"A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão."
domingo, 30 de novembro de 2025
Porque é que NÃO Se Deve Celebrar o 25 de Novembro (2)
No ano passado recolhi e partilhei aqui no blog excertos de vários historiadores: Irene Pimentel, Raquel Varela e Pacheco Pereira sobre o 25 de Novembro. Este ano vou deixar aqui alguns excertos de duas excelentes entrevistas no jornal Público a Rodrigo de Sousa Castro, que esteve no 25 de abril e fez parte do Grupo dos Nove ("moderados) no 25 de novembro, mas entrevistou também Manuel Duran Clemente, outro militar de abril, um dos ícones do 25 de Novembro mas ligado à ela da esquerda (PCP).
E basta ouvir os dois para perceber o ridículo que é, ver agora a extrema-direita que nos governa, e que perdeu em toda a linha no 25 de Novembro a querer agora reescrever a História vendendo um punhado de mentiras. No fundo mostrar, como escreveu a Constança Cunha e Sá no Twitter em 2019 "O 25 de Novembro é o 25 de Abril dos que não gostam do 25 de Abril".
Informem-se, leiam o que dizem os historiadores, o que diz quem viveu por dentro o 25 de abril, o 11 de março, o 28 de setembro mas também o 25 de novembro. Porque Não se aprende História com memes da internet. Como escreveu Orwell no 1984 "Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado", e estamos a vivê-lo em direito.
Peçam nas bancas os jornais Público dos dias 23 e 25 de Novembro e leiam na totalidade estas duas entrevistas. Retirem as vossas próprias conclusões. No entanto, o Público que me perdoe, mas aqui deixo os excertos mais importantes:
Por outro lado, sem o golpe spinolista de 11 de Março de 1975, “não teria havido PREC”. Em termos militares, os moderados eram muito mais fortes do que os extremistas de esquerda, por isso, nunca teria havido uma guerra civil no 25 de Novembro, diz o antigo porta-voz do Conselho da Revolução. O Documento dos Nove, fundador do suposto golpe de direita, era, afinal, “um programa de esquerda”. E a direita e a extrema-direita, que tentaram fazer valer as suas causas no 25 de Novembro, perderam em toda a linha. Por isso, diz o coronel, não faz sentido que queiram agora comemorar o 25 de Novembro. Logo eles, que não conseguiram cumprir nenhum objectivo (...)
Reconhece que a esquerda se apoderou da data do 25 de Abril?
O 28 de Setembro de 1974 é um episódio extremamente importante do ponto de vista político, porque há, inclusivamente, a detenção do Presidente da República e a sua substituição.
Há uma viragem brusca. Nós estávamos a caminhar para garantir uma Constituição, eleições livres, que eram a principal reivindicação dos capitães de Abril. Havia até um plano económico-social à beira de ser aprovado, elaborado por economistas moderados da área social-democrata, que ficou conhecido por “Plano Melo Antunes”. Era um plano abrangente, que preconizava uma certa intervenção do Estado na economia, mas não as nacionalizações.
E então o Spínola, juntamente com a ala direitista e com os seus “mosqueteiros”, que tinha trazido da Guiné, tenta o golpe, que fracassa. E foi nessa altura que as forças mais radicais de esquerda, que eram o Partido Comunista e os vários partidos de extrema-esquerda, empurraram o país para a esquerda.
Fazendo um exercício de História contrafactual: não teria havido PREC se não tivesse ocorrido o 11 de Março?
De certeza absoluta. Teríamos tido um percurso muito melhor. E teríamos tido uma coisa que é muito importante: tempo. Se não tivesse havido esta aventura do Spínola, é justo pensar-se que teria havido uma transição para uma democracia avançada, no sentido social. Teríamos tido uma social-democracia a sério.
A determinada altura começam a verificar-se três linhas muito claras. Havia uma esquerda radical, mas que seria integrada no sistema político, que era o Partido Comunista. Depois, havia a esquerda dita revolucionária, a que não chamo folclórica, porque era muito perigosa, com capacidade de organização militar, mas que não era homogénea. E, por fim, o grupo dos moderados, que daria origem ao Grupo dos Nove, que começaram a perceber que as Forças Armadas, principalmente o Exército, estavam num processo de desagregação a que era preciso pôr cobro.
A importância do documento não é o seu conteúdo. Aí é que está a grande questão. Se lermos o documento, e eu tenho-o praticamente na cabeça, ele não aponta uma via que hoje fosse sustentável do ponto de vista político.
Exatamente. Mas mesmo de esquerda, uma esquerda que já nem se vê por aí. Embora contivesse aquele princípio de respeito pela liberdade e a democracia. Mas era um documento de esquerda. Rejeitava a social-democracia como era praticada na Europa Ocidental, defendia o socialismo e uma sociedade sem classes e sem exploração.
