quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Mil Cerejeiras




 

Com uma chamada audaciosa e repentina, a Revolução Ocidental está a começar 
Que os nossos corações estejam abertos a isso 
Nação pacifista 
Montando uma bicicleta antiga, é a bandeira do nosso sol nascente 
Afugentando espíritos malignos como um míssil

Nas linhas do comboio, correndo ao longo da linha 
Vamos avançar. Não olhes para trás 
Rapazes e raparigas tornando-se como samurais 
Assim como aqueles da nossa vida anterior

Milhares de cerejeiras murchando na luz 
Embora não consiga ouvir a tua voz, guarda o que eu digo em mente 
Este buquet que nos envolve é veneno de ferro, vê 
Olhando para nós lá de cima naquela grande guilhotina

A escuridão acabou de envolver o universo que conhecemos 
O lamento que cantas já não pode alcançar ouvidos 
Ainda estamos longe de atingir céus azuis limpos 
Vai em frente, continua a disparar, com essa pistola de raios, luta!

Veteranos que se treinaram através de lutas são agora oficiais na batalha 
Aqui e ali, vemos as prostitutas em procissão 
Este, aquele, não importa, cada pessoa se reúne 
Marchemos agora para as nossas mortes santas! 1, 2, 3, 4

Passando pelos portões nos picos das montanhas 
Escapando deste mundo, matem todos os demónios malignos 
Certamente isso terminará num desfecho 
Entre a multidão que dá os seus aplausos

Milhares de cerejeiras murchando na luz 
Embora não consiga ouvir a tua voz, guarda o que eu digo em mente 
Este buquet que nos envolve é veneno de ferro, vê 
Olhando para nós lá de cima naquela grande guilhotina

A escuridão acabou de envolver o universo que conhecemos 
O lamento que cantas já não pode alcançar ouvidos 
Ainda estamos longe de atingir os picos da esperança 
Vai em frente, continua a disparar, usa o raio intermitente!

Nas linhas do comboio, correndo ao longo da linha 
Vamos avançar. 
Não olhes para trás 
Rapazes e raparigas tornando-se como samurais 
Assim como aqueles da nossa vida anterior

Milhares de cerejeiras murchando na luz 
Embora não consiga ouvir a tua voz, guarda o que eu digo em mente 
Este buquet que nos envolve é veneno de ferro, vê 
Saltando para nós lá de cima naquela grande guilhotina

Milhares de cerejeiras murchando na luz 
Quando a tua canção puder ser ouvida, dançaremos com toda a nossa força 
Este buquet que nos envolve é veneno de ferro, vê 
Vai em frente, continua a disparar, com essa pistola de raios, lidera!


Senbonzakura  | Hatsune Miku | versão WagakiBand (2014)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

O Comunismo é um Sonho e Talvez uma Utupia

Talvez possa parecer estranho a alguns, ou talvez não. Parecerá estranho eu disser que não votarei no PCP nas legislativas mas afirmar que é o partido que mais respeito na democracia portuguesa? Acho que uma coisa não invalida a outra. Nem sempre concordo com as ideias do PCP, tal como nem sempre concordo com coisas nos outros partidos de esquerda, que são os que defendem os meus interesses de trabalhador. Contudo e, apesar disso, tenho um enorme respeito por um partido que tem mais de cem anos, que atravessou e sobreviveu à repressão dos 48 anos de ditadura fascista e que lutou, ao lado de muitos outros, anarquistas, sindicalistas, socialistas etc, para que pudéssemos almejar a liberdade. Muitos dos seus militantes entraram, como se sabe, na clandestinidade e muitos pagaram com a própria vida esse atrevimento de espalhar a mensagem dessa luta. 

O PCP é o partido da defesa dos trabalhadores, o partido dos sindicatos, é um partido fundamental da nossa democracia que tem vindo a ser tão atacada. E, aproveitando aqui uma crónica na revista espanhola Muy Historia de 2022, aqui deixo um pouco da história do comunismo:




"Originado das entranhas da pobreza, desespero e fome, o sonho do comunismo tem sido ao longo da sua história uma quimera utópica e uma ciência histórica, transformando-se, por vezes, em pesadelo. O incessante aumento da desigualdade pode ser crucial para o ressurgimento deste sistema político.

O comunismo não é socialismo. Pode-se dizer que este último foi concebido como uma fase preliminar do primeiro.

«O comunismo é um sonho. Um sonho que anteriormente foi utopia; depois, por vezes, pesadelo; e, agora, uma ilusão para uns e uma obscuridade para outros. E uma ameaça existencial para os Estados Unidos - China, com a sua versão peculiar -, tal como sempre foi. Um sonho, em todo o caso, que Karl Marx e Frederic Engels transformaram em ciência após as quimeras utópicas de escritores como Saint-Simon, Owen ou Fourier. Um sonho vívido em lugares tão diversos como a União Soviética, Coreia do Norte, Congo ou Baviera. Um sonho que, talvez, nunca teve a mais ínfima oportunidade  - o potencial norte-americano após a Segunda Guerra Mundial colocou-o talvez numa posição tão dominante que impediu qualquer desenvolvimento económico, político ou social alternativo -, e ainda não sabemos com certeza porquê - natureza humana, condições adversas, implementação defeituosa. Mas um sonho que, finalmente, convém recordar. Mesmo que seja apenas porque continua atual e porque aspira liderar uma nova ordem internacional - a China, como já referi, com um socialismo muito à sua maneira.

O sonho emergiu das entranhas da pobreza, desespero e fome; da exploração e da miséria mais absoluta; da submissão levada ao extremo e à obscenidade. Porque apenas sonham com a liberdade aqueles que não a possuem. Os Romanov e o povo russo são, sem dúvida, um exemplo disso. Em geral, podemos afirmar que o motor dos movimentos socialistas ou comunistas surgiu da desigualdade e do classismo: sociedades profundamente desiguais e classes sociais rigidamente compartimentadas. Os pobres sabiam que eram pobres, que as suas possibilidades de deixar de ser pobres eram quase inexistentes e que os seus filhos seriam igualmente pobres. E o pior, no entanto, nem sequer era a sua pobreza. Pobres, de qualquer forma, que, até à industrialização, estavam suficientemente isolados para não representar um problema, mas que, de repente, começaram a concentrar-se em fábricas e em bairros insalubres. Sujeitos do submundo que, de repente, se encontraram uns aos outros. Encontraram a consciência de classe.



O COMUNISMO NÃO É SOCIALISMO, MESMO QUE PAREÇA

O comunismo é, portanto, muitas coisas, mas, na verdade, pelo menos teoricamente, não é socialismo, pois este é apenas uma fase preliminar de preparação social para a chegada do comunismo.

