"A burguesia portuguesa não dorme tranquila. Tem a intuição do inevitável. Sabe que está condenada, vencida pelo progresso, pela evolução lenta mas segura da civilização mundial, caminhando decididamente, seguramente, para a democracia socialista que não é, afinal, contra ninguém, nem mesmo contra a própria burguesia, mas em que pretender tornar felizes todos os habitantes da Terra, não à força, mas garantindo tão-só a todos os cidadãos o direito ao Trabalho dignamente remunerado e à liberdade codificada pela lei justa, discutida e aprovada pelo Parlamento nacional, eleito pelo povo - isto é: na convergência dos interesses e na fraternidade das intenções.
Manuel Francisco Rodrigues ia assistindo à morte dos companheiros e elaborando no seu espírito o que seria o grande livro a sair em 74, três década depois:
Sabemos que estamos manietados, que o nosso fim é a cova do cemitério, sob a terra africana, longe da nossa família e da nossa Pátria. Porém, sabemos também que venceremos. Perderemos talvez no temppo; mas ganharemos com certeza no espaço. Cada um de nós sabe que é um pioneiro de uma casa justa e tem a certeza que essa causa triunfará no futuro. E, asism, sentimo-nos ligados por esse porvir que, de quaquer modo, também será obra nossa. E essa certeza, enche-nos de orgulho e de força, a força que anima os estóicos, os santos e os heróis... Por isso sofremos, em silêncio, curvados para a terra, mas os nossos espíritos pairam muito alto... Até os mortos, mesmo amarelos, têm a nobreza imaculada e pura de tudo que é santo... Sim... Todos os nossos mortos pertencem já à História... deram entrada no Panteão dos Heróis... santificados pelo martírio... São os dignos descendentes dos gloriosos bravos das Catacumbas...
E não há uma voz generosa que se levante, um padre, um juiz, um ministro, um homem bom, que esteja em liberdade e que tenha influência moral e social para exigir, pedir ou suplicar, em nome de Cristo, da Lei, da Humanidade, por humanidade ou por piedade, por qualquer coisa e de qualquer modo, que se termine com este horrível sepulcro, onde mais de duzentos homens esperam a hora da morte, entre os quais há, talvez, quem tivesse cometido algum delito, mas onde há, também, com certeza, absolutamente, indiscutivelmente, muitos inocentes...
Aquele horror não podia continuar. Era preciso condenar os delinquentes se os havia, mas acabar com aqueles matadouro indigno da terra lusitana ("os portugueses são tenros" - reconheceu recentemente Leopold Senghor, ao ser entrevistado pela TV italiana). Manuel Francisco Rodrigues escreveu ao cardeal Patriarca de Lisboa de então, a fim de que enfrentasse a prepotência, em nome da liberdade e da consciência humana. Mas foi em vão... Ninguém lhe respondeu. A sua voz clamava no deserto do medo... no pântano da indiferença, conforme explica.