sábado, 30 de dezembro de 2023

Desejo

O ano de 2023 termina com esta descoberta surpreendente: Desire de Meg Meyers. E em minha defesa dizer que vi primeiro a atuação ao vivo do que o videoclip! Muito intenso... e a performance, aquele berrar "How do you want me" para depois sussurrá-lo. Gostei bastante. 



 

Baby, I wanna touch you
I wanna breathe into your will
See, I gotta hunt you
I gotta bring you to my hell
Baby, I wanna fuck you
I wanna feel you in my bones
Boy, I'm gonna love you
I'm gonna tear into your soul
Desire, I'm hungry
And I hope you feed me
How do you want me, how do you want me?
How do you want me, how do you want me?
How do you want me, how do you want me?
How do you want me, how do you want me?


Desire | Meg Myers (2015)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Engordaram Todos!

 



O mundo acordou em choque e o pior confirmou-se. Não há sobreviventes da noite de 24 de Dezembro. Engordaram todos!

Tudo que dá Milhões Não Prejudica o Ambiente (2)


 

"A mina de lítio do Romano, em Montalegre, está prevista para locais que o lobo-ibérico escolhe, há 30 anos, para se reproduzir por terem condições únicas. A exploração pode mesmo fazer desaparecer toda uma alcateia já a sofrer de furtivismo, destruição de habitat e com sucesso reprodutor muito baixo, alertam os conservacionistas" (wilder.pt)

Tudo Que Dá Milhões Não Prejudica o Ambiente (1)


domingo, 24 de dezembro de 2023

Porque Estamos Tão Individualistas?

 

 "O ênfase no sucesso pessoal, relacionamentos líquidos, abuso da palavra liberdade, ascensão dos chamados libertários. Todos são sintomas de um individualismo em ascensão, enquanto as famílias do filho único proliferam e a epidemia de solidão indesejada se espalha. Na internet, florescem filosofias individualistas extremas na forma de gurus da cultura da competição e esforço individual, ao mesmo tempo que os influenciadores ultraliberais propagam suas ideias contrárias ao público e ao comunitário. Como chegamos aqui? Qual a origem da ascensão da ideologia individualista?

A precariedade, o abismo entre os de cima e os de baixo e a falta de envolvimento e horizontes comuns afundam-nos numa deriva individualista cada vez mais distante do nobre espírito com o qual a ideia nasceu: impulsionar a liberdade pessoal e a autonomia diante da coerção da religião e do Estado.

Aleister Crowley, o ocultista britânico, era uma figura muito peculiar. Fundou a religião de Thelema: os seus membros praticavam orgias sagradas, rituais sincréticos ou experimentação mística com drogas. Falecido em 1947, encantou seus seguidores, enquanto entre seus adversários causou apenas escândalo e rejeição. Ele autodenominava-se "A Besta 666" e foi rotulado pela imprensa da época como "o homem mais malvado do mundo". A sua máxima filosófica, registada no Livro da Lei, era a seguinte: "Faz o que quiseres, será toda a tua lei".

O delirante Crowley, transformado em ícone pop, foi um destacado expoente das correntes mais individualistas, que, embora tivessem raízes anteriores, fortaleceram-se durante o século XX e continuam a fazê-lo no século XXI. Isso é considerado pelo ensaísta John Higgs no seu livro História Alternativa do Século XX: "Na filosofia do individualismo, o centro é o eu, e o eu tem prioridade sobre a sociedade." Exatamente como Crowley pensava.

Vivemos uma certa hiperinflação na ideologia individualista, causada não apenas pelo dogma económico dominante desde os anos 80, que enfatiza a iniciativa privada e a responsabilidade individual, impregnando todos os aspectos da sociedade, mas também pela revolução nas tecnologias digitais. Esses dispositivos, embora façam muito para nos conectar, também geram conexões fracas, enfraquecem a interação física e facilitam o isolamento.

Manifestações de individualismo incluem o abuso da palavra liberdade, ênfase no sucesso pessoal, busca pela singularidade ou a liquidez dos relacionamentos sentimentais. Também a baixa taxa de natalidade e a proliferação de filhos únicos: em 2021, segundo o Eurostat, nasceram apenas 1,19 crianças por mulher em Espanha, um número cada vez mais baixo. Também o número de pessoas que vivem sozinhas: 27% dos lares em 2021, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, 20% a mais do que uma década antes. Ou a epidemia de solidão indesejada: um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra que 25% dos idosos na Europa estão sozinhos, mas não querem estar.

E a atual preocupação com as identidades é paradoxal: por um lado, faz-nos sentir afiliados a coletivos, mas também é baseada na reivindicação da própria diferença.

As filosofias individualistas extremas florescem na internet, seja na forma de gurus da cultura da competição e esforço individual como também de influenciadores ultraliberais contrários ao público e inimigos dos impostos, afins, por exemplo, ao presidente argentino, Javier Milei. Embora o termo individualismo tenha sido tradicionalmente usado pejorativamente, agora surgem correntes que o reivindicam como uma virtude.

"Odeio parecer um velho marxista", diz Richard Sennett, "mas o individualismo não é uma categoria cultural inocente, a sua fundamentação está na economia." Segundo o sociólogo norte-americano, autor de obras como "A Corrosão do Caráter" ou "O Declínio do Homem Público", a questão também é de classes. As elites não são individualistas, predomina certo corporativismo e, às vezes, diz-se que a classe alta é a que tem maior consciência de classe e organiza-se melhor para defender seus direitos. O individualismo é promovido entre as classes médias e baixas, onde as novas formas de trabalho oferecem poucas experiências sociais e incentivam a competição. O aumento do individualismo está associado ao aumento do trabalho de escritório e das profissões liberais, menos propensos à união dos trabalhadores do que o trabalho industrial tradicional, conforme descobriu um estudo das universidades de Waterloo (Canadá) e Arizona (EUA).

"A modernização e o aumento do capitalismo em detrimento do comunitário", explica a filósofa Carolina del Olmo, autora de Onde Está Minha Tribo? Ela exemplifica isso com a diminuição das relações sociais densas: desde a transformação da vida na aldeia (com todos os seus inconvenientes) para a vida urbana até a substituição da família extensa pela família nuclear moderna, passando pelo emprego estável que se torna precariedade e mudança constante.