E talvez seja aqui que reside o defeito da questão, na aplicação teórica equivocada deste sonho, que exigia uma etapa de preparação que nunca foi implementada. Ou talvez não, talvez seja simplesmente impossível. Em qualquer caso, o socialismo prático, o do dia a dia, parece estar muito longe de ser uma etapa de preparação para a chegada do comunismo. Basta pensar na Espanha e se, de fato, além de gostos pessoais, o PSOE é um partido cujo objetivo é a preparação para a chegada de um estágio comunista superior. Não parece ser o caso. E não é por causa dos anos no poder, mais de um quarto de século desde a chegada às urnas. Não, obviamente não: a socialdemocracia europeia moderna não parece ser um estágio e, em si mesma, possui muitos elementos que a diferenciam não apenas do comunismo, mas também do próprio socialismo.

O AUMENTO DA DESIGUALDADE, CHAVE NUM POSSÍVEL RESSURGIMENTO

É amplamente aceite que quanto maior a desigualdade, maior é a polarização e mais fácil se torna a propagação das ideias necessárias para transformar o mundo, seguindo a teoria inicial do sonho, numa sociedade mundial dirigida por cientistas e economistas que organizem uma federação de comunidades com governo próprio, onde o trabalho seja uma atividade voluntária e os produtos se distribuam de acordo com as necessidades individuais. Por outras palavras, um mundo mais justo e melhor para todos.

No entanto, o principal receptor atual da crescente desigualdade nas sociedades capitalistas, especialmente no ocidente, não se encontra na extrema esquerda da moderação, mas nas antípodas. A extrema-direita, como se evidenciou recentemente em França - e como se pode observar no Parlamento Europeu -, está a capitalizar cada vez mais o voto do desencanto. Os pobres parecem já não sonhar com a redistribuição da riqueza, mas sim em acumulá-la. Mas, sem dúvida, isso pode mudar, especialmente nessa maioria planetária não alinhada pela qual Estados Unidos e China competirão — se já não estiverem a competir -, e que constitui muito mais do mundo do que muitos pensam que existe.

O CAPITALISMO, UM SISTEMA FALHADO?

Isso leva-nos a uma questão intrinsecamente relacionada ao capitalismo: é um sistema falhado? As crescentes diferenças na própria Europa, entre o norte e o sul e o leste e oeste, assim como a situação na América Latina, não são muito encorajadoras. É evidente que Cuba e Venezuela, dois experimentos diferentes de socialismo, não se destacam no panorama latino-americano, mas é que seu entorno, que deveria ser um paraíso capitalista, não oferece uma imagem melhor. Alguém poderia argumentar que Haiti está em melhores condições que Cuba? E não é um caso isolado; na América Latina, até mesmo o milagre chileno já não o é tanto, em grande parte devido à distribuição desigual da riqueza - o que nos remete à contradição original do capitalismo. No entanto, o quintal norte-americano constitui a região mais violenta e desigual do mundo, o que, parafraseando Karl Marx, deve-se ao fato de o capitalismo "produzir seus próprios coveiros". Coveiros de uma região que, por isso, constitui um excelente campo de testes para a nova ordem internacional, na qual, aliás, a China se mostra cada vez mais poderosa.

Aqui, na China, sem dúvida alguma, está uma das chaves para um possível desenvolvimento mundial do comunismo, ou, melhor dizendo, de um socialismo "made in China", porque o socialismo chinês é uma versão um tanto capitalista do que se supõe ser o socialismo.

E, NO ENTANTO, A HISTÓRIA...

A história - que poderão ler nesta edição - passa, antes de tudo, pela União Soviética, desde Estaline até Gorbachev e de Khrushchov até Brezhnev. Mas seria injusto, incorreto e impreciso ficar apenas pela experiência soviética, apesar da abundância de relatos académicos, literários e cinematográficos que o sugerem. Houve múltiplos ensaios socialistas para além da União Soviética e da Europa Oriental -Albânia, Alemanha Oriental, Bulgária, Checoslováquia, Hungria, Polónia, Roménia ou o caso especial da Jugoslávia.

Naturalmente, a China, à qual já nos referimos. Um país com um potencial enorme que, desde o seu nascimento, durante a Guerra Fria, se tornou rapidamente um concorrente da Rússia e, por isso, um jogador geopolítico ambíguo. Uma ambiguidade que pode ter sido crucial para a sua sobrevivência e também para o seu sucesso. Uma ambiguidade manifestada também na lógica interna. Além disso, Mongólia, Laos, Camboja, Coreia do Norte, Nepal, Afeganistão e, sobretudo, Vietname, constituem exemplos asiáticos do desenvolvimento de modelos socialistas associados à descolonização ou às derivações adotadas por estados não apenas imaturos, mas até famintos - devido ao intenso saque a que foram sujeitos.

Em África, também ocorreram diversos ensaios, desde a Somália até à Etiópia, passando pelo Congo, Iémen do Sul ou Angola. Este último país, independente graças à ajuda militar de Cuba - Operação Carlota, 1975, após a Revolução dos Cravos -, é hoje o segundo maior produtor de petróleo da África Subsaariana. Até hoje, Angola mantém excelentes relações com o regime castrista. Um regime, o cubano, que, de acordo com as palavras do próprio Fidel Castro, não tinha muitas intenções comunistas -"O povo de Cuba sabe que o governo revolucionário não é comunista"-. Às vezes, a necessidade geopolítica obriga.

Por último, é importante destacar ensaios socialistas não muito conhecidos, como os casos da Índia —estados de Bengala Ocidental, Tripura e Kerala -, Alemanha - Saxónia, Bremen e Baviera -, Irlanda -Limerick -, França - Alsácia -, Pérsia ou Irão.

... AINDA NÃO ESTÁ ESCRITA

Porque o futuro é imprevisível até mesmo para os mais ilustrados e eruditos. Marx e Engels, por exemplo, indicaram que "o modo capitalista de produção, ao transformar cada vez mais a imensa maioria dos indivíduos de cada país em proletários, cria ele próprio a força que, para se libertar da exploração, está obrigada a fazer a revolução". O que não parece ter sido cumprido exatamente. Outro exemplo é Vladimir Lenin que, como muitos outros revolucionários, estava longe de antecipar a queda dos Romanov, tendo esta acontecido fora da Rússia e obrigando-o a realizar uma verdadeira odisseia para regressar a tempo.

E é que sabemos o que aconteceu, mesmo que se discuta sobre isso, mas é impossível prever o futuro, especialmente se os Estados continuarem a servir, como quando Karl Marx e Friedrich Engels começaram a teorizar sobre o comunismo, aqueles que detêm o poder económico, os sistemas judiciais continuarem a beneficiar as elites e a desigualdade não parar de aumentar. Poderíamos finalmente alcançar o sonho... ou acordar abruptamente novamente.

"Comunismo, auge, caída y pervivencias" | revista Muy Historia | 22 de Junho de 2022

domingo, 21 de janeiro de 2024

Sítios Não Instagramáveis

A partir de agora só quero sítios não instagramáveis. Daqueles sítios em que, ao redor de centenas de metros, não veja um único ser humano. Sítios como o desta fotografia. 