Sim. E começam a dividir-se as águas. E à medida que se vão dividindo, o antagonismo aumenta. De uma forma muito agressiva, porque se vivia um ambiente de liberdade total. Isso também tem de ser dito: não havia nenhum cerceamento à liberdade de expressão.
Havia o perigo de ocorrerem pequenas confrontações. Embora os líderes dos partidos moderados tenham ido todos para o Norte, políticos, alguns deputados. Dizem que o Mário Soares até só parou na Galiza.
Não, não estivemos à beira da guerra civil. Se calhar a direita tem pena que isso não tivesse acontecido, para justificar as suas perdas.
Deixou de haver a confrontação entre os militares mais radicais e os mais moderados, com estes a vencerem em toda a linha. Mas não houve grandes mudanças políticas. O VI Governo Provisório, de Pinheiro de Azevedo, que estava em funções, continuou. Nem sequer mudou de número, continuou a ser o VI. O Presidente [da República] também não mudou. As pessoas pensam que houve uma grande revolução. Não houve nada.
Eles estavam debaixo da mesa. É certo que fizeram uma campanha contra os partidos da esquerda.
Não, porque o que eles faziam caía na esfera criminal. As acções deles eram crimes, ainda que na altura não houvesse força para os impedir.
Sim, cada um teria o seu projecto. Mas o seu desejo mais óbvio era ilegalizar o Partido Comunista.
Também nisso é evidente que perderam. Mas não conseguiram nenhuma das suas reivindicações?
O irónico é que as pessoas que querem agora comemorar o 25 de Novembro são as que perderam, porque nenhum dos seus objectivos foi cumprido.
É chocante e dramático. Há um claudicar de princípios morais. O problema é que, no dia 26 de Abril de 1974, havia 10 milhões de democratas. Ninguém era salazarista. Ou não podia dizer que era. Mas ficou aquilo a que, em cada um, podemos chamar subconsciente fascista. E, na colectividade, subconsciente autoritário (...)
Na altura, tivemos de lidar com o CDS, que era o partido legal mais à direita. Mas o CDS tinha gente civilizada e culta na sua liderança. Está a ver o Freitas do Amaral, o Adelino Amaro da Costa ou o Francisco Lucas Pires a reescreverem a História de Portugal? Está a vê-los a dizer: não, o 25 de Abril não foi uma revolução, a revolução foi o 25 de Novembro? Não estou a vê-los.
Na altura, tivemos de lidar com o CDS, que era o partido legal mais à direita. Mas o CDS tinha gente civilizada e culta na sua liderança. Está a ver o Freitas do Amaral, o Adelino Amaro da Costa ou o Francisco Lucas Pires a reescreverem a História de Portugal? Está a vê-los a dizer: não, o 25 de Abril não foi uma revolução, a revolução foi o 25 de Novembro? Não estou a vê-los.
A entrevista pode ser lida na íntegra aqui
Como é que é possível dizer que havia gente de esquerda e próxima do PCP com armas? Quem?
Em vésperas do 25 de Novembro? Em vésperas, muito menos. Aliás, toda a história, todaa fantasia de uma guerra civil tem seu o quê de exagero e serviu para assustar as pessoas e foram fomentadas pelo clero reaccionário. Que cidadãos andaram de armas na mão antes do 25 de Novembro? Quem andou de armas na mão foi a extrema-direita. O ELP (Exército de Libertação de Portugal), o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) e até gente importante, gente da hierarquia do clero, como padres, como bispos “melos” [referência ao cónego Eduardo Melo, da diocese de Braga], que até mataram. Eu pergunto a quem põe e propaga a ideia de que andavam comunistas com armas na mão: quem é que nós matámos?
Claro que foi uma armadilha, uma chantagem. Mas quem evita a guerra civil, que esteve muito longe de acontecer, somos nós. Não é mais ninguém. Os que são atingidos, que são, a maior parte deles, despedidos da sua profissão, não são reconhecidos como quem evitou a guerra civil.
O momento em que hoje se vive não é o momento em que se vivia antes de Abril, durante o PREC. Muitos jovens não percebem que estávamos num momento especial de uma revolução que foi pacífica. O maior erro que houve entre os militares é que, havendo três, quatro ou cinco facções entre nós – moderados, gonçalvistas, otelistas, spinolistas e saudosistas, que é uma quinta facção de que ninguém fala –, se todos fôssemos efectivamente democratas, tínhamos conversado. Se fosse democrata, o general Morais e Silva [que tinha decidido passar para a reserva os pára-quedistas revoltosos de Tancos] não tinha feito o que fez, que foi provocar... Mas essa provocação está para se saber se foi feita de propósito para quem estava a fazer um golpe na retaguarda. Com isto não quero dizer que o Vasco Lourenço, o Grupo dos Nove, onde há muita gente que estimo, incluindo a ele, não pudessem ter razão. Mas se tinham razão, podíamos ter conversado e eles podiam ter dito ao Morais e Silva que não era a altura de fazer o que fez com os pára-quedistas. Portanto, a dúvida que eu tenho, não é muito dúvida, é quase certeza, é que foi de propósito. Foi uma forma de fazer com que houvesse um golpe. Portanto, isto é extremamente complexo. Esta farsa de Novembro é das coisas mais inacreditáveis da História de Portugal. Eu não sabia, nem nenhum de nós sabia, o que ia acontecer.
