domingo, 24 de dezembro de 2023

Porque Estamos Tão Individualistas?

 

 "O ênfase no sucesso pessoal, relacionamentos líquidos, abuso da palavra liberdade, ascensão dos chamados libertários. Todos são sintomas de um individualismo em ascensão, enquanto as famílias do filho único proliferam e a epidemia de solidão indesejada se espalha. Na internet, florescem filosofias individualistas extremas na forma de gurus da cultura da competição e esforço individual, ao mesmo tempo que os influenciadores ultraliberais propagam suas ideias contrárias ao público e ao comunitário. Como chegamos aqui? Qual a origem da ascensão da ideologia individualista?

A precariedade, o abismo entre os de cima e os de baixo e a falta de envolvimento e horizontes comuns afundam-nos numa deriva individualista cada vez mais distante do nobre espírito com o qual a ideia nasceu: impulsionar a liberdade pessoal e a autonomia diante da coerção da religião e do Estado.

Aleister Crowley, o ocultista britânico, era uma figura muito peculiar. Fundou a religião de Thelema: os seus membros praticavam orgias sagradas, rituais sincréticos ou experimentação mística com drogas. Falecido em 1947, encantou seus seguidores, enquanto entre seus adversários causou apenas escândalo e rejeição. Ele autodenominava-se "A Besta 666" e foi rotulado pela imprensa da época como "o homem mais malvado do mundo". A sua máxima filosófica, registada no Livro da Lei, era a seguinte: "Faz o que quiseres, será toda a tua lei".

O delirante Crowley, transformado em ícone pop, foi um destacado expoente das correntes mais individualistas, que, embora tivessem raízes anteriores, fortaleceram-se durante o século XX e continuam a fazê-lo no século XXI. Isso é considerado pelo ensaísta John Higgs no seu livro História Alternativa do Século XX: "Na filosofia do individualismo, o centro é o eu, e o eu tem prioridade sobre a sociedade." Exatamente como Crowley pensava.

Vivemos uma certa hiperinflação na ideologia individualista, causada não apenas pelo dogma económico dominante desde os anos 80, que enfatiza a iniciativa privada e a responsabilidade individual, impregnando todos os aspectos da sociedade, mas também pela revolução nas tecnologias digitais. Esses dispositivos, embora façam muito para nos conectar, também geram conexões fracas, enfraquecem a interação física e facilitam o isolamento.

Manifestações de individualismo incluem o abuso da palavra liberdade, ênfase no sucesso pessoal, busca pela singularidade ou a liquidez dos relacionamentos sentimentais. Também a baixa taxa de natalidade e a proliferação de filhos únicos: em 2021, segundo o Eurostat, nasceram apenas 1,19 crianças por mulher em Espanha, um número cada vez mais baixo. Também o número de pessoas que vivem sozinhas: 27% dos lares em 2021, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, 20% a mais do que uma década antes. Ou a epidemia de solidão indesejada: um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra que 25% dos idosos na Europa estão sozinhos, mas não querem estar.

E a atual preocupação com as identidades é paradoxal: por um lado, faz-nos sentir afiliados a coletivos, mas também é baseada na reivindicação da própria diferença.

As filosofias individualistas extremas florescem na internet, seja na forma de gurus da cultura da competição e esforço individual como também de influenciadores ultraliberais contrários ao público e inimigos dos impostos, afins, por exemplo, ao presidente argentino, Javier Milei. Embora o termo individualismo tenha sido tradicionalmente usado pejorativamente, agora surgem correntes que o reivindicam como uma virtude.

"Odeio parecer um velho marxista", diz Richard Sennett, "mas o individualismo não é uma categoria cultural inocente, a sua fundamentação está na economia." Segundo o sociólogo norte-americano, autor de obras como "A Corrosão do Caráter" ou "O Declínio do Homem Público", a questão também é de classes. As elites não são individualistas, predomina certo corporativismo e, às vezes, diz-se que a classe alta é a que tem maior consciência de classe e organiza-se melhor para defender seus direitos. O individualismo é promovido entre as classes médias e baixas, onde as novas formas de trabalho oferecem poucas experiências sociais e incentivam a competição. O aumento do individualismo está associado ao aumento do trabalho de escritório e das profissões liberais, menos propensos à união dos trabalhadores do que o trabalho industrial tradicional, conforme descobriu um estudo das universidades de Waterloo (Canadá) e Arizona (EUA).