 

sábado, 20 de janeiro de 2024

O Meu Amor, Desmesurado - O Teu Amor, Insuficiente

 


Monster | Meg Meyers | 2012

Descobre as Diferenças

 Se há algo que eu verdadeiramente admiro na política é a coerência e a verticalidade, e dias depois dar o dito pelo não dito e fazer o oposto do que disse anteriormente.   

Também acho muito irónico que se leia por aí, na beira da estrada, nos cartazes do partido ilegal do Chunga, que "Portugal precisa de uma limpeza". Deve ser por isso que o sacristão-mor do partido está a ir buscar novos candidatos a deputados aos outros partidos todos! 



quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

O Desejo é Aquilo Que nos Dá Forças



"O desejo é a essência do homem", escreveu o filósofo do século XVII Baruch Spinoza. Pela sua natureza infinita, é talvez o que melhor nos caracteriza, mas, acima de tudo, é o que move as nossas vidas. Que valor teria uma vida sem desejos? A variedade e intensidade disso é o que nos dá o impulso para agir e o sentimento de estar plenamente vivos. A ausência de desejo - da qual a depressão é um sintoma moderno - aponta para o colapso da nossa força vital. Ao mesmo tempo, o desejo pode levar-nos à paixão destrutiva ou ilusória, à insatisfação permanente, ao ódio ou à frustração causados pela inveja e pela ganância, ou a todo o tipo de vícios que nos privam da nossa liberdade interior. (...) O que distingue o desejo da necessidade? Qual é a natureza do desejo? Como saber se um desejo é bom ou não? Como acolher os nossos desejos mais pessoais e deixar de imitar os dos outros? Como podemos escapar à insatisfação para expressar os desejos de maneira adequada e experimentar uma alegria profunda? (...)

Esgotados por três anos de pandemia, angustiados pelas consequências do desajuste climático, pela guerra na Ucrânia ou pela perda de poder de compra, desiludidos com a política e céticos em relação a todas as instituições, muitos dos nossos contemporâneos sentem-se frágeis e afetados do ponto de vista moral e psicológico. O resultado é um declínio do que o filósofo Henri Bergson chamava de "élan vital" e uma diminuição da nossa força desejante que pode afetar todos os aspectos da vida: profissional, amoroso, sexual, intelectual, etc. Sentimo-nos menos vivos, desfrutamos menos intensamente da vida, frequentemente a tristeza prevalece sobre a alegria. Isso leva algumas pessoas a questionarem-se e a tentarem reorientar as suas vidas para valores diferentes do consumismo e do reconhecimento social, a dar mais sentido, a viver com mais sobriedade. Assim, muitos jovens procuram contornar o modelo dominante, por exemplo, no campo profissional, mas também no sexual, que não corresponde aos seus desejos mais profundos, mais orientados para o ser e a qualidade de vida do que para o ter e o desempenho.

No entanto, de maneira paradoxal - e isso é válido para todas as crises vitais e não é algo novo - esse esgotamento do "élan vital" e do desejo traduz-se também numa exacerbação dos desejos mais materiais, poderíamos dizer, dos caprichos, que surgem como compensações dessa espécie de depressão: consumimos para nos fornecer minidoses de prazer. Este consumismo pode assumir diversas formas: compras compulsivas, vício em sexo, jogos, redes sociais, necessidade exacerbada de reconhecimento social, entre outros. Os nossos poderosos desejos e grandes alegrias transformam-se assim em pequenos caprichos e prazeres fúteis. E, às vezes, tornamo-nos escravos desses desejos e prazeres, sem que eles satisfaçam verdadeiramente nossa sede mais profunda. Estou convicto de que só encontraremos nossa liberdade e nossa verdadeira alegria cultivando o "élan vital", despertando nossos desejos mais pessoais e orientando-os para objetos que nos façam crescer, que deem sentido à nossa vida, que nos permitam realizar-nos plenamente segundo nossa singularidade.

Os filósofos da Antiguidade concordam, por um lado, em definir o desejo como "a aspiração a um bem" (ou seja, algo que percebemos como bom para nós). Nas palavras de Cícero, "o desejo vai, fascinado e inflamado, em direção ao que parece ser um bem". Por outro lado, identificam-no com o "apetite" (no sentido mais amplo da palavra), o movimento que consiste num esforço para se aproximar de um bem que nos atrai. A aversão, por outro lado, refere-se ao movimento que nos afasta do que percebemos como mau. Embora por vezes pareça confundir-se com o instinto ou a necessidade, o desejo humano compreende ao mesmo tempo uma parte imaginária e uma parte consciente que o tornam muito mais complexo. Não é o mesmo sentir a necessidade de nos alimentarmos (a sensação de fome) do que o desejo de comer um prato específico, que nos desperte memórias felizes, num ambiente que gostamos e com bons amigos. Isso é observado também no desejo sexual, que não pode ser reduzido ao instinto de sobrevivência da espécie ou à simples satisfação de uma necessidade fisiológica. A psicanálise demonstrou de forma cabal que, antes de fixar-se num objeto, o desejo está envolto numa dinâmica complexa e criativa (emoções, fantasias, projeções, transferências...). Por isso, Gaston Bachelard escreveu que "o homem é uma criação do desejo, não da necessidade".

A palavra "desejo" deriva do verbo latino "desiderare", formado a partir de "sidus, sideris", que significa astro ou constelação. Existem duas interpretações radicalmente opostas desta etimologia. Pode-se interpretar "desiderare" como "deixar de contemplar as estrelas", o que remete à ideia de uma perda, um "desnorte". O marinheiro que deixa de olhar as estrelas pode perder-se no mar. O ser humano que deixa de contemplar as coisas celestiais pode perder-se perante a sedução das coisas terrenas. Inversamente, podemos entender "desiderare" como aquilo que nos liberta de nos perdermos em considerações ("siderare"), uma vez que os antigos romanos costumavam entender a "sideratio" como o facto de sofrer a ação funesta dos astros. Conservamos esse sentido distante quando dizemos que ficamos "alucinados" após uma comoção ou adversidade: ficamos imóveis, incapazes de reagir, privados da capacidade de agir livremente. O que nos porá novamente em movimento é "de-sidere", o desejo, entendido como motor da ação, como a potência vital que nos liberta de nos perdermos a nós mesmos, seja qual for a causa.

O fascinante é que este duplo sentido reaparece ao longo da tradição filosófica ocidental. Por um lado, o desejo é percebido como uma falta, sublinhando essencialmente o seu caráter negativo. Por outro lado, é percebido como um poder e como o principal motor das nossas vidas. A maioria dos filósofos da Antiguidade viu o desejo como uma falta e considerou-o não tanto como uma questão, mas como um problema: a busca por uma satisfação que, uma vez saciada, renasce imediatamente sob a mesma forma ou sob a forma de outro objeto, condenando-nos assim a estar insatisfeitos ao longo da vida. Foi Platão, o mais conhecido entre os discípulos de Sócrates, quem melhor teorizou esta dimensão insaciável do desejo humano na forma de falta: "O que não temos, o que não somos, o que sentimos falta: eis os objetos do desejo e do amor". Aristóteles relativiza esta identificação do desejo com a falta e vê nele a nossa única força motriz: "Não há mais do que um princípio motor: a faculdade desiderativa". No século XVII, Spinoza retoma esta ideia e coloca-a no centro de toda a sua filosofia ética: o desejo é a potência vital que coloca em movimento todas as nossas energias e, bem dirigido pela razão, é o único que pode levar-nos à alegria e à felicidade suprema (a beatitude).