Não só autorizei, como a promovi em consciência. Hoje é muito difícil as pessoas, os jovens, perceberem o que é um contexto revolucionário, a que chamam PREC com carga pejorativa. O período do PREC é dos 515 dias portugueses mais interessantes da História portuguesa. Não andava tudo à tareia, não andava tudo ao tiro. E quem andava ao tiro nunca foi julgado nem despedido, como muitos de nós. Mas há quem tenha a grã-cruz e fez muito menos pelo 25 de Abril do que eu.
Quando recebe uma delegação dos comandos que tentavam anular a revolta dos pára-quedistas, alerta-os para a existência de um forte dispositivo armado na RTP, que incluía bazucas anticarro colocadas nos telhados. Estava preparado para resistir militarmente aos comandos?
Não, não era por parte dos comandos. Era por uma parte que eu não sabia se era contra a Revolução de Abril. Se um homem que andou a lutar por Abril durante tantos anos vê a possibilidade de ser atacado, não deve prevenir-se? Foi o que eu disse ao capitão dos comandos mandado por Jaime Neves. Sim. O herói Jaime Neves. A organização militar tem formas de actuar. E uma das formas de actuar é dar autorização ou capacidade às companhias de fazerem o que entenderem. E elas foram para a rua, e instalaram-se para a defesa da televisão.
Não, não fiquei. Ficaram os trabalhadores. Disse aos trabalhadores: “Quem está com a defesa de Abril fica, quem não está pode ir embora”. Os que ficaram acabaram também por ser despedidos ou tiveram processos disciplinares. Mais de 100 pessoas, funcionários civis, que foram despedidos e maltratados por causa da acusação falsa sobre o 25 de Novembro.
Já sabia que ia parar porque nós tínhamos funcionários da televisão na antena que era nossa. E esses funcionários avisaram-me através de adjuntos meus: “Diz ao capitão que eu ando a fugir com a cavilha”. A antena só emitia da Lousã para baixo, porque no Porto já estavam a ver o Danny Kaye…
Tenho visto várias vezes e até gostava de ver o Danny Kaye antes dessa cena. Não tenho nada contra o Danny Kaye. O que acho é que é simbólico ver que se passa da revolução para a comédia que existe até hoje. Desde o 25 de Novembro, temos assistido a uma comédia de democracia. É a minha opinião. Mas defendo-a. Em tribunal se for preciso.
Mal e ilegalmente. Nunca fui julgado, fui despedido sem ser julgado. A primeira vez que fui ouvido, mandaram-me para casa, porque achavam que não havia nenhuma acusação consistente. O juiz do Ministério da Defesa que me ouviu, tinha 40 acusações, todas elas não valiam um caracol, disse-me: “Não vejo aqui nenhuma razão para ser preso”. Quando isto passou, foi tudo considerado ilegal e, 27 anos depois, a reconstituição da carreira foi-nos dada.
sábado, 29 de novembro de 2025
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
Da Rússia, sem Amor
Рушана – Углами (лайв в коридоре) (2025)
domingo, 23 de novembro de 2025
Queres Enganar Quem, Markl?
sábado, 22 de novembro de 2025
A Melhor Pessoa com Quem se Pode ter um Acidente
Olho para a esquerda e vejo uma senhora de óculos sem ter percebido bem o que tinha acontecido. Chovia bastante, e em face dos carros que já paravam atrás ela fez o que nunca se deve deixar que faça num acidente de automóvel: ela moveu o carro do sítio. Quando há um acidente deixam-se os carros estar no sítio onde ficaram e tiram-se fotografias para melhor perceber o que aconteceu, ainda que, neste caso, parece-me óbvio de quem é a responsabilidade.
A Palavra do Ano é Spinunviva e Deitou Abaixo um Governo
Apesar de nem sequer ter entrado a concurso, a palavra do ano é, sem qualquer margem para dúvidas: "Spinunviva". Só que, vá lá saber-se porquê, ninguém achou por bem considerá-la no concurso de miss simpatia das palavras do ano da Porto Editora.
Começamos a ouvir falar da Spinunviva em fevereiro, quando no dia 15 o Correio da Manhã fez esta primeira página e voltou ao assunto nos dias seguintes. Posteriormente também o Expresso, que já tinha divulgado o escândalo da casa de Espinho, apareceu com mais informações do caso.