Del Olmo observa essa dissolução do social especialmente na criação dos filhos: onde antes era feita entre muitos membros da família extensa e até mesmo vizinhos circunstantes, agora os pais (mais especificamente, as mães) têm que assumir a criação sozinhos ou entregar os cuidados a terceiros. Mas, como diz um provérbio africano, para criar uma criança é preciso toda uma tribo.

Embora em algumas sociedades antigas, como a democracia ateniense ou a república romana, a condição de cidadão, embora restrita, implicava a participação na vida pública, nas sociedades individualistas contemporâneas predominam os interesses pessoais. Em Espanha, observa-se que, embora a política seja o entretenimento nacional, a filiação a partidos e sindicatos é baixa, assim como é modesto o associativismo, seja em associações políticas ou sociais, como culturais ou de lazer. A taxa de associativismo é de 25%, em comparação com 43% na média europeia. Baixa em comparação com outros países da região, como França (51%) ou Alemanha (48%), segundo um relatório da Fundação BBVA de 2019. Os países nórdicos têm taxas muito altas, como Dinamarca (92%) ou Suécia (83%), segundo outro relatório da mesma entidade de 2013.

"Todos os atores das sociedades modernas, uns mais outros menos, sãp individualistas", explica Danilo Martuccelli, sociólogo da Universidade de Paris; "é evidente que as nossas paixões estão mais nas nossas vidas, nos nossos amigos, nas nossas ocupações, nas nossas paixões de consumo cultural do que no bem coletivo ou político". O compromisso com os assuntos da polis muitas vezes é muito pesado para ser compatível com a exploração da liberdade e a busca por experiências.

"A grande incerteza associada à vida individualista acaba por levar a uma personalidade mais marcada por uma espécie de egoísmo de náufrago", diz Del Olmo; "quando não tens uma rede de apoio e é mais frágil, a reação de salvar a tua própria pele é mais instintiva". O consumismo colabora "como uma escola de personalidade muito individualista e egocêntrica. Essa maneira de estar no mundo em que tu podes escolher tudo, como se tudo fossem produtos para o carrinho do supermercado".


DO RENASCIMENTO À PÓS-MODERNIDADE

O individualismo é uma postura paradoxal. Nos seus primórdios, representou um progresso para as sociedades e contribuiu para a superação do Antigo Regime. Colocar o foco no indivíduo permitiu a conquista das liberdades e a construção das democracias liberais. No entanto, as tensões entre o individual e o coletivo são inerentes à experiência humana e continuam inevitavelmente no cerne dos debates. Quantos impostos devemos pagar? Quanto os serviços públicos devem abranger? Qual é minha responsabilidade nos problemas ambientais? O individualismo exacerbado, conforme proposto atualmente, pode levar à atomização e ao desgaste da sociedade.

"Colocar o indivíduo no centro do pensamento moral e político, o que aconteceu a partir do Renascimento, deu origem, por exemplo, às diferentes declarações de direitos humanos fundamentais", explica a filósofa Victoria Camps, autora, entre outros, de Paradoxos do Individualismo. O objetivo do coletivo era alcançar a realização igualitária de todos os indivíduos. A paradoxo que Camps propõe reside no fato de que a liberdade individual trouxe consigo outros problemas: "Cada vez é mais difícil usar essa liberdade", acrescenta a pensadora.

O humanismo renascentista, portanto, costuma ser citado como uma origem do individualismo, embora o poeta inglês John Donne tenha escrito na época que "nenhum homem é uma ilha". Esse individualismo foi posteriormente apoiado pela Ilustração e pela Revolução Francesa, onde, ao abolir os privilégios, (quase) todos os seres humanos são indivíduos iguais em seus direitos. A partir desse substrato, as novas sociedades foram construídas. O liberalismo clássico propõe liberdade individual, limitação do poder do Estado, propriedade privada. Adam Smith enfatizou, por exemplo, a conveniência da busca do interesse próprio para alcançar o bem comum, mediante a intervenção da "mão invisível" do mercado. O termo individualismo, de acordo com o consenso aceite, surgiu no início do século XIX, ao mesmo tempo que o socialismo.

Após a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se o Estado de bem-estar, alimentado por ventos social-democratas, que alcançou um equilíbrio maior entre a responsabilidade individual e a solidariedade coletiva. "Foram concedidos direitos sociais que 'desmercantilizaram' certas prestações ou seguros, o que permitiu um aprofundamento do individualismo. 'Livres' de certos medos, como o desemprego, a doença ou a velhice, as pessoas sentiram-se mais livres na escolha das suas obrigações sociais. A família, os amigos, a comunidade foram percebidos como menos 'essenciais' para a própria sobrevivência", diz Martuccelli. Paradoxalmente, o Estado social foi crucial para o aumento do individualismo. Também a contracultura dos anos sessenta, de orientação esquerdista radical, promoveu um tipo de individualismo criativo que está no cerne da ideologia de Silicon Valley e dos estilos de vida promovidos pelo neoliberalismo.

"Bowling Alone", a obra poética do sociólogo Robert D. Putnam: durante os anos 80, nos Estados Unidos, houve um declínio nos jogos de bowling em grupo. As pessoas jogavam sozinhas. Os padrões de sociabilidade estavam a mudar. Putnam publicou esse ensaio em 2000 denunciando, desde o título, o enfraquecimento dos laços comunitários. Para o autor, essa falta de interação social ameaçava a democracia. "Alexis de Tocqueville, ao escrever 'A Democracia na América' no início do século XIX, assumiu que o individualismo e a igualdade andavam de mãos dadas, mas verificou-se que não é o caso", aponta Sennett. Nos Estados Unidos do século XX, o individualismo sempre encontrou solo fértil e continua a orientar os demais países ocidentais. Ayn Rand fez carreira lá, a romancista russo-americana criadora do objetivismo, defensora de um individualismo radical que beirava a celebração do egoísmo (não necessariamente sinónimos) e do triunfo dos mais fortes. "Rand não acreditava que a preocupação com o bem-estar dos outros devesse limitar a liberdade pessoal", escreve Higgs. As suas teorias também inspiraram a religião satanista de Anton LaVey.

Além de certos satanistas, Rand inspirou correntes mais neoliberais: um de seus seguidores mais próximos foi Alan Greenspan, que se tornou presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos. O neoliberalismo, inicialmente uma corrente quase subterrânea promovida pela pequena Sociedade Mont Pelerin e por um punhado de economistas austríacos, acabou impondo-se nos anos 80, quando Reagan e Thatcher chegaram ao poder e encerraram a hegemonia social-democrata. Eles promoveram a iniciativa e a responsabilidade individual, com uma rejeição veemente ao coletivo.