Desejo-falta que conduz à insatisfação e à desgraça e ao qual convém impor limites ou eliminar... ou desejo-potência que conduz à plenitude e à felicidade e que convém cultivar: quem tem razão? Se nos observarmos atentamente a nós mesmos e à natureza humana, ambas as teorias parecem pertinentes e não se excluem mutuamente.

Nas nossas vidas, podemos experienciar o desejo-falta e o desejo-potência. Quando caímos na armadilha da insatisfação constante, da comparação social, da inveja, da luxúria, da paixão amorosa, estamos a concordar com Platão. Mas quando nos deixamos levar pela alegria de criar, crescer, avançar, amar, desenvolver os nossos talentos, realizar-nos através do que fazemos, conhecer, estamos a concordar com Spinoza. E as coisas são até um pouco mais complexas, pois o desejo-falta pode também ser o motor de uma busca espiritual que conduza à contemplação da beleza divina, enquanto o desejo-potência nos pode levar a excessos e a uma forma de hibris denunciada pelos gregos.

Só encontraremos a liberdade e a verdadeira alegria cultivando o "élan vital", despertando os nossos desejos mais pessoais, e direcionando-os para metas que alimentem o nosso crescimento interior e coletivo. A reflexão sobre estas dualidades do desejo enriquece a nossa compreensão da natureza humana e convida-nos a procurar um equilíbrio que nos permita viver de forma plena e consciente.

"El deseo es lo que nos da fuerzas" | Frédéric Lenoir | (excerto do livro "Filosofia do Desejo) | El País

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

O PSD Morreu em 1980 e Foi Enterrado Junto com Sá Carneiro

 
Tinha eu quatro anos e meio e, como é óbvio, não percebi muito bem o que estava a acontecer na altura, mas ainda guardo essa memória viva do acontecimento da morte de Sá Carneiro em 1980 e do choque geral dos adultos que me rodeavam. E não se falava de outra coisa na televisão, ainda a preto e branco. 

E, talvez estivesse no seu direito, e até porque já os egípcios eram enterrados com os próprios gatos, e, ao ser enterrado, Sá Carneiro, ter-se-à feito acompanhar na cova do partido que fundou: o Partido Social Democrata.

Mais de quarenta anos volvidos, alguns continuam a levantar a voz para falar de Sá Carneiro mas, infelizmente, duvido que a maioria conheça sequer a história do próprio partido onde estão filiados. 

Segundo palavras do próprio Sá Carneiro, o "PSD é um partido de esquerda sem qualquer afinidade com as forças de direita". No seu plano ideológico e político, dizia-se inspirado no socialismo humanista, inerente aos partidos sociais-democratas da Europa ocidental, aceitando os ideais do socialismo e procurando realizá-lo através de uma sociedade livre e democrática. Era pois seu objetivo declarado a luta pela democracia e pelo socialismo, com um predomínio do interesse público sobre o privado, pugnando-se pelo controlo através das autarquias, sindicatos, cooperativas, co-gestão e fiscalização por parte dos trabalhadores, empresas de economia mista e nacionalizações. 

Podemos considerar que no papel, o PS de Mário Soares e o PSD de Sá Carneiro, eram dois partidos de esquerda, ambos socialistas. A este respeito podemos lembrar factos interessantes: o PSD teve um jornal intitulado "Pelo Socialismo", colocava nos próprios cartazes "pelo socialismo" e Sá Carneiro quis até que o partido integrasse a Internacional Socialista. 

Infelizmente foram meras intenções. Lembrar que, por exemplo, Natália Correia, a escritora, foi deputada do PSD porque admirava Sá Carneiro, mas saiu em litígio com o partido porque o considerou extremamente conservador. Natália Correia votou, por exemplo, ao lado do PCP na questão do aborto e contra o próprio partido onde estava (mais tarde viria a ser deputada do PRD porque admirava Ramalho Eanes).

Sá Carneiro morreu em 1980 e com ele morreu o PSD socialista, de esquerda e inspirado na social democracia alemã. Que diria hoje Sá Carneiro se visse os cartazes que por aí andam, do próprio partido que fundou, e que dizem "o socialismo empobrece"? Certamente acrescentaria à frente: os ricos. "O socialismo empobrece os ricos".

E é neste o saco de gatos que o PSD atual se tornou, confundindo-se com a própria extrema-direita, e lembrar também que o líder dessa mesma extrema-direita esteve 17 anos no PSD e foi lançado por Passos Coelho. No entanto diz-se "anti-sistema", apesar de andar no "sistema" todos estes anos e ser financiado pelos grandes grupos económicos. 

A social democracia que Sá Carneiro dizia defender  podemos encontrá-la hoje, por exemplo, no Bloco de Esquerda, considerada, agora, por alguns ignorantes, de "extrema-esquerda". E, ou são ignorantes e não sabem que os partidos de extrema-esquerda já não existem em Portugal desde o PREC, ou então sabem que não existe mas continuam a propagandear "extrema-esquerda" ou "radical" (que significa ir à raiz) por pura má fé e para enganar as pessoas. A Isabel Moreira, que nem é do Bloco de Esquerda nem do Partido Comunista Português, já o explicou muito bem:

"Talvez seja notícia para alguns, mas não há extrema-esquerda em Portugal. Já houve , o PRP ou o Projeto Global ( que incluía as FP - 25). Felizmente o PCP resistiu a quem dele se afastou para tais derivas e presta até hoje um papel fundamental na democracia .

"Imaginar que o BE, por seu turno, é uma ameaça aos nossos valores constitucionais basilares é delírio . Talvez por isso parar com simetrias absurdas e perceber que PCP e BE não foram - como se viu na geringonça - nenhuma ameaça para os direitos de quem quer se seja".

Mas eu escrevi que Sá Carneiro "dizia defender" porque só poderíamos saber se, de facto, iria defender a mesma ideologia ou ou metê-la na gaveta, tal como, por exemplo, Mário Soares meteu na gaveta o socialismo, retirando o partido da esquerda e arrastando-o para o centro. E a minha convicção, é que o PSD, pejado de reacionários e conservadores (que mandaram embora do país Saramago, o único Nobel que tivemos - porque o outro que partia cabeças não conta!) a minha convicção é que o PSD se iria naturalmente mover para a direita.

