Não sou eu que digo que não se deve celebrar o 25 de Novembro, diz quem melhor sabe: os historiadores. Aqui fica, para memória futura, uma recolha de três opiniões de três historiadores, começando com uma entrevista a Irene Pimentel que este ano publicou o livro "
Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975 - Episódios menos Conhecidos":
A história do 25 de Abril está completa ou ainda há muita coisa por descobrir?
Penso que ainda há coisas para descobrir. Talvez seja dos acontecimentos contemporâneos mais estudados, porque contámos muito com os próprios protagonistas e com as testemunhas dos factos históricos. Mas acho que falta saber mais sobre o pós-25 de Abril. Por exemplo, o 25 de Novembro é uma data histórica que ainda não está bem estudada. Há muitos mitos à volta dela. É por isso que, neste momento, é uma bandeira de algumas forças políticas que dizem que, se comemoramos o 25 de Abril, temos de comemorar o 25 de Novembro. Eu considero que o 25 de Novembro faz parte do processo em que nasceu o 25 de Abril, assim como o 11 de Março. Não foi um golpe de Estado militar das esquerdas contra a direita. Não foi dirigido pelo PCP, que é outra narrativa que existe. Hoje sabemos que o PCP realmente mobilizou os seus militantes, foi buscar armas, mas o que queria era mudar a correlação de forças no Conselho da Revolução, que tinha sido sempre à esquerda a partir do 11 de Março. Dizem que foi a extrema-esquerda que tentou, com os seus militares, fazer um golpe porque tinham importância no RALIS, na Polícia Militar... Mas também não é verdade.
O que foi então o 25 de Novembro?
Foi uma tentativa de vários lados para modificar a correlação de forças. Uns queriam manter-se legais, outros queriam proibir forças políticas opostas. A extrema-direita e a direita quiseram proibir todos os partidos à esquerda do PS – o PCP e todos os outros grupos. Havia imensos nessa altura. Era uma loucura. Uma autêntica manta de retalhos. Penso que certos grupos da extrema-esquerda, como por exemplo o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) da Isabel de Carmo, tinham força em determinados regimentos do COPCON e contaram com o Otelo (Saraiva de Carvalho). Nesta história, o Otelo é outro mistério. Será que foi mesmo para casa dormir nesse dia, como disse? Ele era uma das figuras principais no 25 de Novembro porque era o chefe máximo do COPCON. No entanto, não participou em nenhuma das ações do 25 de Novembro e deixou até um vazio no COPCON. Tanto que há pessoas à esquerda que o culpam pela derrota. O que é certo é que ele foi importante para não haver uma guerra civil.
Qual foi o principal responsável por evitar esse fim trágico da revolução? Há um rosto ou são vários os rostos?
Há muitos rostos. O PS teve muita influência nisso. O PSD também, mas sobretudo o PS, porque também havia setor armado nos socialistas, não era só nos comunistas. E o próprio PCP também teve muita importância porque teve medo da guerra civil e desmobilizou. Por outro lado, a vertente internacional também contou muito. Estávamos na Guerra Fria e o PCP nunca fez grandes manifestações para Portugal sair da NATO. De certa forma, sabia que Angola interessava mais à União Soviética do que propriamente ter uma Cuba na Europa. Neste processo, o Costa Gomes foi também fundamental a vários níveis. Ele reuniu em Belém todos os elementos do Conselho da Revolução durante todo o 25 de Novembro até ao dia 26. Foi a reunião mais longa do Conselho da Revolução. E estavam cercados por forças próximas do Grupo dos Nove porque o Conselho da Revolução ainda tinha alguns elementos gonçalvistas, por exemplo, da Marinha.
O objetivo era retê-los ali?
Era retê-los ali e fazer com que o COPCON não funcionasse. A Marinha e os Fuzileiros não funcionaram. E, do outro lado, já estava o Salgueiro Maia com vários regimentos pelo País, à espera do sinal para avançar. Não foi necessário. O Costa Gomes foi uma figura muito preponderante nesse dia. Na altura, só se falava em guerra civil. E ele fez vários discursos nas vésperas do 25 de Novembro a dizer que não podia haver uma guerra civil. Os militares não se podiam dividir a esse ponto, não podiam ir atrás de alguns políticos. Mas o Grupo dos Nove também foi fundamental porque eram elementos importantes do 25 de Abril que tinham um programa para o socialismo.