A SOLIDÃO NO STARBUCKS

"A desigualdade entre os de cima e os de baixo tem fomentado o individualismo dos do meio", diz Sennett. Ele vê isso nos cafés da cadeia Starbucks: se o café clássico era um lugar para socializar, nesses lugares geralmente abre-se o portátil para se perder em seus pensamentos. Também nos centros das grandes cidades devoradas pelo turismo, que já não estão prontas para a vida social, mas para os negócios. "As nossas redes sociais estão cada vez mais curtas e íntimas, só nos relacionamos com familiares ou amigos mais próximos", acrescenta o sociólogo.

O comunitário é reivindicado nestes tempos fragmentados pelo nacionalismo, que, diante de sociedades cada vez mais atomizadas, propõe um sentimento de pertença à nação. A extrema direita reivindica visceralmente valores tradicionais como a família e a pátria. Da esquerda, ainda se destaca a necessidade de sustentar o público e o comum longe da selva da competição e do mercado. As condições do futuro podem mover o pêndulo para um lado: o pensador francês Bruno Latour acreditava que a ameaça da mudança climática, da qual não podemos nos proteger sozinhos, levaria a novas formas de comunidade. Na última pandemia, por exemplo, já se experimentou um refluxo do coletivo: o coronavírus tornou evidente a íntima conexão entre todos os habitantes da Terra.
“Outra maneira de reivindicar a comunidade”, diz Camps, “seria o republicanismo bem entendido: preocupar-se com a res pública e ter consciência como cidadãos”. Como alcançar o equilíbrio entre o individual e o coletivo? Essa é uma pergunta de difícil resposta. “Muitos debates atuais (socialismo versus liberalismo, coletivismo versus libertarianismo, justiça social versus responsabilidade individual) são variantes dessa tensão fundamental. Exceto por posições extremas, as sociedades buscam misturas entre ambos os princípios”, conclui Martuccelli. A tarefa fundamental da política nas sociedades contemporâneas é, precisamente, estabelecer um equilíbrio aceitável entre o individual e o coletivo. Entre o eu e o nós.

Por qué somos tan individualistas | Sergio C. Fanjul | El País | 17 de Dezembro 2023

sábado, 23 de dezembro de 2023

Nem Duas Vezes, Nem Uma - Agora o Carteiro Nunca Bate à Porta

Uma das muitas horríveis coisas que o governo de Passos Coelho e Paulo Portas fez foi a privatização dos Correios. Um setor estratégico que nunca deveria ter saído da esfera pública. Um dos melhores serviços públicos que tínhamos, e um dos melhores do mundo, que, de repente, ficou quase ao nível do Burkina Faso. O jornal espanhol La Vanguardia trouxe esta semana uma interessante crónica sobre a privatização dos correios britânicos, o Royal Mail, que poderia ser uma triste crónica sobre os nossos CTT. Aqui fica em tradução livre:



"Antigamente, no Reino Unido, o carteiro costumava bater à porta pelo menos duas vezes de segunda a sexta-feira (de manhã e à tarde), uma vez ao sábado e, além disso, quantas fossem necessárias para entregar telegramas ou cartas certificadas. Há cerca de vinte anos, isso foi reduzido para uma entrega diária. Durante a pandemia, devido às ausências por doença, passou a ser uma entrega a cada três ou quatro dias. E agora, com a aproximação das festas, é sorte se as felicitações de Natal chegarem. O famoso Royal Mail já não é o que era. De longe.

Fundado em 1516 como um departamento sob o controle do governo, foi gradualmente privatizado entre 2013 e 2015 e tornou-se um verdadeiro desastre, com a moral muito em baixa entre os seus 163 mil trabalhadores (sendo o principal fornecedor de serviços postais do Reino Unido), que se sentem mal remunerados e sobrecarregados de trabalho. Um carteiro percorre em média 18Km por dia, dá mais de vinte mil passos (para quem está de olho nessas coisas), termina o dia às três da tarde e recebe entre 30 e 35 mil € brutos por ano.

Num país em que 16 milhões de pessoas (um quarto da população) sofrem de algum tipo de deficiência a longo prazo, dez milhões estão permanentemente de baixa e cinco milhões vivem exclusivamente de subsídios do Estado, o Royal Mail é um exemplo de como o Reino Unido se tornou novamente o doente da Europa. O absenteísmo é generalizado, passam apenas cinco minutos desde que alguém preenche um pedido online e recebe a oferta de trabalho, mas muitos dos novos trabalhadores mal duram um dia ou dois no emprego, o tempo que levam para perceber que têm que passar o dia a andar em vez de distribuir confortavelmente com uma carrinha.

A necessidade de competir com a Amazon, DHL, UPS, Federal Express e outras empresas de entrega exacerbou a crise. Teoricamente, o Royal Mail tem a obrigação de entregar cartas de segunda a sábado em todas as ruas do Reino Unido, mas na prática isso não é cumprido. Dois jornalistas do Sunday Times disfarçados descobriram que na realidade há uma instrução implícita para dar prioridade às encomendas, em detrimento do restante correio, que pode ficar dias e dias nos centros de distribuição. Um idoso, surpreendido por não receber nenhum cumprimento ao completar 94 anos, foi pessoalmente à estação de correios mais próxima e recebeu meia centena de cartões que estavam acumulados há semanas. Isso acontece se o responsável por uma rua ficar doente.

Os cartões de Natal digitais substituíram em grande parte os de papel (a era de Gutenberg está a morrer), e entre isso e os atrasos do Royal Mail, os britânicos terão sorte se receberem um cartão de Natal antes de comerem as rabanadas ou antes do Pai Natal se apresentar com o trenó. Pior ainda, milhões de cidadãos perdem rotineiramente notificações oficiais importantes, extratos bancários e consultas do Serviço Nacional de Saúde para cirurgias ou visitas ao médico, porque chegam tarde. Nos tribunais, há centenas de milhares de casos pendentes de cidadãos que recorreram contra multas porque nunca receberam notificação. Hoje, os pacotes da encomendas mandam, porque dão mais dinheiro (não só há mais, como também são cada vez maiores, ocupam até 90% do espaço disponível nos armazéns e centros de distribuição e sobrecarregam os carrinhos de entrega).

