"O espaço mítico da vida militar na vida dos jovens camponeses e suas famílias é construído através das formas de interconhecimento que caracterizam as sociedades de cultura oral, pelo que não surpreende que o cancioneiro popular português esteja recheado de motivos militares. E esse espaço articula-se e aprofunda-se nas cartas que se trocam com a família, com os amigos e com as madrinhas de guerra. Como diz Modesto Navarro, "às histórias ancestrais" do soldado que regressava da guerra e do "Milhões", que povoaram o nosso imaginário de habitantes do interior, juntavam-se, ano após ano, as pequenas e grandes histórias dos jovens que ficavam apurados e iam para Chaves, Vila Real, Lamego, Porto, Santarém ou Lisboa, cumprir a vida militar".
A ida à tropa sempre foi um fator de perturbação na vida do jovem e da sua família. Na sociedade rural, a ida à tropa interferia negativamente com o ciclo de produção e de reprodução da economia camponesa na medida em que lhe retirava dois preciosos braços de trabalho. Esta privação não era, contudo, apenas económica; era também afetiva. Dado o carácter multiplexo (de múltiplo vínculo) das relações sociais no campo, a saída de um dos membros da comunidade significava a perda de um agente económico, a privação do exercício do controlo paterno e materno, a perda de um companheiro nos momentos de ócio, a privação do arrimo e do conforto nos momentos mais duros da luta pela sobrevivência, o abandono ou pelo menos a adiamento de um projeto de casamento. Não admira, pois, que a sociedade rural chorasse a saída dos seus filhos como eloquentemente mostra a nosso cancioneiro popular:
Adeus, adeus ó Coimbra
Toda alumiada a gás;
Adeus quartel da Sofia
Onde eu tenho o meu rapaz.
(Beira)
Quando eu assentei praça
Peguei nas armas reais;
Minha mãe chorava muito,
Eu inda chorava muito mais.
(Famalicão)
Adeus ó Vila de Cuba
Cercada de cachos de uvas;
Vão os moços para a tropa
Ficam as moças viúvas
(Cuba)
A trança do meu cabelo
Hei-de mandá-la vender,
Pra livrar o meu amor,
Soldado não há-de ser.
(Douro)
Ó comboio da hora e meia
Não te posso ver passar!
Levaste o meu amor
Para a vifa militar
(Minho)
Mas a ida à tropa era também uma libertação e uma promoção. Tinha antes de mais o atrativo do desconhecido sedutor, de um mundo maior, urbano, anónimo, diferente, onde as lealdades e as autoridades rígidas do mundo rural pareciam ridículas e onde os compassos minunciosos do quotidiano camponês se esfumava sem pena. Como diz Moisés Espírito Santo, num estudo sobre sobre uma comunidade rural do Norte do Tejo, "o jovem só conquista uma certa independência com o serviço militar, que em Portugal, e para utilizar a linguagem dos instrutores das casernas, tem a função de "subtrair os jovens às saias das mães", torná-los adultos, desligá-los do seio materno, no sentido libidinal da expressão".
Até à implantação da República, o serviço militar era cumprido fundamentalmente pelos filhos das classes populares que não tinham padrinhos ou dinheiro para livrar ou para remir a dinheiro o tempo de serviço nas fileiras. Esta discriminação contribuiu para que se implantasse no imaginário social do povo a imagem do serviço militar como mais uma expressão da injustiça social, como um castigo que, aliás, se desdobrava noutros castigos quotidianos, quer no domínio da alimentação e do alojamento, quer no domínio da disciplina (os castigos corporais, de resto banidos - na lei que não na prática - em 1856/57). Em 1903, num artigo significativamente intitulado "A aversão ao serviço militar" e publicado na Revista Militar, Mello e Athaíde referia, entre os motivos que no período anterior criavam a repugnância pelo serviço militar: "Uma das primeiras cousas era a duração do tempo de serviço que podia ser muito longo, atingir todo o período mais belo da vida de um homem; era um adeus eterno aos sonhos da mocidade, que todos os têm, os próprios rústicos. E depois, quem pagava esse serviço eram só os miseráveis; o tributo de sangue foi por muito tempo apanágio do pobre".
A dureza da vida militar, que muitos pais abençoavam como meio de domar a rebeldia dos filhos - os quais, como ainda se diz no Alto Minho, "hão-de ir à tropa e quebrar os narizes" - continuou por muitos anos a povoar e a assombrar o imaginário popular...
O Estado e a Sociedade Em Portugal 1974-1988 / Boaventura Sousa Santos (1990)
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