Os olhos do mundo viraram-se para Portugal com a Revolução dos Cravos. E teve um efeito de contágio a outros países.
O 25 de Abril é uma data feliz mas é, sobretudo, uma data excecional. Não só para Portugal, mas também ao nível europeu. Nas transições das ditaduras para democracias, a tendência era a negociação entre as velhas e as novas elites. Foi o que aconteceu em Espanha, por exemplo. E a Grécia dos Coronéis acabou em 1974, logo a seguir a Portugal.
Foi uma onda de choque do que aconteceu em Portugal?
Penso que não. Foi uma coincidência, mas há sempre aspetos que têm a ver, como o fator guerra. Na Grécia também havia o diferendo com a Turquia por causa de Chipre.
Mas normalmente as revoluções estão relacionadas com guerras?
Estes casos das transições nos anos 70 estiveram relacionados também com guerras. Sobretudo porque foram militares que depois ficaram no poder e instauraram ditaduras. Aqui em Portugal aconteceu o contrário. O 25 de Abril é excecional porque foi ao contrário, a todos os níveis. Foi uma revolução por rutura. No dia 24 tínhamos uma ditadura, no dia 25, às 6 da tarde, ainda não era a democracia representativa, mas as pessoas estavam livres.
E festejaram.
Exatamente! Tem havido muito interesse na Europa e no Brasil sobre o processo do 25 de Abril. Estive recentemente numa conferência na embaixada de França, com historiadores portugueses e franceses, onde me perguntaram se era possível exportar o 25 de Abril. E eu respondi que a história não se repete. Houve uma conjugação de fatores e, além disso, os indivíduos contam muito. Depois, houve aqui um outro elemento importante que foi a participação popular. Deixou de ser um golpe de Estado e passou para uma revolução. Isso teve muito a ver com o facto de as pessoas desobedecerem e irem para a rua.
Não era isso que se pedia à população.
Pelo contrário! O MFA ficou estarrecido. Podia ter corrido mal. O golpe de Estado é um golpe militar e podia ter havido sangue. É absolutamente extraordinário como as pessoas tiveram a coragem de ali estar no Largo do Carmo. Ouvi recentemente os tiros que o Salgueiro Maia disparou por duas vezes contra o Quartel do Carmo. Aquilo até faz impressão! São rajadas num espaço fechado, cheio de gente. E ninguém saiu! Há alturas da história que não conseguimos perceber muito bem. Os capitães de Abril fizeram um golpe de Estado muito bem feito, com muito sucesso. Em 19 horas resolveram o assunto. Mas também muito devido ao apoio popular. Se houvesse resistência do regime, eles iam agir e aí demoraria mais tempo. Ora, à conta de haver muitas pessoas na rua, o regime não reagiu. Rendeu-se quase de imediato.
Ou seja, o fator povo foi muito importante naquele dia.
Teve imensa importância e isso ninguém podia prever. Pouco tempo antes, o Marcello Caetano esteve no estádio do Sporting, num jogo de futebol, e foi aplaudidíssimo pela multidão.
Nada fazia prever que o regime ia cair?
Para mim, não. E para as pessoas, como eu, que estavam nos grupos da oposição [pertencia ao CMLP “O grito do povo” – organização comunista, marxista, leninista portuguesa], não era previsível. Sei que o PS e o PCP tinham militantes que estavam a fazer o serviço militar obrigatório, que eram alferes milicianos e que lhes transmitiram algumas informações. No caso do PS, foi o António Reis. Mas não disseram o dia do golpe. Tanto que o Mário Soares no dia 25 de Abril estava em Bonne para falar com o Willy Brandt [político social-democrata alemão, que em 1974 era chanceler da República Federal da Alemanha] e já não houve reunião. O Mário Soares meteu-se no comboio e veio-se embora. E o Cunhal estava em Paris e veio de avião.
