quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Faz hoje 26 Anos

17 de Novembro de 1990

Durante a semana arranjei a trocar com um colega da escola uma moeda de 2 Centavos (a mais antiga que tinha) e que datava de 1920 por outra de 5 Centavos de 1927, o ano em que o meu avô tinha nascido. Claro que a moeda que eu tinha era sete anos mais antiga, deveria valer mais alguma coisa ou ser mais rara, no fundo eu estava a perder, mas para mim era mais importante ter uma moeda do ano do meu avô, por isso eu saía sempre a ganhar: uma moeda com os mesmos anos do meu avô?isso era espetacular!

Naquele sábado de manhã eu saí bem cedo de casa, bem agasalhado e fui para casa dos meus avós, especificamente só para mostrar, cheio de orgulho, aquela moeda ao meu avô. 
Metade do percurso o caminho era feito pelo meio do mato, e outra metade num estradão largo de terra batida. Eu vestia um casado preto, que na altura lhe poderíamos chamar de Kispo, mas não era Kispo. Era um casaco de marca, de qualidade, com uma letra ou símbolo vermelho do lado esquerdo do peito, mas de outra marca qualquer. Era um casaco que os meus pais nunca que me poderiam ter dado porque não tinham dinheiro para tal. Foi uma das muitas peças de roupa usada que usei em criança e adolescente. 

A casa dos meus avós era a única casa junto ao rio Douro, num fundão, bem longe das casas mais próximas. Num local daqueles é importante ter um cão, que faz o papel de guarda, avisando quando alguém se aproxima. Quando cheguei a casa do meu avô vi que o cão estava solto mas não liguei, continuei a andar e virei-lhe as costas. Aquele era um cão preto, mas acho que também tinha uns castanhos, e que costumava estar preso a cadeado junto a uma casota, fora de casa e até fora do terreno dos meus avós, abrigado por pinheiros e eucaliptos. 

E eis se não quando, do nada, silenciosamente, e vindo sei lá se onde, sou atacado pelas costas pelo raio do cão. Nunca lhe fiz mal nem bem. Não tinha qualquer relação com o bicho, mas ele conhecia-me bem, pois como é normal eu frequentava a casa dos meus avós com frequência.  

Só sei que do nada senti-lhe os dentes a entrar na minha carne. Ele era grande mas nunca me conseguiu deitar ao chão. Acho que foi a minha sorte. A outra sorte foi aquele casaco bem resistente que trazia vestido. Os meus berros deveriam ser bem altos. Dias depois, algumas pessoas, lá do outro lado do rio, quando por ali passaram por casa dos meus avós - naquela altura havia um barqueiro para atravessar as pessoas de uma margem para a outra - perguntaram o que se tinha passado pois tinham ouvido alguém berrar do lado de cá. 

A minha avó estava a lavar a roupa lá mais abaixo, mesmo perto do rio, num pequeno tanque, aproveitando uma fonte natural que por lá existia. Foram muitos minutos em que estive envolvido com aquele cão a lutar para sair dali o melhor possível. Lembro-me de lhe agarrar com força pelas orelhas e puxá-lo para o afastar de mim.

Foram muitos minutos. Intermináveis. Só quando a minha avó conseguiu chegar cá acima o cão deixou de me atacar. Ironicamente ali mesmo em frente, a poucos metros de mim, dentro de uma pequena casa contígua à casa-mãe que o meu avô construiu para o filho do meio, a mulher desse meu tio escutava tudo o que se passava e não fez nada. Bastava vir cá fora e chamar o cão e tudo acabava. Mas não veio. Deixou-me estar ali a ser mordido uma e outra e outra vez...sucessivamente. 

Lembro-me de estar já deitado na cama dos meus avós e só querer a minha mãe. E a minha mãe haveria de chegar... E haveria de chegar depois a ambulância.

Pediram-me para mentir e eu menti. Quando no hospital a polícia me perguntou, eu disse que tinha sido um cão vadio... como se fosse costume os cães vadios ferrarem as pessoas. Acabou por não acontecer nada ao cão que me mordeu... coitadinho do bichinho lindo! Acabou por morrer mas de morte natural. Também não tomei as injeções que me tinham prescrito por causa da raiva. 

Já não sei em que momento acabei por mostrar a moeda de 5 Centavos de 1927 ao meu avô. Nem sei se ele valorizou... mas claro que ainda a tenho comigo e faz hoje vinte e seis anos que tudo isto aconteceu.


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