Antigamente, não só o carteiro batia duas vezes, mas também era um profissional que sabia de tudo, os nomes dos vizinhos, até em que casas do seu percurso havia cães bravos, ou pisos escorregadios com a chuva, ou idosos com dificuldades de mobilidade a quem faziam o favor de lhes entregar a correspondência. Hoje, a maioria dos trabalhadores reformou-se foram substituídos por trabalhadores temporários com salários muito mais baixos que, ao aperceberem-se disso, não querem esforçar-se tanto. Consequência: ao chegar à tarde, os pacotes já foram entregues, mas as cartas e os cartões ficam a acumular pó. E os clientes mudam para a concorrência (em 2004, o Royal Mail entregou vinte biliões de correspondências, no ano passado, apenas oito biliões).

Há muitas coisas que o Estado não faz melhor do que a empresa privada. Mas quanto à entrega de cartas, sempre se saiu muito bem. Hoje, a campainha não toca de jeito nenhum e o carteiro está de baixa ou a entregar encomendas.

El cartero nunca llama a la puerta | Rafael Ramos | La Vanguardia

domingo, 17 de dezembro de 2023

Manual do Ditador Moderno



 "Os segui­do­res do Duce tinham foto­gra­fias per­so­na­li­za­das. Os de Hitler ouviam sua voz e viam sua ima­gem a toda hora. Esta­line era o Par­tido, mas tam­bém o avô Frost, o Pai Natal russo. Mao, o grande Timo­neiro, o rei filó­sofo do Ori­ente, e Duva­lier, Papa Doc, o pri­meiro pro­te­tor vodu do Haiti. Todos  apre­sen­ta­ram-se como homens que vinham do povo, poten­ci­a­li­za­ram uma nova forma de fazer polí­tica: a glo­ri­fi­ca­ção do indi­ví­duo perante as mas­sas. Sabiam, como Maqui­a­vel, que é mais seguro ser temido do que amado, mas que­riam per­du­rar, pre­ci­sa­vam ser acla­ma­dos; eram obri­ga­dos a criar um apa­rato repres­sivo tanto a ponto de man­ter a ilu­são de seu apoio popu­lar. Este é o para­doxo do dita­dor moderno que ana­lisa o livro dita­do­res. O culto da per­so­na­li­dade no século XX, do his­to­ri­a­dor holan­dês Frank Dikötter (Cliff, 2023).

Ao longo do século pas­sado, milhões de pes­soas acla­ma­ram os seus dita­do­res, ape­sar da bru­ta­li­dade dos seus regi­mes. Os ros­tos des­ses man­da­tá­rios apa­re­ciam em muros, facha­das de edi­fí­cios e até em pro­du­tos de con­sumo diá­rio. Após um con­trole fer­re­nho da imprensa e da edu­ca­ção, eles tor­na­ram-se oni­pre­sen­tes gra­ças à rádio e à tele­vi­são. Dita­do­res de lati­tu­des muito dís­pa­res viram como a popu­la­ção des­fi­lava durante dias em frente a seus palá­cios pre­si­den­ci­ais, car­re­gando obje­tos sim­ples, meda­lhas ou insíg­nias, para mos­trar sua ade­são. O essen­cial era apa­ren­tar que a von­tade bro­tava do cora­ção das pes­soas. O culto à per­so­na­li­dade não pro­cu­rava con­ven­cer nem per­su­a­dir, mas con­se­guir a obe­di­ên­cia atra­vés do iso­la­mento, da sub­mis­são do indi­ví­duo na massa. Impreg­nado de supers­ti­ção e de magia, con­sa­grou-se como uma forma de reli­gi­o­si­dade popu­lar cul­ti­vada desde cima. Hitler apre­sen­tava -se como um Mes­sias unido ao povo ale­mão por um vín­culo mís­tico. Duva­lier enco­ra­jou rumo­res sobre seus pode­res sobre­na­tu­rais. E os paí­ses comu­nis­tas logo adver­ti­ram que as invo­ca­ções ao líder como figura sagrada davam melho­res resul­ta­dos do que o mate­ri­a­lismo dia­lé­tico, estra­nho à maior parte da popu­la­ção.

A leal­dade a uma única pes­soa era a coisa mais impor­tante nes­sas dita­du­ras. Seguir um credo pode criar divi­sões e fac­ções. Mus­so­lini menos­pre­zava a ide­o­lo­gia e orgu­lhava-se publi­ca­mente de seguir ape­nas seus ins­tin­tos. Hitler, além dos ape­los ao naci­o­na­lismo e ao anti-semi­tismo, não pre­ci­sou de muito mais. Quem real­mente atraía Men­gistu, na Eti­ó­pia, não era Marx, mas Lenine, que havia cri­ado a van­guarda revo­lu­ci­o­ná­ria. Esta­lin e Mao mor­re­ram de cau­sas natu­rais depois de terem sido objeto de ado­ra­ção durante déca­das. Duva­lier dei­xou o poder para seu filho, que pro­lon­gou o culto à sua per­so­na­li­dade. E o clã Kim, Na Coreia do Norte, con­se­guiu che­gar à ter­ceira gera­ção de culto ao líder supremo. Mas cui­dado, por­que no mesmo momento em que o medo desa­pa­rece, a fic­ção do amor popu­lar des­mo­rona: o poder do casa­mento Ceau­cescu desa­pa­re­ceu ao vivo. O tra­di­ci­o­nal dis­curso tele­vi­si­o­nado em frente ao Palá­cio do Povo de 1989 não mos­trou as "espon­tâ­neas demons­tra­ções de apoio incon­di­ci­o­nal", mas milha­res de mani­fes­tan­tes cer­cando o maior edi­fí­cio admi­nis­tra­tivo do mundo.