Para se saber um mínimo de política é preciso conhecer-se a história dos partidos. Saber de onde vieram e onde estão hoje. Um partido não é um clube de futebol. Devemos votar naqueles que defendem os nossos interesses, naqueles que consideramos mais capazes e não, cegamente, numa carinha laroca ou numa voz colocada, tal como os portugueses votaram, por exemplo em 2011, em Passos Coelho. No momento mais difícil da nossa recente democracia, foram a correr a votar naquele que se tornou o primeiro-ministro mais impreparado e mentiroso que há memória.  

E agora para finalizar tenho uma pergunta a todos aquele que votam no PSD. Até podem ser militantes. Por acaso sabem o que significam aquelas três setas no símbolo do partido? Pequena ajuda: a resposta está numa das imagens acima. 


domingo, 7 de janeiro de 2024

Amar o Trabalho é Abraçar a Nossa Escravidão - Mais Glamour e Menos Salário

Tema extremamente interessante sobre as novas formas como as empresas, continuando a explorar e pagar mal aos trabalhadores, os seduzem a amar onde estão e o que fazem. Artigo de Juan Boix (escritor e professor de Filosofía e da Cultura na Universidade Complutense de Madrid) publicado no El País a 7 de Janeiro de 2023



Amar o trabalho é abraçar nossa submissão. As empresas comprovaram que cuidar do vínculo com o trabalhador aumentava a produtividade. É por isso que eles tentam nos seduzir de modo que a esfera do trabalho se confunde com a vida

Conheci a N. numa aplicação de encontros. Passeamos por Alicante à procura de uma pizzaria e conversamos sobre as nossas ocupações. N. estuda Belas Artes e trabalha num outlet de roupa desportiva. Ela conta-me que o seu trabalho é um pouco aborrecido, mas que coloca música nos auscultadores e as horas passam. E depois continua com desconcerto: as suas colegas estão encantadas com a empresa. Tem valores verdes e feministas, oferece-lhes um desconto em toda a loja e recompensa-as com um bónus se trabalharem a um bom ritmo. Um cocktail de ética verde, competição e chantagem consumista torna encantador um trabalho mal remunerado que consiste em empilhar caixas de sapatilhas para fazer exercício e ficar em forma para empilhar mais caixas de sapatilhas. Não imaginava encontrar, numa única tarde, semelhante desfile de sedução.

Paul Lafargue escreveu em "O Direito à Preguiça" que todas as misérias das sociedades capitalistas tinham uma única causa, e essa causa é o amor ao trabalho. Lafargue não se refere à ganância ou à inveja, mas à paixão desenfreada que os próprios trabalhadores sentem pelas suas ocupações. Assim, situava a fonte das nossas fadigas na esfera da reprodução social, uma mudança de perspetiva que nos permite questionar o trabalho a partir do afeto e da sua economia libidinal: como aprendemos a amá-lo? Quem o tornou tão atrativo, tão estranhamente edificante? Por que razão os nossos trabalhos nos deslumbram com uma retórica de vida boa quando só impedem isso, saturando com as suas exigências todos os tempos, todos os afetos, todas as capacidades que temos?

No seu livro "Intimidades Congeladas", a socióloga Eva Illouz fala-nos das experiências Hawthorne, desenvolvidos por Elton Mayo na Chicago dos anos vinte. Os resultados revelaram que a produtividade não aumentava tanto com uma melhoria das condições materiais do local de trabalho, mas prestando atenção aos operários. Mostravam que o cuidado de um vínculo afetivo entre trabalhador e empresa era uma chave para o sucesso e uma exploração tão sofisticada quanto desconhecida. A partir desse momento, avalia Illouz, o estilo empresarial e a gestão começaram a revolucionar-se, e as empresas dedicaram-se a investir nas obscuras artes da sedução: encheram-se de psicólogos e coaches ontológicos, transformaram o seu ambiente num espaço sinistramente amigável, empunharam as bandeiras da ajuda humanitária. O que Mayo descobriu nos anos vinte, o filme "Monstros SA" ensinava-nos em 2001: as paixões alegres geram muito mais energia do que o medo.

Não importa que trabalho tenhas, qualificado ou não, manual ou intelectual, sedentário ou nómade. Não importa se empilhas caixas ou ensinas álgebra, o trabalho tentará sempre seduzir-te, confundindo-se com a tua vida, com a sua crença, com os seus valores, com os seus anseios. A chave da servidão já não está em governar o corpo com várias disciplinas, como nos tempos do capitalismo industrial, mas em governar as almas, ou seja, governar o desejo. Trata-se de envolver completamente o sujeito no comportamento que deve seguir, como explicam os pensadores Christian Laval e Pierre Dardot, de relativizar a rigorosa fronteira entre lazer e negócio em favor do capital. O amor ao trabalho denunciado por Lafargue, em suma, é uma versão contemporânea do que La Boétie chamou de servidão voluntária: amar o trabalho é abraçar a nossa submissão.

Se atentarmos para o que o sociólogo Renyi Hong explica em "Passionate Work", essa gíria do entusiasmo conta com dois traços essenciais. O primeiro é uma armadilha ideológica: devemos ser felizes e viver bem apesar das dificuldades económicas. O segundo passa por reconhecer que a paixão pelo trabalho não é apenas um sentimento, mas uma estrutura afetiva: as formas contemporâneas do trabalho tornaram-se ao mesmo tempo mais desejáveis e mais exploradoras, de modo que nos pedem para seguir os nossos sonhos precisamente para combater os problemas económicos. A paixão pelo trabalho é mobilizada como um escudo, um meio de atenuar o esgotamento psíquico da incerteza económica e da escassez de rendimento. Assim, o trabalho deixa de ser um espaço de exercício da virtude ("o trabalho dignifica") para ser interpretado em termos de compensação psicológica ("não reclames, trabalhas no que gosta"): oferece-nos mais glamour e menos salário, disfarça a precariedade com as vestimentas da aventura, chama de flexibilidade à disponibilidade absoluta. A realização pessoal prometida é uma exigência velada de não parar de trabalhar, de nos tornarmos emocionalmente dependentes da nossa ocupação. Estamos diante de uma nova cultura das emoções onde estar motivado é sinónimo tanto de alto desempenho quanto da ausência de qualquer questionamento crítico.

O que quero dizer, explica-me N. com uma fatia de pizza na mão, é que às vezes temos que nos proteger do que desejamos, como clamava a artista Jenny Holzer nos seus letreiros luminosos. Ou, pelo menos, temos de estar cientes de como desejamos, do que damos quando amamos: já que temos de vender a nossa alma para pagar o aluguer e os carboidratos, vendamo-la um pouco caro. Se os ensinamentos do nosso coração sobre a vocação e suas fanfarrices nos levaram a estar submetidos em nome da liberdade e da paixão, a dissidência consiste em perguntarmos se podemos amar de forma diferente, se podemos transformar a maneira como desejamos para boicotar assim a cultura das emoções profissionais.