No seu livro, refere que circulava, tanto no governo de Marcello Caetano como na DGS, a informação de que havia movimentações de militares. Temos a ideia de que eles foram todos apanhados de surpresa, mas não foi assim. Porque é que não fizeram nada?
É um grande mistério. Há várias razões para isso, mas são sempre razões. E, em história, muitas vezes, são vários fatores que se conjugam.
Eles desvalorizaram de alguma forma essa informação?
Eles dizem que não. É muito complicado perceber, porque há a questão da memória e do que eles querem transmitir. Se formos ver os testemunhos do Álvaro Pereira de Carvalho, chefe dos serviços de informação, a Intelligence do regime), e do Silva Pais, o diretor da DGS, a seguir ao 25 de Abril, eles dizem que o próprio governo e as estruturas militares os obrigaram a vigiar o Kaúlza de Arriaga, porque podia haver um golpe da extrema-direita. E, à conta disso, tiveram de deixar de vigiar os militares, que sabiam que se estavam a reunir. As razões podem ser várias. Havia spinolistas lá dentro da DGS, que foram depois ajudados na sua fuga pelo próprio Spínola e pelo Costa Gomes, que tinha trabalhado como governador e chefe das Forças Armadas em Angola com o São José Lopes [subdiretor da Polícia Internacional e de Defesa do Estado]. É preciso perceber que os militares, sobretudo os profissionais, e a polícia política, funcionavam em conjunto nas colónias. A PIDE/DGS era o aparelho de informações das Forças Armadas. Portanto, nunca pensaram que, se houvesse um golpe militar, significasse perigo. Havia também cumplicidades entre eles. Muitos deles até achavam que o Marcello Caetano tinha de sair do poder porque não contentava nem os ultras, nem os spinolistas. A única prova que temos é que eles escutaram os militares do MFA. Eles sabiam e sabiam quem se tinha reunido. De certeza que havia infiltrações. E as escutas que estão na Torre do Tombo terminam em dezembro 1973. O que é estranhíssimo.
No Movimento das Forças Armadas percebe-se que não tinham todos as mesmas motivações.
No documentário “A Conspiração”, do António-Pedro Vasconcelos, que passou na RTP, vemos que há pessoas com ideias diferentes. Uns militares vão para a reunião de Alcáçovas para travar os radicais. Outros foram lá por questões corporativas. Mas havia outros que já viam um pouco mais longe. Houve várias agendas no 25 de Abril. Há sempre várias agendas num processo revolucionário.
Uma das coisas que percebemos também é que Spínola não queria acabar com a DGS.
Claro que não. Tanto que nomeou um diretor no próprio dia 25 de Abril.
Mas, mesmo dentro do programa do Movimento das Forças Armadas, existia essa intenção de acabar com a DGS?
Há a intenção de acabar com as instituições do regime. E uma delas era, evidentemente, a DGS. Mas também a Legião Portuguesa, as mocidades, a União Nacional... Só que, naquela noite de 25 para 26 de Abril, na reunião no posto de comando da Pontinha onde estava a Junta de Salvação Nacional e as pessoas do programa do MFA, o Costa Gomes disse que, enquanto houvesse guerra colonial, a PIDE tinha de continuar a funcionar nas colónias. Teria outro nome – Serviço de Informação Militar. Isso também saiu furado. Há aqui outro mistério. Porque é que a PIDE não foi um alvo logo no dia 25 de Abril? Ter-se-iam evitado os quatro mortos provocados pela PIDE, na António Maria Cardoso. O que aconteceu foi que, ao receber o poder de Marcello Caetano, isso deu um protagonismo imediato ao Spínola. Tanto que ele não só foi Presidente da Junta de Salvação Nacional como depois foi Presidente da República, não eleito. Foi ele que nomeou ainda um chefe da PIDE e foi ele que não quis libertar todos os presos políticos. Disse que aqueles que tinham cometido crimes de sangue não deviam ser libertados, o que incluía o Hermínio da Palma Inácio, que tinha roubado a dependência do Banco de Portugal da Figueira da Foz, o Francisco Martins Rodrigues e outros da Ação Revolucionária Armada (ARA) que tinham posto bombas. Esses não seriam libertados. E aí também foi a população que não arredou pé até que fossem libertados. Eu estive lá, em Caxias. Foi naquele momento que eu disse: pronto, isto agora já não volta para trás. Para mim, o 25 de Abril foi no dia 26.