Os dita­do­res que per­du­ram con­ju­gam na per­fei­ção o culto à per­so­na­li­dade e o ter­ror. Numa pri­meira fase, o líder tem que con­tar com a influ­ên­cia neces­sá­ria para aba­ter seus opo­nen­tes e obrigá-los a que o acla­mem em público. O culto rebaixa ali­a­dos e rivais, obriga-os a cola­bo­rar em comum sub­mis­são. Mas, à medida que atinge a matu­ri­dade, o líder não pode ter cer­teza de quem está apoi­ando e quem real­mente se opõe à sua figura. Pre­cisas ini­ciar a purga, a lim­peza interna. Os diri­gen­tes que sobre­vi­vem, as outras faces visí­veis do regime tam­bém são cúm­pli­ces dos seus cri­mes, pelo que os seus suces­so­res man­te­rão o culto à sua per­so­na­li­dade. Desen­ca­de­ado o ter­ror, o mais impor­tante é man­ter a ilu­são de que o poder con­ti­nua des­can­sando num vín­culo pes­soal com o povo.

Hitler, que logo des­co­briu sua capa­ci­dade de falar para as mas­sas, cal­cu­lou minu­ci­o­sa­mente suas apre­sen­ta­ções em público até o fim. A sua pri­meira cam­pa­nha de ima­gem foi pro­je­tada por Alfred Rosen­berg ao com­ple­tar 34 anos. Naquele dia, ele apa­re­ceu retra­tado sob um fundo preto em toda a imprensa. Mein Kampf foi sua bio­gra­fia polí­tica, mas tam­bém sua lenda: cri­ança e artista pre­coce, lei­tor voraz, ora­dor nato, Mes­sias do povo ale­mão. Como líder do futuro, ele não incen­ti­vou as está­tuas, elas eram do pas­sado. Pelo contrário, o seu rosto e sua voz, che­ga­ram a toda parte. Mes­tre do dis­farce, absor­veu as emo­ções da mul­ti­dão para fundi-las numa core­o­gra­fia per­feita ensai­ada em milha­res de comí­cios e des­fi­les. Ao saber da sua morte, uma onda de sui­cí­dios per­cor­reu a Ale­ma­nha.

Lenin tam­bém foi glo­ri­fi­cado em vida. Desde o momento da sua morte, em 1924, Sta­lin fez-se pas­sar pela sua ala mais fiel. Qua­tro anos depois, enquanto a mul­ti­dão se aglo­me­rava no des­file do pri­meiro de Maio, desen­ca­deou o pri­meiro grande expurgo do Par­tido. A sua devo­ção não se ves­tiu de culto ao líder, mas de revo­lu­ção pro­le­tá­ria. Sta­lin encar­nava o melhor da classe ope­rá­ria, mas tam­bém diri­gia todas as van­guar­das artís­ti­cas. Sua ima­gem muito cui­dada de espon­ta­nei­dade foi con­sa­grada na Grande Guerra Patri­ó­tica. Alcan­çada a vitó­ria, rele­gou todos os seus artí­fi­ces mili­ta­res que lhe dis­pu­ta­vam a gló­ria. Pouco antes de mor­rer, enco­men­dou uma grande está­tua sua no local onde con­fluem o Volga e o Don.

Mao Zedon, que conhe­ceu Sta­lin no seu ani­ver­sá­rio de 70 anos no Tea­tro Bolshoi, encon­trou a sua mis­são na mobi­li­za­ção dos cam­po­ne­ses da China. Depois de ficar sem rivais, sem con­cor­ren­tes, deci­diu for­jar a sua ima­gem de teó­rico. Ofi­ci­al­mente, ele con­cen­trou-se na revo­lu­ção cul­tu­ral, mas, como Sta­lin, diri­gia pra­ti­ca­mente todos os assun­tos de governo pes­so­al­mente. Aca­bou sepa­rado, como uma figura remota, divina, que nunca saía da Cidade Proi­bida dos impe­ra­do­res.

Todos os dita­do­res, por fim, quei­ma­ram livros, pro­fa­na­ram túmu­los, des­tru­í­ram tem­plos e igre­jas, apa­ga­ram os nomes das ruas e até os rótu­los das lojas. Eles rees­cre­ve­ram o pas­sado para for­jar seu relato. Esta ana­to­mia do auto­ri­ta­rismo, de suas dife­ren­tes ori­gens e uti­li­za­ções, mos­tra alguns aspec­tos inquie­tan­tes que che­ga­ram até aos nos­sos dias. Em tem­pos de incer­teza, de vola­ti­li­dade e de revi­si­o­nismo, rea­pa­re­cem algu­mas das pio­res figu­ras do século XX, sob o culto à ima­gem que eles mes­mos cri­a­ram como subs­ti­tuto da polí­tica.

Gut­maro Gómez Bravo (Historiador) | El País (12 de Dezembro de 2023)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Se Me Traíste Não Precisas de Me Contar Pormenores

" São cada vez mais raros estes amores.


O que eu acho é que agora as pessoas confundem paixão com amor. E depois quando a paixão acaba - que é por natureza uma coisa efémera, muito intensa, avassaladora e felizmente as pessoas unem-se pela paixão e fazem um projeto de vida - mas depois a paixão tem as suas vicissitudes e acaba. E o que eu digo a muitos casais jovens que me procuram numa situação de rotura ou mesmo depois de separados e me dizem "o amor acabou", eu costumo dizer "não, o amor não começou", porque o amor é uma construção e essa construção demora tempo e, no meu entender, é preciso ultrapassar as crises. 

Eu não sou nada contra as relações curtas e casuais, não tenho nenhuma posição moralista sobre isso, o que eu acho é que uma relação amorosa longa é uma relação que confere estabilidade emocional e confere segurança psicológica. E essa é uma dimensão importante da nossa vida. Nós temos a sobrevivência biológica (comer e beber) mas depois há outra parte muito importante que é a sobrevivência psicológica e, no meu entender isso deriva muito das relações que nós tivemos com os nossos pais na infância (que são importantes emborra não totalmente determinantes) e depois as nossas relações com o par romântico. São relações muito importantes e estruturantes da nossa maneira de estar no mundo. 

O casamento como instituição eu acho que está em crise e teve um peso muito grande na vida das pessoas. É como se as pessoas tivessem que ser como as princesas e os príncipes, tivessem que casar e ser felizes para sempre. O livro abre com uma citação de um mestre americano que diz que "o casamento é um estado horrível, a coisa pior é ser solteiro". Eu concordo muito com isso. É muito difícil ter uma relação ao longo do tempo com uma pessoa, mas, como eu lhe dizia é estruturante, transmite serenidade e é um antídoto para a ansiedade das nossas vidas. Sobretudo se formos capazes de partilhar a vulnerabilidade que todos nós temos com a pessoa que está ao nosso lado. Há vários ingredientes dessa relação estável. Um deles é a delicadeza no trato. É muito interessante porque nós verificamos que muitos casais não se tratam bem. Não têm gentileza, amabilidade. Isso é fundamental numa relação a dois. Pensarmos o que é que as nossas palavras vão provocar no outro. E depois há outra coisa também que é muito característica da sociedade atual, que é a pessoa estar muito auto centrada. Ser muitas vezes narcísica, cultivar o seu bem estar pessoal, o bem estar do seu corpo e do seu espírito. Isso também é um ingrediente contra a relação a dois porque temos que pensar no outro. 

