sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Já Nem Sequer Portugal é Perfeito - Elogio no El País a Portugal

E passou mais um ano desde que nos separamos de Espanha. Por cá sempre ouvimos o ditado  que "de Espanha nem bom vento nem bom casamento" e gente próxima dizer-me  que eles não gostam de nós. Contudo, cinco dias depois do golpe do 7 de Novembro e da demissão do primeiro-ministro António Costa, sai este texto de opinião no El País, intitulado: "Ni tan squiera Portugal es perfecto":

  


 "Imaginemos um país que, apesar de fazer fronteira com o nosso, nos faça viajar para além da realidade, nos transporte para o território onde os nossos desejos se materializam. Imaginemos aterrar em Lisboa e, uma vez superada a única experiência que torna os portugueses bravos, a sua incongruente forma de conduzir, chegarmos à maravilha do mundo que é o Campo de Ourique: o bairro sereno, longe do bulício turístico, que nos faz sentir imersos numa espécie de retiro espiritual. 

A partir desse momento, o único esforço a enfrentar será as nossas pernas, nesse interminável subir e descer de colinas que será compensado por uma sopa numa das tascas que imitam a receita secular das avós. Imaginemos que o empregado nos reconhece desde a segunda vez que nos sentamos na sua tasca e que nos passa, com cordialidade e delicadeza, a mão sobre o ombro. O milagre acontece: sentimo-nos em casa com o alívio adicional de não estarmos em casa. Estamos rodeados de portugueses de cabelo grosso que amam o seu paísinho tanto que não perdem uma única das suas rotinas nacionais. Depois de saborear o arroz caldoso que acompanha a melhor fritura de peixe do mundo, devoram, não sabemos como, uma daquelas sobremesas extremamente doces onde se encontram ovos, açúcar, leite, pão ou arroz. 

Invariavelmente, comentaremos como gostaríamos que o nosso país fosse um pouco assim, que diminuísse o ruído insuportável, o da vida pública e o da convivência, o que os meios de comunicação cospem e o que se suporta nos bares. Um pouco de silêncio à portuguesa, embora esse silêncio de comida caseira sempre traga consigo um toque de melancolia, a sensação de tempo parado. É um ritmo sem ritmo que favoreceu a escrita de Pessoa, a poesia de Sophia de Mello Breyner, o cosmopolitismo sem arrogância de Eça de Queirós, ou que inspira a música do prodigioso António Zambujo.

Uma cultura pouco exibicionista, que ainda propicia palavras ditas em voz baixa, que usa o "você" e a suave cadência da língua para não irritar o próximo. Quantas vezes já dissemos que gostaríamos de ser como eles. Não somos os únicos, muitos espanhóis, ao visitar o país vizinho, percebem que estão a falar num volume invasivo e acabam por ser contagiados, se são sensíveis, pelas suas maneiras requintadas de se relacionar. O facto é que esta educação inata que tanto admiramos fez-nos criar toda uma mitologia em torno da cultura lusa à qual eles contribuem: nada agrada mais a um português do que Portugal. Consideramo-los poliglotas, porque falam o portunhol muito melhor do que nós, que somos preguiçosos e inseguros; elogiamos o seu estilo de fazer revoluções sem cortar cabeças, com flores, aí está; não deixa de nos surpreender que as celebrações do 25 de abril sejam uma festa que não provoca dissensões e cujos cartazes de meninas com cravos inundam os espaços públicos; até assumimos a versão extraordinária de que o seu colonialismo foi suave, sem sombra de brutalidade, embora autores como Dulce Maria Cardoso ou Isabela Figueiredo estejam aí para desmentir; denunciamos, com razão, a nossa briga em relação ao passado, mas entendemos o silêncio português sobre as suas colónias como um traço de pacificação; valorizamos essa paixão deles pelo que é próprio, que permitiu preservar o antigo como não soubemos fazer nós e por não vermos, não percebemos sequer os seus problemas sociais.

Mas não há país ideal, embora pensar que vivemos ao lado do paraíso estabilize o nosso ânimo assim que pisamos as ruas de solo empedrado. Para continuar com a idealização, desejamos concluir que a demissão de António Costa foi um gesto de dignidade. E é verdade. Mas também é verdade que um primeiro-ministro deve cuidar-se de amizades perigosas. 

Elvira Lindo / El País / 12 de Novembro de 2013

Sem comentários:

Enviar um comentário