sábado, 23 de dezembro de 2023

Nem Duas Vezes, Nem Uma - Agora o Carteiro Nunca Bate à Porta

Uma das muitas horríveis coisas que o governo de Passos Coelho e Paulo Portas fez foi a privatização dos Correios. Um setor estratégico que nunca deveria ter saído da esfera pública. Um dos melhores serviços públicos que tínhamos, e um dos melhores do mundo, que, de repente, ficou quase ao nível do Burkina Faso. O jornal espanhol La Vanguardia trouxe esta semana uma interessante crónica sobre a privatização dos correios britânicos, o Royal Mail, que poderia ser uma triste crónica sobre os nossos CTT. Aqui fica em tradução livre:



"Antigamente, no Reino Unido, o carteiro costumava bater à porta pelo menos duas vezes de segunda a sexta-feira (de manhã e à tarde), uma vez ao sábado e, além disso, quantas fossem necessárias para entregar telegramas ou cartas certificadas. Há cerca de vinte anos, isso foi reduzido para uma entrega diária. Durante a pandemia, devido às ausências por doença, passou a ser uma entrega a cada três ou quatro dias. E agora, com a aproximação das festas, é sorte se as felicitações de Natal chegarem. O famoso Royal Mail já não é o que era. De longe.

Fundado em 1516 como um departamento sob o controle do governo, foi gradualmente privatizado entre 2013 e 2015 e tornou-se um verdadeiro desastre, com a moral muito em baixa entre os seus 163 mil trabalhadores (sendo o principal fornecedor de serviços postais do Reino Unido), que se sentem mal remunerados e sobrecarregados de trabalho. Um carteiro percorre em média 18Km por dia, dá mais de vinte mil passos (para quem está de olho nessas coisas), termina o dia às três da tarde e recebe entre 30 e 35 mil € brutos por ano.

Num país em que 16 milhões de pessoas (um quarto da população) sofrem de algum tipo de deficiência a longo prazo, dez milhões estão permanentemente de baixa e cinco milhões vivem exclusivamente de subsídios do Estado, o Royal Mail é um exemplo de como o Reino Unido se tornou novamente o doente da Europa. O absenteísmo é generalizado, passam apenas cinco minutos desde que alguém preenche um pedido online e recebe a oferta de trabalho, mas muitos dos novos trabalhadores mal duram um dia ou dois no emprego, o tempo que levam para perceber que têm que passar o dia a andar em vez de distribuir confortavelmente com uma carrinha.

A necessidade de competir com a Amazon, DHL, UPS, Federal Express e outras empresas de entrega exacerbou a crise. Teoricamente, o Royal Mail tem a obrigação de entregar cartas de segunda a sábado em todas as ruas do Reino Unido, mas na prática isso não é cumprido. Dois jornalistas do Sunday Times disfarçados descobriram que na realidade há uma instrução implícita para dar prioridade às encomendas, em detrimento do restante correio, que pode ficar dias e dias nos centros de distribuição. Um idoso, surpreendido por não receber nenhum cumprimento ao completar 94 anos, foi pessoalmente à estação de correios mais próxima e recebeu meia centena de cartões que estavam acumulados há semanas. Isso acontece se o responsável por uma rua ficar doente.

Os cartões de Natal digitais substituíram em grande parte os de papel (a era de Gutenberg está a morrer), e entre isso e os atrasos do Royal Mail, os britânicos terão sorte se receberem um cartão de Natal antes de comerem as rabanadas ou antes do Pai Natal se apresentar com o trenó. Pior ainda, milhões de cidadãos perdem rotineiramente notificações oficiais importantes, extratos bancários e consultas do Serviço Nacional de Saúde para cirurgias ou visitas ao médico, porque chegam tarde. Nos tribunais, há centenas de milhares de casos pendentes de cidadãos que recorreram contra multas porque nunca receberam notificação. Hoje, os pacotes da encomendas mandam, porque dão mais dinheiro (não só há mais, como também são cada vez maiores, ocupam até 90% do espaço disponível nos armazéns e centros de distribuição e sobrecarregam os carrinhos de entrega).

Antigamente, não só o carteiro batia duas vezes, mas também era um profissional que sabia de tudo, os nomes dos vizinhos, até em que casas do seu percurso havia cães bravos, ou pisos escorregadios com a chuva, ou idosos com dificuldades de mobilidade a quem faziam o favor de lhes entregar a correspondência. Hoje, a maioria dos trabalhadores reformou-se foram substituídos por trabalhadores temporários com salários muito mais baixos que, ao aperceberem-se disso, não querem esforçar-se tanto. Consequência: ao chegar à tarde, os pacotes já foram entregues, mas as cartas e os cartões ficam a acumular pó. E os clientes mudam para a concorrência (em 2004, o Royal Mail entregou vinte biliões de correspondências, no ano passado, apenas oito biliões).

Há muitas coisas que o Estado não faz melhor do que a empresa privada. Mas quanto à entrega de cartas, sempre se saiu muito bem. Hoje, a campainha não toca de jeito nenhum e o carteiro está de baixa ou a entregar encomendas.

El cartero nunca llama a la puerta | Rafael Ramos | La Vanguardia

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