Mas também defende que há coisas que não devemos dizer...

Sim, isso é também outro mito, que se deve dizer tudo ao parceiro(a) com quem estamos. Eu acho que há coisas que são do nosso íntimo, por exemplo fantasias que nós temos a meio da noite, pensamentos estranhos que nos aparecem... Não temos que partilhar tudo. E, muitas vezes, essa partilha vai ferir o outro. Na história desse livro "Para tão curtos amores tão longa vida" entre o João e a Luísa, eu fiz de propósito e os dois foram infiéis, porque a infidelidade é um tema muito importante na relação prolongada e então pus um a contar e o outro a não contar. Isso foi propositado para suscitar a discussão sobre um tema que me interessa muito que é, justamente, revelação, o que é que nós devemos contar. E quem ler o livro fica com essa dúvida. O que é que é certo contar ou não contar. Não tenho uma resposta para isso, o que eu acho é que, em cada situação cada pessoa deve refletir sobre o que deve contar e não deve ter o mito de contar tudo o que se passa à pessoa com quem vive. 

É muito difícil superar de uma traição?

O caso do João e da Luísa do meu livro ilustra isso. Ele soube da infidelidade da mulher e muitos anos depois continua a falar sobre isso. Eu acho que nós temos que desdramatizar um pouco a monogamia e a infidelidade e não temos que dar um cunho tão crítico a certas situações de infidelidade porque elas são muito diversas. Por exemplo, eu digo no livro que há casais felizes onde aparecem traições. E as pessoas não sabem porquê. Foi uma situação que ocorreu, não sabem explicar porquê. Por exemplo, o caso da Luísa que foi um caso que durou um ano, não é tão pouco quanto isso, ela, de facto nunca quis pôr em jogo o seu casamento. Foi uma coisa que aconteceu, que foi seguramente importante para ela, não foi uma relação de curta duração, para uma relação extra conjugal uma relação de um ano é significativo, mas nós podemos pensar que a ligação com o João era a relação mais importante para ela. Ela nunca quis pôr isso em causa. O problema é que ele pôs em causa quando se sentiu traído. Esse casal tem que fazer um movimento que é um movimento de reparação no caso de quererem continuar juntos e esse movimento de reparação é difícil de fazer porque as pessoas ficam muito magoadas. 

O ciúme do homem é diferente do ciúme da mulher. O homem tem muito ciúme ligado à sexualidade. Portanto ele fez muitas perguntas "quantas vezes fizeste amor com ele"? "como é que foi"?, e ela nunca respondeu. E fez muito bem em não responder. Porque não se pode alimentar essa situação porque a pessoa que está a fazer perguntas é insaciável e, se faz dez a seguir faz trinta. Portanto, é preciso dizer "isto aconteceu, vamos agora projetar-nos no futuro". Não esquecer porque isso não é possível, mas vamos avançar no sentido da reparação do nosso sofrimento. Agora, se a pessoa está permanentemente a atualizar o que se passou nessa altura não é possível continuar. 

Acredita na monogamia ou é uma construção cultural e social?

É uma construção social e cultural. O que eu diria sobre isso é que a monogamia é desejável mas é difícil. 

Entrevista de Inês Menezes a Daniel Sampaio no programa Fala com Ela a propósito deste seu último livro. 

domingo, 10 de dezembro de 2023

Desculpa Pela Enorme Carta Que Não Te Escrevi

 Certo dia, Mark Twain escreveu a um amigo e pediu-lhe desculpa por ter escrito uma carta tão longa, porque não teve tempo de escrever uma mais curta. Hoje, infelizmente, é tudo muito triste, porque já não se escrevem cartas, nem longas, nem curtas, nem assim-assim. 


O Espírito de Natal está No Centro Comercial

 Apenas 15% dos portugueses participam em iniciativas religiosas durante o Natal. Claro que a maioria faz a árvore e o presépio - e coitados dos pinheiros, arbustos e musgo do monte! - mas quase ninguém, provavelmente só mesmo meia dúzia de velhos, é que ainda vai à igreja. 

Mas certamente que 99% dos portugueses vai às lojas porque o verdadeiro espírito de Natal está no Centro Comercial! 




*Notícia publicada no Jornal de Notícias de 10/12/2023

sábado, 9 de dezembro de 2023

Conversas Improváveis (77) - O Filho do Empresário


Os encontros acontecem quando menos se espera, mas acontecem mais com aqueles que falam mais com estranhos. Dois estranhos, dois homens, encontram-se na rua e ficam tanto tempo a conversar que os telemóveis de ambos acabam por tocar várias vezes, como se fosse a realidade a chamá-los à razão. 

Um dos candidatos à liderança do PS assumiu-se como "neto de sapateiro e filho de empresário". Ora se eu tivesse que me assumir com uma frase semelhante diria que sou neto de criança que aos quatro anos teve que andar a pedir e filho de mulher que, muitas vezes, ainda tinha que chamar os bois antes de ir para a escola sem calçado de jeito. 

O desconhecido que tinha à minha frente, bem mais jovem do que eu, e conforme a conversa foi avançando confessou que nasceu num berço de ouro. Filho de empresário daqueles que tem fábrica e emprega pessoas. Foi muito interessante. Dois berços completamente diferentes e, não terá sido por isso mesmo surpreendente que me tenha confessado ter votado no CH. Mas, entretanto, arrependeu-se. Ao que parece apercebeu-se que só contestam mas não apresentam soluções. 