"A modernização e o aumento do capitalismo em detrimento do comunitário", explica a filósofa Carolina del Olmo, autora de Onde Está Minha Tribo? Ela exemplifica isso com a diminuição das relações sociais densas: desde a transformação da vida na aldeia (com todos os seus inconvenientes) para a vida urbana até a substituição da família extensa pela família nuclear moderna, passando pelo emprego estável que se torna precariedade e mudança constante.

Del Olmo observa essa dissolução do social especialmente na criação dos filhos: onde antes era feita entre muitos membros da família extensa e até mesmo vizinhos circunstantes, agora os pais (mais especificamente, as mães) têm que assumir a criação sozinhos ou entregar os cuidados a terceiros. Mas, como diz um provérbio africano, para criar uma criança é preciso toda uma tribo.

Embora em algumas sociedades antigas, como a democracia ateniense ou a república romana, a condição de cidadão, embora restrita, implicava a participação na vida pública, nas sociedades individualistas contemporâneas predominam os interesses pessoais. Em Espanha, observa-se que, embora a política seja o entretenimento nacional, a filiação a partidos e sindicatos é baixa, assim como é modesto o associativismo, seja em associações políticas ou sociais, como culturais ou de lazer. A taxa de associativismo é de 25%, em comparação com 43% na média europeia. Baixa em comparação com outros países da região, como França (51%) ou Alemanha (48%), segundo um relatório da Fundação BBVA de 2019. Os países nórdicos têm taxas muito altas, como Dinamarca (92%) ou Suécia (83%), segundo outro relatório da mesma entidade de 2013.

"Todos os atores das sociedades modernas, uns mais outros menos, sãp individualistas", explica Danilo Martuccelli, sociólogo da Universidade de Paris; "é evidente que as nossas paixões estão mais nas nossas vidas, nos nossos amigos, nas nossas ocupações, nas nossas paixões de consumo cultural do que no bem coletivo ou político". O compromisso com os assuntos da polis muitas vezes é muito pesado para ser compatível com a exploração da liberdade e a busca por experiências.

"A grande incerteza associada à vida individualista acaba por levar a uma personalidade mais marcada por uma espécie de egoísmo de náufrago", diz Del Olmo; "quando não tens uma rede de apoio e é mais frágil, a reação de salvar a tua própria pele é mais instintiva". O consumismo colabora "como uma escola de personalidade muito individualista e egocêntrica. Essa maneira de estar no mundo em que tu podes escolher tudo, como se tudo fossem produtos para o carrinho do supermercado".


DO RENASCIMENTO À PÓS-MODERNIDADE

O individualismo é uma postura paradoxal. Nos seus primórdios, representou um progresso para as sociedades e contribuiu para a superação do Antigo Regime. Colocar o foco no indivíduo permitiu a conquista das liberdades e a construção das democracias liberais. No entanto, as tensões entre o individual e o coletivo são inerentes à experiência humana e continuam inevitavelmente no cerne dos debates. Quantos impostos devemos pagar? Quanto os serviços públicos devem abranger? Qual é minha responsabilidade nos problemas ambientais? O individualismo exacerbado, conforme proposto atualmente, pode levar à atomização e ao desgaste da sociedade.

"Colocar o indivíduo no centro do pensamento moral e político, o que aconteceu a partir do Renascimento, deu origem, por exemplo, às diferentes declarações de direitos humanos fundamentais", explica a filósofa Victoria Camps, autora, entre outros, de Paradoxos do Individualismo. O objetivo do coletivo era alcançar a realização igualitária de todos os indivíduos. A paradoxo que Camps propõe reside no fato de que a liberdade individual trouxe consigo outros problemas: "Cada vez é mais difícil usar essa liberdade", acrescenta a pensadora.

O humanismo renascentista, portanto, costuma ser citado como uma origem do individualismo, embora o poeta inglês John Donne tenha escrito na época que "nenhum homem é uma ilha". Esse individualismo foi posteriormente apoiado pela Ilustração e pela Revolução Francesa, onde, ao abolir os privilégios, (quase) todos os seres humanos são indivíduos iguais em seus direitos. A partir desse substrato, as novas sociedades foram construídas. O liberalismo clássico propõe liberdade individual, limitação do poder do Estado, propriedade privada. Adam Smith enfatizou, por exemplo, a conveniência da busca do interesse próprio para alcançar o bem comum, mediante a intervenção da "mão invisível" do mercado. O termo individualismo, de acordo com o consenso aceite, surgiu no início do século XIX, ao mesmo tempo que o socialismo.