E o certo, felizmente, é que não estamos sozinhos neste aprendizagem do desamor. Onde parecia ser necessário trabalhar 10 ou até 12 horas, a greve de La Canadiense mostrou-nos, em 1919, em Barcelona, que bastava trabalhar oito, e hoje entendemos que é suficiente com 32 horas semanais. Onde parecia que as mulheres tinham que se dedicar ao lar e que o seu trabalho não era trabalho, mas o tributo devido ao seu amor, as greves feministas que começaram na Argentina em 2016 criticaram a divisão sexual do trabalho e deram visibilidade àquela maioria silenciosa que se desdobra em casa e não recebe salário.

Na segunda metade de 2021, cerca de vinte e cinco milhões de americanos deixaram os seus empregos: queriam uma vida com menos reputação e mais saúde mental, disse-se. O fenómeno foi apelidado de "A Grande Renúncia", e embora tenha durado muito pouco, aspirava a inaugurar o que o The New York Times chamou de "a era da anti-ambição". As greves na França na última primavera contra a reforma das pensões levantaram-se para reivindicar que a vida está noutro lugar, para além da meritocracia. Todas estas são histórias de desamor, mas de desamor bom: ensinam-nos a desapaixonar-nos do trabalho. Lembram-nos que a nossa relação tóxica com o nosso emprego não é incondicional, incentivam-nos a viver e amar de outra maneira. Porque não é amor. O que sentimos chama-se obsessão.

Apenas quando o proletariado se desapaixonar e disser "eu não quero", todas as misérias capitalistas se dissiparão, promete Lafargue. Apenas desapaixonando-nos do trabalho poderemos direcionar nosso desejo para inventar uma vida boa. Não voltei a ver N., creio que agora vive em Bilbau. A pizzaria fechou na semana passada por falta de pessoal.

"Amar el trabajo es abrazar nuestro sometimiento" |  Juan Evaristo Valls Boix (escritor e professor de Filosofía e da Cultura na Universidad Complutense de Madrid) | El País 7 de Janeiro de 2023

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Adeus ao Mito do Amor Romântico - Há Outras Formas de Amar

Há duas ou três semanas apanhei um casal na Prova Oral da Antena 3 a falar de poliamor. E ao que parece até têm um espetáculo a falar da coisa. Eu tenho todo o respeito por outras conceções e formas de amar e fiquei a ouvir porque o tema das relações e do amor sempre me interessou mas a forma como ouvi ali retratado por aquele casal é uma enorme complicação! Eu não quereria aquilo, assim, daquela forma, para mim. Uma pessoa pensa em poliamor e pensa em amor livre, não naquela coisa tão complexa e cheia de regras e nomes complexos. 

E, por coincidência, dias depois mostraram-me a sátira que a Joana Marques fez e eu acabei a concordar com a maioria das críticas. Aquilo que aquele casal descreveu não são relações humanas mas sim uma tese de doutoramento, ainda que envolvido por verdades. 

E a verdade é que, por muito que custe a muita gente, não há relações monogâmicas. Eu pelo menos não conheço nenhum casal monogâmico. Vocês conhecem? Monogamia é um parceiro para a vida. Não é ser fiel numa relação e passado um tempo ter outra relação fiel. Depois, a monogamia é uma construção cultural e social, e não sou eu que digo, diz quem sabe do assunto como o Júlio Machado Vaz ou o Daniel Sampaio. Mesmo na natureza, quase não há espécies monogâmicas. 

E eu não sei como deveria ser para funcionar melhor, e as pessoas que vivam como acharem que é melhor para si. Mas, uma coisa é certa, setenta divórcios por cada cem casamentos é um ato de fé. Algo está muito errado. Ou é a sociedade pós-moderna ou é o tipo de relações que as pessoas vivem nesta sociedade, cada vez mais acelerada e sem tempo. Relações fugazes, pessoas egoístas e narcisistas, cada vez mais menos importadas com o outro e só interessadas o seu umbigo. Pessoas que cada vez menos sabem aquilo o que querem e andam no mundo por ver andar os outros.

Mas, para repensar o tema "outras formas de amar", aqui deixo um artigo publicado no El País a 16 de Abril de 2023:




"Há outras formas de amar. A busca pelo sonho romântico pode ser contraproducente e tornar as pessoas infelizes. Precisamos de uma nova teoria do amor que considere, entre outros modelos, o poliamor.

A história de amor romântico que todos aprendemos começa com um rapaz e uma rapariga. Conhecem-se, cortejam-se e apaixonam-se. Enfrentam contratempos e dificuldades que devem superar, mas, contra toda a lógica, acabam juntos "e viveram felizes para sempre".

Isso significa que a maior parte do relacionamento — a maior parte do amor — desenrola-se depois de terminar o conto. Como se supõe que o amor deve ser uma vez que atingimos esse "viveram felizes para sempre"? Devemos acordar todas as manhãs com o coração alegre, cantando canções da Disney para os pássaros e as criaturas da floresta?

Claro, sabemos que esse é um objetivo pouco realista para a nossa vida. Assim como sabemos que os padrões de beleza criados pelos publicitários e influenciadores são um objetivo pouco realista para o nosso corpo. Mas há um inconveniente: saber isso não nos impede de nos compararmos com essas referências pouco razoáveis. Continuamos a sentir-nos insuficientes quando vemos esses corpos "ideais" e percebemos a distância que os separa do nosso.

O mesmo acontece quando pensamos que a vida "ideal" é o "viveram felizes para sempre" no final de uma história de amor: a distância entre essa fantasia e a nossa realidade torna-se clara. Na vida real, podemos estar sozinhos, talvez por escolha própria ou talvez não. Ou, se tivermos um relacionamento, pode ser complicado ou turbulento. Ou, mesmo que tenhamos um relacionamento pacífico e estável, a nossa vida pode ter dificuldades e obstáculos de outro tipo, tornando esse "viveram felizes" tão realista quanto viver em Marte.

No entanto, poderíamos pensar: Não é bom ter um objetivo a que aspirar? Dessa forma, esforçamo-nos para alcançar um objetivo, embora na verdade seja inatingível, e esse esforço, sem dúvida, melhorará a nossa vida. Mas aqui está a questão: neste caso, não acredito que seja assim. Tentar tornar realidade a ideia romântica de um amor "viveram felizes para sempre" é um plano errado.

Porquê? O que há de errado em tentar ser feliz? Acaso "a busca da felicidade" não é um dos nossos direitos inalienáveis, tão crucial que é mencionado junto com "a vida" e "a liberdade" na Declaração de Independência dos Estados Unidos?

Como costuma dizer-se, é preciso ter em conta a fonte. A busca da felicidade faz parte da conceção americana de uma boa vida. Mas, em geral, até que ponto os Estados Unidos estão a melhorar a vida dos seus habitantes? Segundo o Centro de Controlo de Doenças de Atlanta, a esperança de vida nos Estados Unidos está a diminuir; e o censo de 2021 revelou que 11,6% — 37,9 milhões de pessoas — vivem na pobreza. De acordo com o relatório do índice de progresso social de 2022, "nos Estados Unidos, o progresso social permanece estagnado desde 2011 e está em declínio desde 2017". Existem múltiplos fatores que explicam essa situação lamentável, mas, de qualquer forma, o país não é propriamente um grande exemplo para "a busca da felicidade".