A condecoração de Spínola pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa pareceu-lhe adequada neste cinquentenário do 25 de Abril?
Não. Pareceu-me muito desadequada sobretudo porque foi feita praticamente às escondidas. Uma condecoração, em princípio, é uma coisa para ser mostrada. E acho que o 25 de Abril também não foi o momento certo. Spínola não teve nada a ver com o 25 de Abril, a não ser o facto de ter recebido a rendição de Marcello Caetano, o que lhe deu protagonismo. Ele sabia que ia haver um golpe de Estado do MFA porque foi informado e foi informado do programa. Mas o golpe de Estado não é dele.
A Revolução dos Cravos fez soar as campainhas nos Estados Unidos. De início, os americanos não perceberam muito bem o que se estava a passar, mas deram especial atenção aos acontecimentos em Portugal.
Qual era o receio que tinham?
Tiveram medo de que houvesse qualquer coisa na Península Ibérica que depois contagiasse países europeus com uma forte presença do Partido Comunista, como a Itália, a França e a Grécia. Os americanos não ficaram logo em estado de choque porque tinham uma posição anticolonial. O que fez tocar as campainhas foi a partir do 28 de setembro, porque eles tinham a confiança no Spínola. Inicialmente, até pensavam que o Spínola é que tinha dirigido aquilo tudo. Estavam muito mal informados. A CIA, os serviços secretos franceses e os serviços secretos alemães estavam informados pela PIDE/DGS, que lhes disse que tão depressa não ia acontecer nada. Foi passando uma imagem de tranquilidade e de controlo da situação. Essa é outra das características do 25 de Abril. É um processo só nacional. Muitos dizem que a NATO estava ali à espera de entrar em ação. Então, porque não entrou? Estava, de facto, a fazer exercícios próximos de Portugal, mas não entrou em ação porque não sabia o que se passava. A dada altura, o Kissinger disse: os portugueses que façam a Cuba na Europa e servem de contágio. Como vão falhar, porque nós não os apoiamos, servem de vacina para os partidos comunistas da Europa. Foi o Carlucci, o embaixador, que apostou que os moderados deviam ser apoiados.
Portugal também foi um elemento importante no contexto da Guerra Fria. Estiveram cá elementos da CIA e do KGB ao mesmo tempo.
A seguir ao 25 de Abril, veio tudo. Todos os espiões. Alguns dos países europeus do chamado Ocidente já estavam cá antes e funcionavam com a PIDE, no âmbito da NATO. E, a seguir ao 25 de Abril, ainda vem também o KGB. Muitos vieram como jornalistas. Tinham dupla função. Mas, com os da CIA, era a mesma coisa. Estavam nas embaixadas, junto dos adidos militares ou mesmo junto do próprio embaixador. Isso sempre aconteceu. O KGB, claro que teve uma força redobrada com o 25 de Abril, porque aí o PCP fazia a ligação. Hoje também há outros aspetos que já estão estudados, e que são muito interessantes, sobre a importância da RDA na formação dos serviços secretos, na sequência do 11 de Março. Houve um serviço secreto que se chamou SDCI, que tinha gonçalvistas. Aliás, esse serviço foi logo proibido e desmantelado no 25 de Novembro. Mas a RDA não só deu “know how” para um futuro serviço de informações, como também investiu muito no País porque precisava de lavar dinheiro.
Em que investiu?
