula e da cartilagem. E de coeficientes de atrito de uma faca sobre gelo, e atrito quase zero na articulação do joelho. Então, para o formador, isso era a prova inequívoca que fomos criados por Deus, porque estava tudo muito bem pensado, muito bem planeado.
E eu só pensava para comigo que aquilo não provava absolutamente! Nem de propósito, dias depois, lia este artigo, na secção de ciência, do jornal espanhol El País, que me parece bastante esclarecedor:
Perante todas as provas científicas, os que negam a evolução afirmam que é impossível explicá-la sem um plano prévio e um maestro.
"A evolução biológica é um facto, por mais que alguns insistam em negá-lo. A evidência científica que a sustenta é esmagadora. Os negacionistas da evolução tiveram que ir mudando o discurso e adaptando-o à medida que os seus argumentos se tornavam demasiado ridículos. Durante muito tempo assumiu-se que o relato bíblico da criação era literal. Com base na informação da Bíblia, o bispo James Usher calculou que a criação ocorreu a 22 de outubro do ano 4004 antes da era comum.
Isto contradiz o conhecimento geológico, que indica que a idade da Terra é de 4.500 milhões de anos e não explica a existência de fósseis de animais extintos datados em milhões de anos. Nenhum texto sagrado menciona esses fósseis. Perante isto, propuseram-se explicações peculiares, como a ideia de que os fósseis foram criados por Deus para testar a nossa fé, ou que os dinossauros não cabiam na arca de Noé e por isso se extinguiram, mas que antes do dilúvio coexistiram com os humanos. Claro que nunca foram encontrados fósseis de humanos e dinossauros no mesmo estrato geológico. Isso não dissuade os mais obstinados. As representações de homens primitivos a conviver com dinossauros são comuns em certa literatura religiosa.
Há uma corrente de pensamento que passa ao lado dos argumentos criacionistas mais radicais, mas que defende a impossibilidade de explicar a evolução sem a existência de um plano previamente estabelecido, ou como preferem dizer, sem um design inteligente. Não deixa de ser uma tentativa de introduzir a ideia de Deus na evidência da evolução biológica, mas tentando camuflar o pano de fundo religioso e dando-lhe uma aparência de pensamento científico. Aceita-se que os seres vivos evoluem, mas essa evolução necessita de um director. Não pode ser por puro acaso. Uma das partes mais belas da teoria de Darwin-Wallace é que explica a evolução biológica em termos de mudanças aleatórias e de seleção pelas circunstâncias da natureza. Não necessita de um ser superior a controlar o processo nem de uma folha de rota. A espécie humana existe, mas noutras circunstâncias poderia não existir. Se as circunstâncias ao longo da história do planeta tivessem sido diferentes, agora a espécie dominante poderia ser uma raça de ornitorrincos fluorescentes ou de fetos tecnológicos.
Um dos argumentos mais utilizados pelos defensores do design inteligente é o da complexidade irreduzível. Existem estruturas biológicas muito complexas, como o olho humano, que necessitam da junção de muitos elementos. Segundo os argumentos negacionistas da evolução darwiniana, não podem ter-se formado por acaso e pela acumulação de pequenas mudanças. É fácil de refutar. O que acontece na evolução é que alguns elementos vão adquirindo novas funções. No caso das proteínas, é frequente que muitas tenham mais do que uma função e que não estejam relacionadas entre si. No exemplo do olho, existem animais na atualidade que conservam estruturas precursoras do atual olho.
O maior argumento contra o design inteligente é toda a evidência que aponta que, se existir um designer, não é inteligente. Estudando a biologia em detalhe, fica claro que, ou tudo acontece por puro acaso, ou se há um designer, ele é um incompetente. A evolução biológica seria como tentar fazer melhorias numa casa já construída. Não se pode demolir e reconstruir, mas pode-se derrubar uma parede, aumentar uma porta ou acrescentar outro andar. As obras vão-se sobrepondo, de forma semelhante às catedrais que se construíam ao longo de vários séculos e onde coexistem diferentes estilos. Há algumas estruturas que em determinado momento são úteis, mas que, para se adaptarem aos novos tempos, é preciso fazer remendos ou improvisações, ou tornam-se uma carga, podendo em alguns casos conduzir à extinção da espécie. Um exemplo destes remendos resolvidos em cima da hora seria o canal deferente que liga o testículo à uretra, e que tem de contornar o ureter devido ao facto de os nossos antepassados evolutivos terem os testículos mais acima. E poderíamos continuar. Dores nas costas, hérnias discais e hemorroidas devido aos milhões de anos que fomos quadrúpedes e que ainda não somos eficientes a andar sobre duas pernas. Poderíamos mencionar as crianças que morrem engasgadas porque o canal alimentar partilha espaço com a via respiratória, quando seria tão simples separá-los, ou as infeções graves por colocar a principal saída de resíduos sólidos do corpo ao lado dos genitais. E não só na anatomia se vêem as improvisações de design. Existem muitas rotas bioquímicas onde se nota este efeito de ir pondo remendos e que graças à engenharia genética podemos melhorar. Já que é para acreditar num ser supremo, ao menos que seja mais competente.
J. M. MULET, ILUSTRAÇÃO DE SEÑOR SALME | El País, 11 de agosto de 2024
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