Os filósofos e outros teóricos têm vindo a afirmar há muito tempo que a busca da felicidade não te torna feliz. Pelo contrário, considera-se contraproducente. Isso é conhecido como o paradoxo da felicidade. O psiquiatra austríaco e sobrevivente do Holocausto Viktor Frankl escreveu em 1946 que "uma característica da cultura americana é que, uma e outra vez, somos instruídos a 'ser felizes'. Mas a felicidade não pode ser perseguida; deve acontecer." O filósofo inglês John Stuart Mill escreveu em 1873: "São apenas felizes... aqueles que têm a mente focada em algum objeto que não seja a sua própria felicidade: na felicidade dos outros, na melhoria da humanidade, até mesmo numa arte ou passatempo, que perseguem não como um meio, mas como um fim ideal em si mesmos. Assim, quando tentam alcançar outra coisa, encontram a felicidade no caminho."

Para pensadores como Mill e Frankl, a felicidade não é um objetivo, mas um efeito derivado de uma vida que tem significado para a pessoa que a vive.

E isso leva-me a suspeitar que devemos aplicar a mesma sabedoria quando pensamos em procurar o "viveram felizes para sempre" romântico como objetivo na vida. Talvez, em última instância, essa busca também seja contraproducente; e quando penso em quantas pessoas perseguem o sonho romântico apenas para acabarem infelizes, não posso deixar de sentir que há algo nisso.

Desde que Frankl escreveu nos anos 40 sobre "a ordem de ser feliz", tem havido uma tendência crescente, especialmente na cultura dominante americana, de "centrar-se no positivo" e enfrentar "apenas com boas vibrações" qualquer situação. O resultado pode ser que as pessoas que se queixam e outros considerados "negativos" sejam envergonhados ou ignorados. Isso é chamado de "positividade tóxica". Um elemento importante desta mensagem é que, se não somos felizes, é nossa culpa porque não nos fazemos felizes a nós mesmos. (Não são consideradas questões estruturais como o racismo, o colonialismo, a misoginia, o capacitismo ou a pobreza. Apenas o individual importa).

Neste contexto, o "viveram felizes" romântico tornou-se o modelo de uma vida amorosa bem-sucedida, e o correspondente "romantismo tóxico" diz-nos que, se não alcançamos esse estado ideal, é nossa culpa ou um fracasso pessoal.

Então, o que se pode fazer? Muitas coisas podem ser ditas a respeito, mas acredito que uma das decisões mais importantes que podemos tomar é deixar de nos obsessar com a felicidade — seja na vida ou no amor — como ideal ou como objetivo. Em vez disso, precisamos valorizar mais a enorme variedade de experiências emocionais humanas, incluindo as chamadas emoções "negativas", como tristeza e raiva. Todas as emoções desempenham um papel importante nas nossas vidas e, na minha opinião, todas podem fazer parte do amor.

Quando decidi intitular o meu novo livro "Amor Triste", foi porque me fascinou a suposição de que o amor sempre tem que ver com a felicidade. Quando perguntamos a um amigo se o relacionamento está indo bem, perguntamos se ele está "feliz com" o parceiro. Se estão "felizes juntos". Tendemos a assumir que estão em busca do "viveram felizes" romântico com essa pessoa. Em contraste, quando pensamos num amor triste, geralmente imaginamos algo devastador. Desde a cultura clássica, com histórias como "Cumbres Borrascosas" e "Romeu e Julieta", até as nossas listas de reprodução favoritas e catárticas para as separações, na nossa cultura, o amor triste é representado como uma situação de fracasso total: atroz, devastador e explosivo. Parece que só conhecemos duas histórias de amor: o conto de fadas e a tragédia.

Esses dois relatos tão polarizados deixam de lado o imenso espectro de experiências complicadas e cheias de nuances que compõem a nossa vida e os nossos amores na realidade. Por exemplo, quando lutamos com a escala de cinzas de uma depressão de longa duração, não estamos felizes, mas também não estamos melodramaticamente tristes. No entanto, podemos estar apaixonados. Devemos entender o amor como algo que abraça todas as nossas emoções, até as mais monótonas.

Uma vez que esquecemos a história do "viveram felizes para sempre" como o único modelo de uma boa vida, abre-se todo um leque de possibilidades sobre como viver uma vida cheia de amor. Novas histórias surgem como possíveis modelos amorosos: o poliamor, por exemplo, onde é aceitável ter mais de um parceiro romântico ao mesmo tempo, com o conhecimento e o consentimento de todos. A ideologia romântica dos contos de fadas diz-nos que esta é uma forma de amar de segunda categoria ou depravada. No entanto, a realidade é que, quando todos os envolvidos se sentem mais confortáveis e completos numa dinâmica de relacionamento não monogâmico, envergonhá-los ou estigmatizá-los por seguir o seu modelo de boa vida está fora de contexto e é injusto.

Se deixarmos para trás a ideia de "viveram felizes para sempre" e a conceção romântica do amor, com o que substituímos? Se dermos ouvidos a Frankl e Mill e pensarmos que a felicidade não é um objetivo a aspirar, mas algo que deve ocorrer, então também podemos considerar que a felicidade numa relação não é um ideal ou um objetivo pelo qual lutar, mas sim um possível efeito derivado de um amor que possui outras qualidades.

Quais seriam essas qualidades? Na sua obra, Frankl baseia-se nas suas experiências com outros prisioneiros num campo de concentração nazi para tentar compreender o que diferencia uma vida que vale a pena viver de outra que não vale. O que importa, diz ele, não é a felicidade, mas ter um sentido, um propósito. E em tempos mais recentes, aumentaram os dados empíricos que apoiam a afirmação de que a felicidade deriva de encontrar significado na nossa vida, muitas vezes (como também propuseram Frankl e Mill) através da conexão e colaboração social. Suponhamos, portanto, que o objetivo supremo de uma relação amorosa não é a felicidade, mas sim ter um significado. Em que consistiria esse amor carregado de significado?

Quando os filósofos analisam a ideia de uma boa vida, costumam falar de eudaimonia, uma antiga palavra grega usada por Aristóteles para expressar as suas ideias sobre o "florescimento". Não sou muito adepta das ideias de Aristóteles sobre a eudaimonia (entre outras coisas, ele afirmava que o florescimento consiste em ser racional e virtuoso, e que só as pessoas belas podem alcançá-lo completamente). Em vez disso, prefiro focar-me nas raízes etimológicas ainda mais antigas de eudaimonia. É uma palavra construída a partir do prefixo eu-, que significa bom (como em euforia), e daimon, que significa espírito ou entidade sobrenatural. Portanto, uma vida eudaimónica é uma vida com bom espírito.