Investiu, por exemplo, na HESKA, que era uma grande empresa de publicações dirigida pelo PCP. Havia a grande, e praticamente única, empresa de ar condicionado, a FNAC, que o administrador era do PCP. Por isso mesmo dizia-se que eles montavam o ar condicionado e também montavam escutas telefónicas. Não digo que não. Pode ter acontecido.
Agora que estamos a celebrar os 50 anos do 25 de Abril, os arquivos já estão todos disponíveis para estudar este período da história?
Os arquivos militares já estão praticamente todos disponíveis. Mas penso que ainda não estão todos, embora os militares digam que sim. Tenho lutado bastante, juntamente com outros colegas historiadores, para que neste cinquentenário todos os arquivos sejam abertos. Especialmente os militares, que são os últimos. Aqueles que fizeram o golpe de Estado também guardaram os seus documentos. E não tiveram vontade de fazer um processo político, como a população quis relativamente à PIDE, porque tinham tido contactos com os elementos da PIDE.
Ainda há documentação que está na posse de particulares?
Penso que sim. Houve muita gente que levou documentação da PIDE. Uma parte foi levada para a União Soviética, embora o diretor do arquivo da Torre do Tombo diga que não. Toda a gente sabe. Há testemunhos de soviéticos do KGB que viram a documentação e que depois saíram do KGB e foram para o Ocidente. Há livros sobre isso. Depois, há episódios também que foram relatados. O jornalista José Pedro Castanheira entrevistou o militar que era chefe da PSP na altura, que conta que estava a comer junto ao Teatro São Luiz e viu, a dada altura, documentação a ser metida em carrinhas militares da Marinha. Seguiram-nos e viram que essa documentação foi para um avião da Aeroflot. Essas coisas dão-nos essas pistas.
O que é que eles queriam?
Queriam sobretudo a documentação sobre o relacionamento dos seus serviços secretos com a PIDE. Estávamos ainda na Guerra Fria. Também as embaixadas dos países europeus, na sequência do 25 de Abril, foram pedir aos militares a documentação que estava no arquivo da PIDE relacionada com os seus serviços. E eles deram.
Mas quem é que deu acesso a essa documentação ao KGB?
Como os militares não percebiam nada da PIDE, recorreram a militantes do PCP, pessoas que tinham sido presas e torturadas e, portanto, que conheciam mais aquela polícia. E depois houve uma coisa muito importante. É que quem tomou a sede da PIDE na António Maria Cardoso, às 9 horas da manhã do dia 26, foram os Fuzileiros. E o Comandante Costa Correia, que comandava o Grupo de Fuzileiros, resolveu ficar na António Maria Cardoso. Lá está outra coisa que não foi planificada. Ele fez isso para defender os arquivos que ainda lá estavam. Uma parte da documentação já estava em Caxias, mas também foram os fuzileiros que continuaram a ocupar a prisão e guardaram essa documentação. Isso
foi muito importante para os ficheiros terem vindo praticamente incólumes. Praticamente. Evidentemente que militantes de todos esses grupos que tinham sido clandestinos, levaram coisas dos seus partidos. O do Cunhal não está lá. Está só uma parte. O do Mário Soares também só está uma parte.
Mas já se sabe onde está essa documentação em falta?
Não.
Uma sondagem do ICS/ ISCTE, publicada no Expresso poucos dias antes do 25 de Abril, revelou que dois em cada três portugueses consideram o 25 de Abril como o momento mais importante da história de Portugal. Essa percentagem de portugueses aumentou e é a mais alta dos últimos 20 anos. Isto apesar da maior polarização política no País. Como é que interpreta estes resultados?
Acho que são extraordinários. É a força do 25 de Abril. A Revolução dos Cravos ficou na história das pessoas como um acontecimento importante e feliz. Por outro lado, vi outra sondagem, no Público, em que 47% dos portugueses não recusariam um homem forte no poder sem eleições. Isto entra um pouco em contradição. Mostra que estamos em crise. É uma crise dos partidos do arco democrático, mas que não atingiu o 25 de Abril. Fico muito contente com este resultado, mas agora quero ver como é que isso se coaduna com as eleições europeias.