Após a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se o Estado de bem-estar, alimentado por ventos social-democratas, que alcançou um equilíbrio maior entre a responsabilidade individual e a solidariedade coletiva. "Foram concedidos direitos sociais que 'desmercantilizaram' certas prestações ou seguros, o que permitiu um aprofundamento do individualismo. 'Livres' de certos medos, como o desemprego, a doença ou a velhice, as pessoas sentiram-se mais livres na escolha das suas obrigações sociais. A família, os amigos, a comunidade foram percebidos como menos 'essenciais' para a própria sobrevivência", diz Martuccelli. Paradoxalmente, o Estado social foi crucial para o aumento do individualismo. Também a contracultura dos anos sessenta, de orientação esquerdista radical, promoveu um tipo de individualismo criativo que está no cerne da ideologia de Silicon Valley e dos estilos de vida promovidos pelo neoliberalismo.

"Bowling Alone", a obra poética do sociólogo Robert D. Putnam: durante os anos 80, nos Estados Unidos, houve um declínio nos jogos de bowling em grupo. As pessoas jogavam sozinhas. Os padrões de sociabilidade estavam a mudar. Putnam publicou esse ensaio em 2000 denunciando, desde o título, o enfraquecimento dos laços comunitários. Para o autor, essa falta de interação social ameaçava a democracia. "Alexis de Tocqueville, ao escrever 'A Democracia na América' no início do século XIX, assumiu que o individualismo e a igualdade andavam de mãos dadas, mas verificou-se que não é o caso", aponta Sennett. Nos Estados Unidos do século XX, o individualismo sempre encontrou solo fértil e continua a orientar os demais países ocidentais. Ayn Rand fez carreira lá, a romancista russo-americana criadora do objetivismo, defensora de um individualismo radical que beirava a celebração do egoísmo (não necessariamente sinónimos) e do triunfo dos mais fortes. "Rand não acreditava que a preocupação com o bem-estar dos outros devesse limitar a liberdade pessoal", escreve Higgs. As suas teorias também inspiraram a religião satanista de Anton LaVey.

Além de certos satanistas, Rand inspirou correntes mais neoliberais: um de seus seguidores mais próximos foi Alan Greenspan, que se tornou presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos. O neoliberalismo, inicialmente uma corrente quase subterrânea promovida pela pequena Sociedade Mont Pelerin e por um punhado de economistas austríacos, acabou impondo-se nos anos 80, quando Reagan e Thatcher chegaram ao poder e encerraram a hegemonia social-democrata. Eles promoveram a iniciativa e a responsabilidade individual, com uma rejeição veemente ao coletivo.



A SOLIDÃO NO STARBUCKS

"A desigualdade entre os de cima e os de baixo tem fomentado o individualismo dos do meio", diz Sennett. Ele vê isso nos cafés da cadeia Starbucks: se o café clássico era um lugar para socializar, nesses lugares geralmente abre-se o portátil para se perder em seus pensamentos. Também nos centros das grandes cidades devoradas pelo turismo, que já não estão prontas para a vida social, mas para os negócios. "As nossas redes sociais estão cada vez mais curtas e íntimas, só nos relacionamos com familiares ou amigos mais próximos", acrescenta o sociólogo.

O comunitário é reivindicado nestes tempos fragmentados pelo nacionalismo, que, diante de sociedades cada vez mais atomizadas, propõe um sentimento de pertença à nação. A extrema direita reivindica visceralmente valores tradicionais como a família e a pátria. Da esquerda, ainda se destaca a necessidade de sustentar o público e o comum longe da selva da competição e do mercado. As condições do futuro podem mover o pêndulo para um lado: o pensador francês Bruno Latour acreditava que a ameaça da mudança climática, da qual não podemos nos proteger sozinhos, levaria a novas formas de comunidade. Na última pandemia, por exemplo, já se experimentou um refluxo do coletivo: o coronavírus tornou evidente a íntima conexão entre todos os habitantes da Terra.
“Outra maneira de reivindicar a comunidade”, diz Camps, “seria o republicanismo bem entendido: preocupar-se com a res pública e ter consciência como cidadãos”. Como alcançar o equilíbrio entre o individual e o coletivo? Essa é uma pergunta de difícil resposta. “Muitos debates atuais (socialismo versus liberalismo, coletivismo versus libertarianismo, justiça social versus responsabilidade individual) são variantes dessa tensão fundamental. Exceto por posições extremas, as sociedades buscam misturas entre ambos os princípios”, conclui Martuccelli. A tarefa fundamental da política nas sociedades contemporâneas é, precisamente, estabelecer um equilíbrio aceitável entre o individual e o coletivo. Entre o eu e o nós.

Por qué somos tan individualistas | Sergio C. Fanjul | El País | 17 de Dezembro 2023

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