Não é necessário interpretar literalmente esse daimon ou espírito como uma entidade sobrenatural. Podem ser simplesmente outras pessoas: não é nada de novo que as relações prosperem quando contam com o apoio de amigos e familiares, e se ressintam quando estão sujeitas ao estigma social. Mas os daimon que influenciam as nossas vidas também podem ser mais abstratos: a "atmosfera" de uma reunião, um zeitgeist cultural ou até mesmo grandes conceitos amorfos como o capitalismo ou o patriarcado.

O que tento fazer no meu trabalho é desenvolver uma teoria do amor eudaimónico, um amor "com bom espírito", que leve em consideração as profundas e dramáticas repercussões da nossa capacidade de nos conectar. A nossa vida amorosa não se desenrola no vazio ou "em privado": mesmo quando nos isolamos na nossa vida convencional ou fechamos a porta do quarto, levamos connosco a nossa história social e a nossa bagagem cultural.

Amor eudaimónico significa amor colaborativo, dentro e fora da relação. É um tipo de amor cujo objetivo não é a felicidade individual das pessoas naquela relação, mas os projetos criativos e as relações sociais que dão sentido à nossa vida, as coisas que fazem com que valha a pena viver, segundo pensadores como Frankl. É o amor que conta com o apoio de amigos, família, comunidade e sociedade (por isso é tão importante deixarmos de estigmatizar todas as formas de amor que se afastam do que consideramos "normal"). O amor eudaimónico não é definido por nenhuma emoção em particular, mas está aberto a toda a gama de experiências emocionais, positivas e negativas. Não precisa ser um amor romântico, embora possa ser: o amor a um amigo ou o amor à família também podem ser amor eudaimónico.

E não é necessariamente feliz. Mas talvez seja a nossa melhor oportunidade de sermos felizes.

Sempre que não o procuremos por esse motivo.

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Carrie Jenkins é professora de Filosofia na Universidade de British Columbia, Canadá. O seu livro "Amor Triste. As relações amorosas e a busca de sentido"

El País | 16 de Abril | 2023

Lábios Grossos, Cérebros Pequenos

Getty Images

Talvez não seja preciso dizer que gosto muito de ler o El País porque, quem por aqui passar, deve-se ter apercebido que, cada vez mais, vou partilhando textos, crónicas, opiniões vindos quer do El País ou do La Vanguardia, dois dos vários jornais que vou lendo quase todos os dias. Traduzo e partilho aqui porque desta forma, se algum dia mais tarde quiser reler eles estão aqui para mim. Caso contrário, provavelmente nunca mais saberei onde os encontrar. E, quem sabe, talvez possa ser útil a alguém.  

E é muitas vezes no El País que fico a par do que se passa com os mais jovens, novas modas ou "tendências" como agora se diz. 

Mas neste caso não é uma surpresa. A minha própria colega de 24 anos, de quem eu gosto muito, há não muito tempo disse-me que já tinha pensado em aumentar os lábios. Ao que terá ouvido uma resposta de escárnio e muita crítica da minha parte!

Mas mais recentemente mostrou-me uma foto de uma amiga, que tem vinte anos, depois de umas injeções de - e deixa-me lá ver como é que se escreve - depois de umas injeções de ácido hialurónico e devo confessar que aquilo não é propriamente bonito de se ver. A beleza custa não é? Ainda que agora cada injeção esteja mais barata, até 500€.

E isto vem, precisamente, na mesma linha do artigo do El País que eu tinha lido. A média de idades das mulheres que passaram a usar este tipo de procedimento (a palavra tratamento parece-me abusivo) passou dos 35 anos para os 20 anos e há mesmo menores a querer aumentar os lábios. Tudo, ao que parece, fomentado pelas influenciadoras e filtros das redes sociais. 

A par da uniformização de pensamento temos a uniformização física. Todos pensam exatamente o mesmo ditado pela mesma propaganda que paga. Todos falam exatamente da mesma maneira abrasileirada e todos parecem o mesmo. O futuro é top, mano! Tem a mesma pele de golfinho, as mesmas mamas e cus grandes e os lábios grossos preenchidos de imbecilidade. E cérebros muito pequeninos. 



Da Série: "O Problema da Habitação em Portugal é a Falta de Casas"!

Apesar da população portuguesa ser cada vez menos, a cassete neoliberal continua a repetir, dia após dia, que "o problema da habitação em Portugal é a falta de casas"! 
Não, é senso comum, se a população é cada vez menor, deveria haver cada vez mais casas disponíveis!

Na cidade do Porto repete-se que "o Centro Comercial STOP está em risco iminente", por isso as quinhentas bandas que ensaiam na maior sala de ensaios da Europa têm que sair. 

O edifício até poderá precisar de manutenção, mas,  a "falta de casas" e o "risco iminente do STOP" é este:

"Na Praça D. João I, no Porto, o chamado Edifício Rialto, que conta com gabinetes clínicos, entre outros, vai sofrer uma transformação e uma parte será destinada ao turismo. Segundo o “Jornal de Negócios”, na torre de nove andares, cuja construção data dos anos 40, surgirão 35 apartamentos turísticos.

Jornal de Notícias 31 de Dezembro 2023


segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Conversas Improváveis (78) - Pensar à Empresário

Ultimamente e, fruto do mero acaso, de duas pessoas que se encontram para uma venda informal, tenho-me vindo a encontrar com vários empresários. E é curioso também analisar que, a maioria dos meus clientes, por certo é de um nível socio-económico elevado, e não é porque o que quer que eu tenha para vender seja caro, mas sim porque quem tem dinheiro quer fazer a melhor compra possível e compara sempre preços. 

Desta vez tínhamos estado à conversa, por telemóvel, um bom bocado de tempo. Retive aquele pensamento de que até no jardim vivemos de modas: primeiro foram as orquídeas, as estrelícias, depois as plantas aromáticas, as proteas, e agora vivemos a moda dos catos e das suculentas. E se o vizinho tem, eu também quero ter.  

Ele tinha pedido a um funcionário para vir com ele buscar um cato bastante grande que eu tinha à venda porque o carro comercial que ele tinha era maior para acondicionar a planta. Até que, de repente, comenta-se sobre o meu carro, um chaço de 1995. O homem que, logicamente tem um belo Mercedes, curiosamente tem também um Toyota Starlet igual ao meu, mas de cinco lugares, ao passo que o meu é só de dois, o que permite que, apesar do carro ser pequeno, tenha uma mala muito generosa. 

Lá me perguntou quantos quilómetros tem o meu carro, e, surpreendentemente, disse-me que gosta muito mais do Starlet que tem do que do Mercedes. Porque é pequeno e estaciona em qualquer lugar, porque é muito económico e porque não avaria. É um Toyota!  

Bom, isto leva-me a concluir que já ando a pensar à empresário!

# Conversas Improváveis - O Filho do Empresário