Podemos ter a certeza de que os valores de Abril estão a passar para as gerações mais novas? Isso ficou evidente na massa de portugueses que saiu à rua no dia 25 de Abril?
A grande afluência na manifestação do 25 de Abril foi um voto com os pés, no sentido em que as pessoas foram a pé para uma manifestação, para um desfile. Penso que foi uma reação ao resultado das eleições de 10 de março. Foi um voto de preocupação e, ao mesmo tempo, as pessoas foram também para comemorar os 50 anos do 25 de Abril. Há uma evidência muito expressiva de que as pessoas, pelo menos aquelas que se foram manifestar, estão com os valores que recebemos a 25 de Abril. Claro que, de uma manifestação, não podemos retirar todas as conclusões. Mas uma das coisas que essa manifestação revelou foi a presença de muita juventude. Eu estive lá e isso foi uma das coisas que me espantou de forma agradável. Parece que há um legado que está a passar.
Entrevista a Irene Pimental, publicada no Jornal de Negócios de 10 de Maio de 2024
E agora Raquel Varela no Expresso ou
aqui:
A 25 de novembro de 1975 um novo golpe de Estado à direita, liderado militarmente por Ramalho Eanes, conduzido civilmente pelo Partido Socialista – com o apoio da direita tradicional, da Igreja Católica, da NATO e do “Grupo dos Nove”, uma ala social-reformista do MFA –, prende mais de 100 oficiais revolucionários e passa à reserva os soldados das unidades onde a dualidade de poderes tinha ganhado expressão embrionária. O golpe de Estado restaurou a “disciplina” nas forças armadas, acabou com a “sovietização” – na expressão do próprio Soares – nos quarteis, e assegurou a estabilização das instituições, restituindo assim a centralidade do Estado português na forma política de um sufrágio universal, Parlamento eleito , a nova Constituição, que sagraria a fórmula dos direitos, liberdades e garantias e um assim-chamado Estado de Direito.
O fim da revolução dá-se por uma fórmula inovadora, que será depois aplicada na América Latina, nos anos de 1980. Mário Soares lidera esta “contrarrevolução democrática” a 25 de novembro de 1975, quase sem mortos e com amplas cedências sociais (o Estado social e direito ao emprego seguro). É de facto um “empate técnico” – os trabalhadores organizados são por fim derrotados politicamente, mas a burguesia é socialmente obrigada a amplas concessões, ao estilo de França e Inglaterra no segundo pós-guerra (1947); o PCP por sua vez aceitou não resistir (ou terá mesmo pré-negociado?, ainda está por investigar a fundo) ao 25 de novembro, assumindo publicamente – o que demonstrei na minha investigação–, pela mão do seu líder de então, Álvaro Cunhal, que a esquerda militar se tinha tornado um fardo para o PCP porque a sua atuação punha em causa o equilíbrio de forças com os Nove e os acordos de “coexistência pacífica” entre os EUA e a Europa Ocidental e a URSS e o Leste Europeu (Acordo de Ialta e Potsdam). A revolução acabou não por um putsch fascista, como no Chile do General Pinochet, mas num golpe civil-militar de novo tipo, com escassa violência e com diminuta resistência. O chamado poder popular – a dualidade de poderes em acto, a democracia participativa – não tinha coordenação geral de nenhum tipo, nada semelhante a um partido bolchevique existia em Portugal, nem a revolução teve efeitos nos países centrais da Europa – Alemanha, RU e França – apenas na Espanha e Grécia.
Esta ambivalência faz com o 25 de Novembro nunca tenha tido celebrações oficiais em Portugal. É um golpe que então sequer recebe este nome por quem o apoia (fala-se de golpe dos paraquedistas, quando estes foram provocados a sair, para justificar o golpe de direita); foi visto pelas elites dirigentes como uma “necessidade” de “normalização” para pôr fim à “sovietização das forças armadas” e demais esferas da vida. Uma “necessidade” – até à queda do muro, quando o PCP mudará sua posição – também assim percebida pelo PCP, que viu tal golpe como um meio eficaz para controlar a esquerda militar, fora parcialmente do seu alcance. Na minha opinião o PCP agiu a la Barcelona em 1937.
