domingo, 17 de dezembro de 2023

Manual do Ditador Moderno



 "Os segui­do­res do Duce tinham foto­gra­fias per­so­na­li­za­das. Os de Hitler ouviam sua voz e viam sua ima­gem a toda hora. Esta­line era o Par­tido, mas tam­bém o avô Frost, o Pai Natal russo. Mao, o grande Timo­neiro, o rei filó­sofo do Ori­ente, e Duva­lier, Papa Doc, o pri­meiro pro­te­tor vodu do Haiti. Todos  apre­sen­ta­ram-se como homens que vinham do povo, poten­ci­a­li­za­ram uma nova forma de fazer polí­tica: a glo­ri­fi­ca­ção do indi­ví­duo perante as mas­sas. Sabiam, como Maqui­a­vel, que é mais seguro ser temido do que amado, mas que­riam per­du­rar, pre­ci­sa­vam ser acla­ma­dos; eram obri­ga­dos a criar um apa­rato repres­sivo tanto a ponto de man­ter a ilu­são de seu apoio popu­lar. Este é o para­doxo do dita­dor moderno que ana­lisa o livro dita­do­res. O culto da per­so­na­li­dade no século XX, do his­to­ri­a­dor holan­dês Frank Dikötter (Cliff, 2023).

Ao longo do século pas­sado, milhões de pes­soas acla­ma­ram os seus dita­do­res, ape­sar da bru­ta­li­dade dos seus regi­mes. Os ros­tos des­ses man­da­tá­rios apa­re­ciam em muros, facha­das de edi­fí­cios e até em pro­du­tos de con­sumo diá­rio. Após um con­trole fer­re­nho da imprensa e da edu­ca­ção, eles tor­na­ram-se oni­pre­sen­tes gra­ças à rádio e à tele­vi­são. Dita­do­res de lati­tu­des muito dís­pa­res viram como a popu­la­ção des­fi­lava durante dias em frente a seus palá­cios pre­si­den­ci­ais, car­re­gando obje­tos sim­ples, meda­lhas ou insíg­nias, para mos­trar sua ade­são. O essen­cial era apa­ren­tar que a von­tade bro­tava do cora­ção das pes­soas. O culto à per­so­na­li­dade não pro­cu­rava con­ven­cer nem per­su­a­dir, mas con­se­guir a obe­di­ên­cia atra­vés do iso­la­mento, da sub­mis­são do indi­ví­duo na massa. Impreg­nado de supers­ti­ção e de magia, con­sa­grou-se como uma forma de reli­gi­o­si­dade popu­lar cul­ti­vada desde cima. Hitler apre­sen­tava -se como um Mes­sias unido ao povo ale­mão por um vín­culo mís­tico. Duva­lier enco­ra­jou rumo­res sobre seus pode­res sobre­na­tu­rais. E os paí­ses comu­nis­tas logo adver­ti­ram que as invo­ca­ções ao líder como figura sagrada davam melho­res resul­ta­dos do que o mate­ri­a­lismo dia­lé­tico, estra­nho à maior parte da popu­la­ção.

A leal­dade a uma única pes­soa era a coisa mais impor­tante nes­sas dita­du­ras. Seguir um credo pode criar divi­sões e fac­ções. Mus­so­lini menos­pre­zava a ide­o­lo­gia e orgu­lhava-se publi­ca­mente de seguir ape­nas seus ins­tin­tos. Hitler, além dos ape­los ao naci­o­na­lismo e ao anti-semi­tismo, não pre­ci­sou de muito mais. Quem real­mente atraía Men­gistu, na Eti­ó­pia, não era Marx, mas Lenine, que havia cri­ado a van­guarda revo­lu­ci­o­ná­ria. Esta­lin e Mao mor­re­ram de cau­sas natu­rais depois de terem sido objeto de ado­ra­ção durante déca­das. Duva­lier dei­xou o poder para seu filho, que pro­lon­gou o culto à sua per­so­na­li­dade. E o clã Kim, Na Coreia do Norte, con­se­guiu che­gar à ter­ceira gera­ção de culto ao líder supremo. Mas cui­dado, por­que no mesmo momento em que o medo desa­pa­rece, a fic­ção do amor popu­lar des­mo­rona: o poder do casa­mento Ceau­cescu desa­pa­re­ceu ao vivo. O tra­di­ci­o­nal dis­curso tele­vi­si­o­nado em frente ao Palá­cio do Povo de 1989 não mos­trou as "espon­tâ­neas demons­tra­ções de apoio incon­di­ci­o­nal", mas milha­res de mani­fes­tan­tes cer­cando o maior edi­fí­cio admi­nis­tra­tivo do mundo.

