Foi por mero acaso que o encontrei de novo, e porque depois de o ter reencontrado não o quis perder, voltei à rotina de ouvir o Júlio Machado Vaz na rádio. E ainda por cima agora não há desculpas, uma vez que se não podermos ouvir a emissão em direto (ou em repetição na rádio) temos ali tudo escarrapachado na no site da
Antena 1.
E no programa "O Amor é" da semana passada, a propósito de um poema do Valter Hugo Mãe (sem dúvida que o que trouxe do Chico Buarque - conheço-o bem - é mesmo muito potente!) o professor colocou uma questão muito interessante. Será que, depois de uma separação, quando as pessoas desejam o melhor para o outro, estão a ser realmente verdadeiras ou podem estar um pouco iludidas?
E o que me parece é que, só o simples facto de alguém se separar e desejar o melhor para o outro já não será para todos. Mas tudo dependerá sempre da forma como as coisas acabam.
Ainda assim, como diz o professor, grande parte das pessoas só pensa em si mesmo, e acha que "se não foste feliz comigo,não serás com mais ninguém". Mas há outras pessoas que pensam assim. Racionalmente querem mesmo o melhor para outro. Mas será que, bem lá no fundo estamos a ver o alcance do "não deu certo connosco, vai lá ser feliz"?
Seremos assim tão magnânimos?
O professor disse que nem quer ir muito fundo quando no consultório confronta as pessoas. Nem é preciso entrar logo de chofre e perguntar "e consegues imaginá-la na cama com outro?", porque normalmente nem é preciso. Basta fazer a simples pergunta:
"... portanto, desejas que um dia destes a encontres, à beira mar, com um fulano ou uma fulana, com o braço por cima dos ombros?"
E na maioria dos casos a resposta é a palidez na cara das pessoas. E de imediato as pessoas refletem, caem em si, e percebem que estavam completamente enganadas.
"Mas ò professor, eu achava que era mesmo que era o que eu desejava, mas agora pôs-me essa imagem e isso horroriza-me".
Pois é... quer-se mesmo o melhor para o outro, ainda que só do ponto de vista racional, mas há pessoas que não estão preparadas para levar com isso de frente.
Mas é curioso que, enquanto o ouvia, de imediato as suas palavras, sempre sábias, transportaram-me para o seu livro "Estes difíceis amores", onde descreve precisamente isso, onde também há mar e braço por cima dos ombros:
Eis-nos aqui. Domingo de sol, passeio junto ao mar, esses olhos azuis que o desejo nublava fitam-me transparentes, agressivos de tão risonhos, "como estás". Como estou? E tu que achas vendo-te assim acompanhada? Ele tem bom aspeto, sorriso franco, nada indica o ciúme de paixão mal resolvida da tua parte; sente-se seguro. Esqueceste-me. Pior!, já és minha amiga. Pronto querida, vou ser politicamente correto , "bem". O tempo, o amigo comum que encontraste e me acha cansado, a etiqueta, "este é o ...". Que interessa o nome?, é o teu homem, "muito prazer". Ele sorri, sabe que não sinto a frase, mas compreende, afinal sou o tipo que perdeu a mulher que ele não dispensa, "muito prazer". Um silêncio constrangido entre os dois que resolves com à-vontade, "foi bom ver-te". Era necessário humilhar-me tanto? Uma vontade imensa de te abanar - "sou eu lembras-te?, tinhas a certeza que era o amor da tua vida..." -, acorda!, ainda podemos...
Os dois afastando-se o braço dele sobre os teus ombros, o segredo ao ouvido e esse cabelo, onde me perdia, volteando ao ritmo da gargalhada. Serias incapaz da chacota a meu respeito, é outra a razão, simples e infernal - estás feliz. E uma parte de mim, ainda tímida, quase clandestina, deixa cair os braços e reconhece a derrota e culpa, fica grata pelo que me deste e murmura um "boa sorte" que todo o resto do que sou fita horrorizado.
Será isto definitivamente o amor?
Estes difíceis amores / Júlio Machado Vaz / 2002