O PS oferecia uma terceira via – “escandinava”, dizia-se – contra uma URSS estalinista ditatorial e o imperialismo hegemónico norteamericano. Essa narrativa falhou em duas dimensões. O PCP nunca quis fazer uma revolução em Portugal (queria Angola), e a “Europa connosco” nunca teve lugar. Portugal é já um dos países mais pobres da Europa Ocidental – depois de poucos anos de alívio na sequência da revolução social –, Soares vai, no fim da vida, coerente, erguer-se contra o ordo-neoliberalismo alemão, alguns militares que fizeram o 25 de Novembro, olhando os vis efeitos das políticas austeritárias a partir de Cavaco Silva, questionaram-se, entretanto, se teria valido a pena.
As celebrações dos 50 anos da Revolução dos Cravos – sem surpresa, diga-se – são pouco unânimes. Deputados, quadros e votos dos partidos da direita tradicional e democrata-cristão (o PSD e o CDS em reedição da “Aliança Democrática”), migraram para o novo Partido Chega, com elementos de neofascismo, fazendo desparecer o CDS e tornando difícil a uma ala mais liberal do PSD, de onde sai o seu principal dirigente, sobreviver à deriva neofascistizante nas suas próprias fileiras – as velhas e novas direitas altercam-se e amalgamam-se entre si numa plêiade ultraliberal e hiperconservadora que abarca sectores neofundamentalistas cristãos, inclusivamente fatimistas. A nova vontade de se celebrar o 25 de Novembro emerge daqui.
A nova extrema-direita plasmada no anti-comunismo da IL e no neofacismo do Chega, normalizado pelos media como “liberais” ou “direita radical”/“extrema-direita” apresentam-se às regras do jogo. Querem celebrar o 25 de Novembro pelo que foi, isto é, um golpe de Estado contra a democracia no trabalho, contra a dualidade do poder popular, enfim, o início do fim da revolução. O princípio da reconstrução do aparelho de Estado capitalista para uma nova reconversão produtiva (e política): de uma burguesia dependente do trabalho forçado – e das colónias africanas – até 1974 para uma burguesia de hegemonia limitada ou um protectorado de facto, dos investimentos, máquinas e capitais alemães, franceses e ingleses (e norteamericanos, espanhóis, chineses, ou outros).
A “contrarrevolução democrática”, conceito político central para apreender o que realmente se passou em Portugal, mostra cada vez menos democracia, e cada vez mais contrarrevolução. Não à tôa, como disse o Padre Martins Junior de modo acutilante, temos 50 neofascistas no hemiciclo depois de 50 anos da Revolução de Abril. A palavra de ordem não poderia ser mais atual: 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais.
E agora, por último, outro historiador, o insuspeito Pacheco Pereira, do PSD, num artigo publicado no
Público, intitulado "25 de Novembro e rigor histórico":
"
Primeira coisa: o 25 de Novembro não tem qualquer comparação com o 25 de Abril, misturá-los diminui o significado do primeiro. O 25 de Abril foi uma data fundadora que acabou com 48 anos de ditadura, e com três guerras coloniais, em Angola, Moçambique e Guiné.
Foi um acontecimento de dimensão mundial. O 25 de Novembro foi uma data correctora, comparável à derrota do golpe de 11 de Março, que teve o mesmo papel. Ambas se fizeram num clima de excesso e esse excesso era perigoso para a democracia e atrasaram a consolidação de uma democracia parlamentar, mas o que é que se podia esperar de uma viragem histórica tão radical como foi a derrota da ditadura? Que seria calma e pacífica?(...)"
E agora acrescento também excertos da entrevista que Pacheco Pereira deu, com Irene Pimentel, ao Diário de Notícias, no triste dia de hoje, em que pela primeira vez se celebrou o 25 de novembro na assembleia da república, não tivéssemos nós, nos cinquenta anos do 25 de abril, 50 fascistas assumidos no parlamento.