Falamos bastante de política. Perguntou-me o que achei de Passos Coelho... Bom, muito haveria a dizer sobre Passos Coelho. O primeiro-ministro mais impreparado no momento mais difícil da nossa democracia. O político, como tantos outros do PSD, que mentiu em campanha eleitoral. Passou a vida a gritar "chega de austeridade" e depois foi o que se viu. Salivavam quando se falava na eventualidade de se ter que se chamar o FMI, chumbou-se o PEC4, o governo caiu, veio o FMI e fomos para eleições. PSD e CDS formaram governo e logo se seguida chegaram os cortes de salários e o aumento "colossal" de impostos e o discurso do temos que empobrecer. E eu não quero um primeiro-ministro que a única solução que dá é: não sejas piegas, se não estás bem emigra. Um filho quando chora porque tem de comer, os pais têm que fazer de tudo para pôr comida na mesa, e não se virar e simplesmente dizer: "se não estás bem põe-te"! E no entanto, depois de todos esses roubos de salários, reformas feriados, encerramentos de hospitais, tribunais, maternidades e privatizações mal amanhadas, depois de tudo isso, o país ainda teve mais dívida do que em 2011. 

Percebi também que tem quase um ódio a António Costa que no entanto acabou por não explicar. No entanto, curiosamente, nutria simpatia por José Sócrates. 

Falou-se ao de leve sobre a questão da habituação e, no entender dele, o Estado deveria construir mais casas. Mas depois ficou calado quando lhe coloquei as coisas em perspectiva. Explica-me então, como é que, se Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo, se há escolas a encerrar por falta de alunos - lembrar por exemplo que eu treino ténis-de-mesa numa antiga escola primária que não está a ser utilizada - e então, se a população é cada vez menor, porque raio agora faltam casas? Mas eu expliquei, o problema foram os vistos Gold do tempo de Passos Coelho que este governo PS não quis travar, e o turismo e empresários a comprar ruas inteiras e milhares de pessoas a ser expulsas dos centros das cidades para fazer hotéis e alojamentos locais para turistas. O preço das casas disparou, as pessoas têm de sair do centro das cidades onde trabalham e sair para a periferia (onde os preços também disparam) e os jovens nunca na vida que conseguirão comprar casa com a merda dos salários que se pagam em Portugal, ainda que o salário mínimo tenha sempre subido com este governo. 

Foi uma conversa muito interessante, de perspectivas e vivências e de classes sociais muito diferentes. Aliás, lá pelo meio lembrei-lhe que em Portugal, e são dados oficiais da OCDE, um pobre precisa de cinco gerações para subir um degrau na escola social. Portanto, não é bem assim essa tanga do esforço e do mérito. Um pobre tem que subir numa escada rolante que está a descer, ao passo que alguém da classe média ou alta sobre uma escada rolante que está a subir consoante o dinheiro que os papás têm. 

E houve empatia. Se não houvesse os dois estranhos não ficariam na rua e ao frio a conversar infinitamente. Ele até falou de coisas pessoais. De ter ido ao psiquiatra do causa do défice de atenção. E que então, finalmente, e vinte e oito anos depois, percebeu como funciona uma pessoa normal. Mas deixou de tomar a medicação porque tomar a droga fá-lo ser outra pessoa. E ele quer continuar a ser a mesma pessoa de sempre, criativa, e que pensa num monte de coisas ao mesmo tempo... (mas eu também penso num monte de coisas ao mesmo tempo e a minha cabeça nunca para de pensar...)

E, mesmo não tendo a mínima simpatia pelo governo, achou ridículo que os media tivessem noticiado que o ministro tinha ganza em casa. Qual é o problema, é proibido? O que é que nós temos que ver com isso? E ele mesmo confessou que, por vezes, também fuma umas cenas. Ainda que, por estes dias, lhe tenha dado uma crise de pânico...

Orgulhosamente falou do mesmo telemóvel que mantém há sete anos. Ah, que pena que já não ando com o Nokia! Mas não deixa de ser curioso. Disse-lhe que se os iPhones forem para três ou quatro mil euros não duvido que as pessoas iriam comprá-los na mesma, mesmo que tenham salários de mil. O que é absolutamente insano e revelador das prioridades trocadas com que vive esta sociedade consumista. E não deixa de ser curioso porque ele, filho de empresário e que vive sem quaisquer dificuldades, não sente necessidade de ostentar, e não ostenta porque não precisa. Porque todos os que o rodeiam sabem que pode ter o que quiser.

Achei delicioso quando ia dizer pret... e censurou-se. Parou, quase que olhou em volta e perguntou se poderia dizer "pretos" a propósito de uma viagem do pai a um país africano. Eu não tenho problemas que digam pretos, eu mesmo o digo. O racismo não está em apontar uma característica pessoal, está sim, depois, em discriminar alguém que vai ver uma casa e nega-se o arrendamento por constatar que essa pessoa é... preta. 

Não sou psicólogo e posso estar errado mas pareceu-me que talvez não se integre bem onde está. Ele mesmo disse que não se identifica com os amigos. Talvez esteja ainda à procura de si mesmo e do seu lugar no mundo. Deixou de beber café e começou a tomar banhos gelados - "se toda a gente anda a tomar banhos gelados vou experimentar" e quer-se disciplinar. 

Quando lhe falei que mantinha um blogue de jardinagem há uns quantos anos, disse que eu tinha uma pequena mina. "Pesquisa por SEO" (Search Engine Optimization) e disse-me que deveria rentabilizar, fazendo críticas de coisas que poderia comprar e fazer parcerias e depois ganharia dinheiro sempre que as pessoas clicassem nos links. Mas eu sei tudo, só que eu nunca quis fazer do meu blog um trabalho e impingir merdas às pessoas. Os meus blogs são diários. Não quero obrigações, não me interessa ter mais ou menos leitores. Se ninguém me ler, ótimo. Isto é essencialmente para mim. Nem tudo tem que ser feito a pensar em fazer dinheiro. 

E, curiosamente, também ele começou a escrever um diário. E será que ele também irá escrever sobre mim? 

 

A Mamar nas Cunhas do Estado

 


domingo, 3 de dezembro de 2023

Um Cheirinho a Salazarismo no Ar


No último mês uma série de acontecimentos deveriam fazer preocupar toda a gente, mas está tudo mais entretido com outros assuntos muito mais importantes como, por exemplo, escolher a melhor forma de foder dinheiro numa merda qualquer da Black Friday.

