Os encontros acontecem quando menos se espera, mas acontecem mais com aqueles que falam mais com estranhos. Dois estranhos, dois homens, encontram-se na rua e ficam tanto tempo a conversar que os telemóveis de ambos acabam por tocar várias vezes, como se fosse a realidade a chamá-los à razão.
Um dos candidatos à liderança do PS assumiu-se como "neto de sapateiro e filho de empresário". Ora se eu tivesse que me assumir com uma frase semelhante diria que sou neto de criança que aos quatro anos teve que andar a pedir e filho de mulher que, muitas vezes, ainda tinha que chamar os bois antes de ir para a escola sem calçado de jeito.
O desconhecido que tinha à minha frente, bem mais jovem do que eu, e conforme a conversa foi avançando confessou que nasceu num berço de ouro. Filho de empresário daqueles que tem fábrica e emprega pessoas. Foi muito interessante. Dois berços completamente diferentes e, não terá sido por isso mesmo surpreendente que me tenha confessado ter votado no CH. Mas, entretanto, arrependeu-se. Ao que parece apercebeu-se que só contestam mas não apresentam soluções.
Falamos bastante de política. Perguntou-me o que achei de Passos Coelho... Bom, muito haveria a dizer sobre Passos Coelho. O primeiro-ministro mais impreparado no momento mais difícil da nossa democracia. O político, como tantos outros do PSD, que mentiu em campanha eleitoral. Passou a vida a gritar "chega de austeridade" e depois foi o que se viu. Salivavam quando se falava na eventualidade de se ter que se chamar o FMI, chumbou-se o PEC4, o governo caiu, veio o FMI e fomos para eleições. PSD e CDS formaram governo e logo se seguida chegaram os cortes de salários e o aumento "colossal" de impostos e o discurso do temos que empobrecer. E eu não quero um primeiro-ministro que a única solução que dá é: não sejas piegas, se não estás bem emigra. Um filho quando chora porque tem de comer, os pais têm que fazer de tudo para pôr comida na mesa, e não se virar e simplesmente dizer: "se não estás bem põe-te"! E no entanto, depois de todos esses roubos de salários, reformas feriados, encerramentos de hospitais, tribunais, maternidades e privatizações mal amanhadas, depois de tudo isso, o país ainda teve mais dívida do que em 2011.
Percebi também que tem quase um ódio a António Costa que no entanto acabou por não explicar. No entanto, curiosamente, nutria simpatia por José Sócrates.
Falou-se ao de leve sobre a questão da habituação e, no entender dele, o Estado deveria construir mais casas. Mas depois ficou calado quando lhe coloquei as coisas em perspectiva. Explica-me então, como é que, se Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo, se há escolas a encerrar por falta de alunos - lembrar por exemplo que eu treino ténis-de-mesa numa antiga escola primária que não está a ser utilizada - e então, se a população é cada vez menor, porque raio agora faltam casas? Mas eu expliquei, o problema foram os vistos Gold do tempo de Passos Coelho que este governo PS não quis travar, e o turismo e empresários a comprar ruas inteiras e milhares de pessoas a ser expulsas dos centros das cidades para fazer hotéis e alojamentos locais para turistas. O preço das casas disparou, as pessoas têm de sair do centro das cidades onde trabalham e sair para a periferia (onde os preços também disparam) e os jovens nunca na vida que conseguirão comprar casa com a merda dos salários que se pagam em Portugal, ainda que o salário mínimo tenha sempre subido com este governo.
Foi uma conversa muito interessante, de perspectivas e vivências e de classes sociais muito diferentes. Aliás, lá pelo meio lembrei-lhe que em Portugal, e são dados oficiais da OCDE, um pobre precisa de cinco gerações para subir um degrau na escola social. Portanto, não é bem assim essa tanga do esforço e do mérito. Um pobre tem que subir numa escada rolante que está a descer, ao passo que alguém da classe média ou alta sobre uma escada rolante que está a subir consoante o dinheiro que os papás têm.
E houve empatia. Se não houvesse os dois estranhos não ficariam na rua e ao frio a conversar infinitamente. Ele até falou de coisas pessoais. De ter ido ao psiquiatra do causa do défice de atenção. E que então, finalmente, e vinte e oito anos depois, percebeu como funciona uma pessoa normal. Mas deixou de tomar a medicação porque tomar a droga fá-lo ser outra pessoa. E ele quer continuar a ser a mesma pessoa de sempre, criativa, e que pensa num monte de coisas ao mesmo tempo... (mas eu também penso num monte de coisas ao mesmo tempo e a minha cabeça nunca para de pensar...)
E, mesmo não tendo a mínima simpatia pelo governo, achou ridículo que os media tivessem noticiado que o ministro tinha ganza em casa. Qual é o problema, é proibido? O que é que nós temos que ver com isso? E ele mesmo confessou que, por vezes, também fuma umas cenas. Ainda que, por estes dias, lhe tenha dado uma crise de pânico...
Orgulhosamente falou do mesmo telemóvel que mantém há sete anos. Ah, que pena que já não ando com o Nokia! Mas não deixa de ser curioso. Disse-lhe que se os iPhones forem para três ou quatro mil euros não duvido que as pessoas iriam comprá-los na mesma, mesmo que tenham salários de mil. O que é absolutamente insano e revelador das prioridades trocadas com que vive esta sociedade consumista. E não deixa de ser curioso porque ele, filho de empresário e que vive sem quaisquer dificuldades, não sente necessidade de ostentar, e não ostenta porque não precisa. Porque todos os que o rodeiam sabem que pode ter o que quiser.
Achei delicioso quando ia dizer pret... e censurou-se. Parou, quase que olhou em volta e perguntou se poderia dizer "pretos" a propósito de uma viagem do pai a um país africano. Eu não tenho problemas que digam pretos, eu mesmo o digo. O racismo não está em apontar uma característica pessoal, está sim, depois, em discriminar alguém que vai ver uma casa e nega-se o arrendamento por constatar que essa pessoa é... preta.
Não sou psicólogo e posso estar errado mas pareceu-me que talvez não se integre bem onde está. Ele mesmo disse que não se identifica com os amigos. Talvez esteja ainda à procura de si mesmo e do seu lugar no mundo. Deixou de beber café e começou a tomar banhos gelados - "se toda a gente anda a tomar banhos gelados vou experimentar" e quer-se disciplinar.
Quando lhe falei que mantinha um blogue de jardinagem há uns quantos anos, disse que eu tinha uma pequena mina. "Pesquisa por SEO" (Search Engine Optimization) e disse-me que deveria rentabilizar, fazendo críticas de coisas que poderia comprar e fazer parcerias e depois ganharia dinheiro sempre que as pessoas clicassem nos links. Mas eu sei tudo, só que eu nunca quis fazer do meu blog um trabalho e impingir merdas às pessoas. Os meus blogs são diários. Não quero obrigações, não me interessa ter mais ou menos leitores. Se ninguém me ler, ótimo. Isto é essencialmente para mim. Nem tudo tem que ser feito a pensar em fazer dinheiro.
E, curiosamente, também ele começou a escrever um diário. E será que ele também irá escrever sobre mim?
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