Os dita­do­res que per­du­ram con­ju­gam na per­fei­ção o culto à per­so­na­li­dade e o ter­ror. Numa pri­meira fase, o líder tem que con­tar com a influ­ên­cia neces­sá­ria para aba­ter seus opo­nen­tes e obrigá-los a que o acla­mem em público. O culto rebaixa ali­a­dos e rivais, obriga-os a cola­bo­rar em comum sub­mis­são. Mas, à medida que atinge a matu­ri­dade, o líder não pode ter cer­teza de quem está apoi­ando e quem real­mente se opõe à sua figura. Pre­cisas ini­ciar a purga, a lim­peza interna. Os diri­gen­tes que sobre­vi­vem, as outras faces visí­veis do regime tam­bém são cúm­pli­ces dos seus cri­mes, pelo que os seus suces­so­res man­te­rão o culto à sua per­so­na­li­dade. Desen­ca­de­ado o ter­ror, o mais impor­tante é man­ter a ilu­são de que o poder con­ti­nua des­can­sando num vín­culo pes­soal com o povo.

Hitler, que logo des­co­briu sua capa­ci­dade de falar para as mas­sas, cal­cu­lou minu­ci­o­sa­mente suas apre­sen­ta­ções em público até o fim. A sua pri­meira cam­pa­nha de ima­gem foi pro­je­tada por Alfred Rosen­berg ao com­ple­tar 34 anos. Naquele dia, ele apa­re­ceu retra­tado sob um fundo preto em toda a imprensa. Mein Kampf foi sua bio­gra­fia polí­tica, mas tam­bém sua lenda: cri­ança e artista pre­coce, lei­tor voraz, ora­dor nato, Mes­sias do povo ale­mão. Como líder do futuro, ele não incen­ti­vou as está­tuas, elas eram do pas­sado. Pelo contrário, o seu rosto e sua voz, che­ga­ram a toda parte. Mes­tre do dis­farce, absor­veu as emo­ções da mul­ti­dão para fundi-las numa core­o­gra­fia per­feita ensai­ada em milha­res de comí­cios e des­fi­les. Ao saber da sua morte, uma onda de sui­cí­dios per­cor­reu a Ale­ma­nha.

Lenin tam­bém foi glo­ri­fi­cado em vida. Desde o momento da sua morte, em 1924, Sta­lin fez-se pas­sar pela sua ala mais fiel. Qua­tro anos depois, enquanto a mul­ti­dão se aglo­me­rava no des­file do pri­meiro de Maio, desen­ca­deou o pri­meiro grande expurgo do Par­tido. A sua devo­ção não se ves­tiu de culto ao líder, mas de revo­lu­ção pro­le­tá­ria. Sta­lin encar­nava o melhor da classe ope­rá­ria, mas tam­bém diri­gia todas as van­guar­das artís­ti­cas. Sua ima­gem muito cui­dada de espon­ta­nei­dade foi con­sa­grada na Grande Guerra Patri­ó­tica. Alcan­çada a vitó­ria, rele­gou todos os seus artí­fi­ces mili­ta­res que lhe dis­pu­ta­vam a gló­ria. Pouco antes de mor­rer, enco­men­dou uma grande está­tua sua no local onde con­fluem o Volga e o Don.

Mao Zedon, que conhe­ceu Sta­lin no seu ani­ver­sá­rio de 70 anos no Tea­tro Bolshoi, encon­trou a sua mis­são na mobi­li­za­ção dos cam­po­ne­ses da China. Depois de ficar sem rivais, sem con­cor­ren­tes, deci­diu for­jar a sua ima­gem de teó­rico. Ofi­ci­al­mente, ele con­cen­trou-se na revo­lu­ção cul­tu­ral, mas, como Sta­lin, diri­gia pra­ti­ca­mente todos os assun­tos de governo pes­so­al­mente. Aca­bou sepa­rado, como uma figura remota, divina, que nunca saía da Cidade Proi­bida dos impe­ra­do­res.

Todos os dita­do­res, por fim, quei­ma­ram livros, pro­fa­na­ram túmu­los, des­tru­í­ram tem­plos e igre­jas, apa­ga­ram os nomes das ruas e até os rótu­los das lojas. Eles rees­cre­ve­ram o pas­sado para for­jar seu relato. Esta ana­to­mia do auto­ri­ta­rismo, de suas dife­ren­tes ori­gens e uti­li­za­ções, mos­tra alguns aspec­tos inquie­tan­tes que che­ga­ram até aos nos­sos dias. Em tem­pos de incer­teza, de vola­ti­li­dade e de revi­si­o­nismo, rea­pa­re­cem algu­mas das pio­res figu­ras do século XX, sob o culto à ima­gem que eles mes­mos cri­a­ram como subs­ti­tuto da polí­tica.

Gut­maro Gómez Bravo (Historiador) | El País (12 de Dezembro de 2023)

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