"Não há grandes dúvidas sobre o que sucedeu no 25 de Abril de 1974, mas continua o debate sobre o 25 de Novembro de 1975. É o principal interesse da data?
Irene Flunser Pimentel (IFP) – Penso que é. Ramalho Eanes diz que as datas fraturantes, como o 25 de Novembro, não são para comemorar, e sim para estudar e discutir. Os historiadores devem ouvir as várias partes. O 25 de Novembro é estritamente militar. Não há população nas ruas, como no 25 de Abril, e existe a tentativa de dizer que era uma tentativa revolucionária. Estive em mesas de moderação com militares de Abril, alguns de Novembro, do Grupo dos Nove. Cada um contava a sua verdade, e não quer dizer que estivessem a mentir.
Há algo de estruturalmente errado em comemorar a data na Assembleia da República?
IFP – Acho que há, porque quem tomou a iniciativa de comemorar foi a direita e a extrema-direita, neste momento em maioria na Assembleia. São figuras que não participaram no 25 de Novembro. Quem participou verdadeiramente foram os militares moderados do Grupo dos Nove e o PS.
Pacheco Pereira (PP) – Não veria, em princípio, inconveniente em que se comemorasse, desde que de forma rigorosa. O caráter oficial das comemorações, na Assembleia da República, confronta o 25 de Abril. É evidente que o 25 de Novembro tem um papel, como vários acontecimentos daqueles anos, na consolidação do caminho democrático numa altura de grande confusão política e de confrontos enormes. Querem comemorar? Comemorem o Costa Gomes. IFP – Exatamente.
PP – Coisa que a direita, obviamente, não quer fazer. Comemorem o Vasco Lourenço e os militares dos Nove. Coisa que, evidentemente, também não querem fazer, por acharem que isso é uma sombra para o Jaime Neves, o único que querem comemorar. Comemorem Mário Soares e o PS. Comemorem os partidos que conduziram o movimento de resistência à esquerdização, digamos assim, do PREC naqueles anos. Se querem comemorar, comemorem com essas pessoas.
O PS tem tido uma posição saudável sobre o 25 de Novembro?
PP – Não tem, de todo. Podia ter feito um esforço de fazer comemorações rigorosas. Inclusive, referindo o seu próprio papel, o de Mário Soares, de Salgado Zenha e de uma série de pessoas do PS.
IFP – Tens toda a razão. Não se percebe a atitude do PS.
PP – É uma mistura de ignorância, pouco respeito pela História...
IFP – De gente que não se quer identificar com a direita, mas assim tem a narrativa de que a direita faz do 25 de Novembro. Não verdadeiramente o que se passou.
É quase como uma derrota por falta de comparência.
PP – Ao procederem como procedem, deixam o terreno livre.
IFP – Por exemplo, acho péssimo, do ponto de vista do PCP, não estar presente na Assembleia. Toda a gente devia estar presente.
A ausência do PCP não é muito contraproducente quando a ideia de que o partido quis implantar uma ditadura, naquela altura, começa a desaparecer?
IFP – Alguém acredita que o PCP fez um golpe de Estado e ninguém os viu nas ruas? Estavam mobilizados nas sedes? Evidentemente. Como em qualquer das outras ocasiões.
PP – Tinha sempre um pé dentro e um pé fora.
IFP – O PCP percebia muito bem que Portugal não iria ficar fora do campo ocidental, até pela détente entre os Estados Unidos e a União Soviética. O que se sabe é que houve desmobilização. Mas evidentemente que aquilo era uma panela de pressão. Todos os dias se falava em guerra civil, em golpe de Estado, contavam-se espingardas...
E havia algo como uma linha divisória do país em Ri Maior.
PP – O mérito do 25 de Novembro é travar o caminho para a guerra civil.
IFP – Costa Gomes é fundamental. Ele e o Grupo dos Nove travaram a direita e a extrema-direita.
PP – Há duas derrotas. A do dia 25, da ala esquerdista das Forças Armadas, e a do dia 26, que foi a da tentativa de ilegalizar o PCP.