Há duas semanas a polícia retirou à força estudantes universitários de uma universidade que estavam a cometer o crime de dar uma palestra sobre o clima:

Ouvido pelo DN, Garcia Pereira considera que “chamar a polícia a uma universidade porque não se concorda com uma ideia que está a ser exposta” parece-lhe “ilegal e profundamente antidemocrático”. Com isto, o advogado – e um dos rostos das lutas estudantis durante a ditadura – tira uma conclusão: “Isto é mais grave do que durante o Estado Novo, porque estamos num Estado que se diz de direito democrático baseado na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”.


Não menos grave haver também notícias que a polícia andou a incomodar associações e a identificar pessoas que defendem a Paz na Palestina. 




E igualmente grave é, aqui em Gondomar, uma diretora de escola foi processada pelo Ministério da Educação por ter uma faixa com a seguinte mensagem dentro da escola: "Estamos a dar a aula mais importante das nossas vidas". 

“A tarja simplesmente transmite o sentimento da quase totalidade dos professores do agrupamento. Não está ligada a qualquer sindicato ou movimento político. Não estou a ver como estou a violar o dever de lealdade e neutralidade. Estou a ser parcial, sim, mas com o sentir dos professores”, reagiu ao JN Glória Sousa, considerando que se sente a viver numa “ditadura”.

“É incompreensível. Não foi cometido qualquer ilícito disciplinar. A argumentação é a de que a diretora terá tomado parte de uma causa. Esquece-se o Ministério de Educação que, antes de ser diretora, é professora. Não faz qualquer sentido”, sustenta o advogado do SPN, João Martins.

A situação de Glória Sousa merece “total solidariedade” do coordenador do SPN, João Paulo Silva, que apontao facto de várias escolas ainda terem tarjas colocadas nas fachadas e o facto de ser inédito um processo disciplinar deste âmbito. “É uma enorme censura o que está a ser feito”, crê João Paulo Silva, salientando que Glória Sousa nunca recebeu qualquer ordem para retirar a tarja. “Não há memória de um processo destes. É claramente um processo de intenções indigno”



São demasiadas coisas a acontecer ao mesmo tempo e muito graves. No entanto parece que está tudo bem porque não há grandes ecos, e a verdade é que as coisas não estão bem. E é sempre bom lembrar que "quem adormece em democracia acorda em ditadura". 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Já Nem Sequer Portugal é Perfeito - Elogio no El País a Portugal

E passou mais um ano desde que nos separamos de Espanha. Por cá sempre ouvimos o ditado  que "de Espanha nem bom vento nem bom casamento" e gente próxima dizer-me  que eles não gostam de nós. Contudo, cinco dias depois do golpe do 7 de Novembro e da demissão do primeiro-ministro António Costa, sai este texto de opinião no El País, intitulado: "Ni tan squiera Portugal es perfecto":

  


 "Imaginemos um país que, apesar de fazer fronteira com o nosso, nos faça viajar para além da realidade, nos transporte para o território onde os nossos desejos se materializam. Imaginemos aterrar em Lisboa e, uma vez superada a única experiência que torna os portugueses bravos, a sua incongruente forma de conduzir, chegarmos à maravilha do mundo que é o Campo de Ourique: o bairro sereno, longe do bulício turístico, que nos faz sentir imersos numa espécie de retiro espiritual. 

A partir desse momento, o único esforço a enfrentar será as nossas pernas, nesse interminável subir e descer de colinas que será compensado por uma sopa numa das tascas que imitam a receita secular das avós. Imaginemos que o empregado nos reconhece desde a segunda vez que nos sentamos na sua tasca e que nos passa, com cordialidade e delicadeza, a mão sobre o ombro. O milagre acontece: sentimo-nos em casa com o alívio adicional de não estarmos em casa. Estamos rodeados de portugueses de cabelo grosso que amam o seu paísinho tanto que não perdem uma única das suas rotinas nacionais. Depois de saborear o arroz caldoso que acompanha a melhor fritura de peixe do mundo, devoram, não sabemos como, uma daquelas sobremesas extremamente doces onde se encontram ovos, açúcar, leite, pão ou arroz. 

Invariavelmente, comentaremos como gostaríamos que o nosso país fosse um pouco assim, que diminuísse o ruído insuportável, o da vida pública e o da convivência, o que os meios de comunicação cospem e o que se suporta nos bares. Um pouco de silêncio à portuguesa, embora esse silêncio de comida caseira sempre traga consigo um toque de melancolia, a sensação de tempo parado. É um ritmo sem ritmo que favoreceu a escrita de Pessoa, a poesia de Sophia de Mello Breyner, o cosmopolitismo sem arrogância de Eça de Queirós, ou que inspira a música do prodigioso António Zambujo.

Uma cultura pouco exibicionista, que ainda propicia palavras ditas em voz baixa, que usa o "você" e a suave cadência da língua para não irritar o próximo. Quantas vezes já dissemos que gostaríamos de ser como eles. Não somos os únicos, muitos espanhóis, ao visitar o país vizinho, percebem que estão a falar num volume invasivo e acabam por ser contagiados, se são sensíveis, pelas suas maneiras requintadas de se relacionar. O facto é que esta educação inata que tanto admiramos fez-nos criar toda uma mitologia em torno da cultura lusa à qual eles contribuem: nada agrada mais a um português do que Portugal. Consideramo-los poliglotas, porque falam o portunhol muito melhor do que nós, que somos preguiçosos e inseguros; elogiamos o seu estilo de fazer revoluções sem cortar cabeças, com flores, aí está; não deixa de nos surpreender que as celebrações do 25 de abril sejam uma festa que não provoca dissensões e cujos cartazes de meninas com cravos inundam os espaços públicos; até assumimos a versão extraordinária de que o seu colonialismo foi suave, sem sombra de brutalidade, embora autores como Dulce Maria Cardoso ou Isabela Figueiredo estejam aí para desmentir; denunciamos, com razão, a nossa briga em relação ao passado, mas entendemos o silêncio português sobre as suas colónias como um traço de pacificação; valorizamos essa paixão deles pelo que é próprio, que permitiu preservar o antigo como não soubemos fazer nós e por não vermos, não percebemos sequer os seus problemas sociais.

Mas não há país ideal, embora pensar que vivemos ao lado do paraíso estabilize o nosso ânimo assim que pisamos as ruas de solo empedrado. Para continuar com a idealização, desejamos concluir que a demissão de António Costa foi um gesto de dignidade. E é verdade. Mas também é verdade que um primeiro-ministro deve cuidar-se de amizades perigosas. 

Elvira Lindo / El País / 12 de Novembro de 2013