Mas a verdade é que fomos para eleições mas o governo caiu - e não tinha de cair, bastaria unicamente substituir o primeiro-ministro - no entanto os eleitores acharam mesmo que um agente imobiliário avençado por debaixo da mesa era mesmo a pessoa mais preparada para gerir os destinos do país.
Spinunviva é claramente a palavra do ano e que deitou um governo abaixo, mas, com jeitinho, ainda irão considerar que "imigração" é que é.
quinta-feira, 20 de novembro de 2025
Até o André Ventura Teria que Trabalhar
"Os patrões preferem não produzir a aumentar salários porque pensam que aumentar salários é coisa estrutural que lhes vai retirar a margem de lucro. Sabotam o seu próprio trabalho. Isso é muito visível por exemplo no caso da hotelaria que se queixava de não ter trabalhadores. Esta argumentação de Ventura não é para diminuir o nº de imigrantes, é uma argumentação para manter os imigrantes na clandestinidade, a baixos salários, muitas vezes abaixo da norma legal e ao mesmo tempo com horários extensivos. Porque AV sabe muito bem que se um milhão e meio de imigrantes fosse embora até o André V€ntura tinha que trabalhar, coisa que ele não está bastante interessado em fazer.
A grande solução, ao contrário do que diz Rita Matias é termos imigrantes com condições dignas de trabalho. Porque se os imigrantes estiverem cá, com os papeis, legalizados, com direitos sociais e com direitos políticos, os salários são mais elevados. Ao serem mais elevados Todos os outros salários também podem subir. Esta é a única forma, porque a forma que ela diz: expulsar alguns imigrantes, tornar a vida dos imigrantes um inferno, que vão buscar crianças à escola, como nos Estados Unidos, estão aí nas ruas como em Portugal a ir às empresas, o que vai fazer é fixar os imigrantes cá de uma forma clandestina e dessa forma eles ganham abaixo da norma de trabalho. Abaixo da norma do trabalho eles pressionam o resto dos salários para baixo".
Este excerto é de Nuno Ramos Almeida no podcast "Os Comentadores".
segunda-feira, 17 de novembro de 2025
Portugueses de Bem Casam com Portugueses de Bem
Excerto retirado (e levemente editado) da crónica "A noiva Matias, os vendedores de São Martinho e a cabeça de Passos Coelho, de Pedro Garcias no Público.
sábado, 15 de novembro de 2025
Tudo o que Leio é Sobre a Minha Mãe
![]() |
Quando estamos preocupados com algo, ou algo nos ocupa a mente, de repente, parece que só vemos isso à frente. Como se as coisas nos aparecessem propositadamente, mas não, como estamos muito preocupados ou focados em determinada coisa, reparamos nessas coisas que normalmente não darímaos tanto valor. E foi o que me aconteceu com a doença da minha mãe.
Há seis meses, quando partilhei no Bluesky excertos do texto "Cuidar dos pais nos faz pensar sobre finitude" de Cláudia Colluccino (Folha de São Paulo), legendei com "Tudo o que leio é sobre a minha mãe" e aqui deixo um excerto, mas acrescento também um artigo sobre o tabu da morte de Régis Debray publicado na mesma altura no jornal espanhol El País.
Como os textos estavam aqui nos rascunhos do blog e demorei tanto a decidir-me deixá-los aqui, vou agora acrescentar também mais dois artigos. Um sobre como é viver sabendo que se tem uma doença terminal, publicado em junho no jornal espanhol La Vanguardia, e, mais recentemente, um artigo sobre a felicidade tóxica e as "patrulhas do luto", publicado, tal como o primeiro, no Folha de São Paulo.
"Foi na primeira vez que tive que dar um banho na minha mãe que a ficha caiu. Naquele instante, os papéis de cuidados haviam se invertido e eu nunca havia me preparado para isso. Três semanas antes, ela havia tido um diagnóstico de um silencioso câncer avançado.
Cinco semanas antes, ela tinha me recebido com meu prato favorito. Sete semanas antes, ela se divertia comigo, brindando a vida em uma cantina italiana. E agora lá estava eu diante daquele corpo frágil, que sempre foi meu colo, o meu remanso, precisando de ajuda para as necessidades mais básicas.
Eu que sempre valorizei o conhecimento, com mais de 20 anos de estudo, entre graduação e pós-graduações, não me atentei para o fato de que, sim, cuidar dos nossos pais exige aprendizado. Às vezes, de forma rápida e sem manual de instruções.
Mas nem tudo é dificuldade. Há muita beleza e benefícios em acompanhar o envelhecimento dos pais. Cuidar deles permite que a gente reveja laços, acerte pendências, e aprenda muito sobre empatia e compaixão.
Encarar o declínio de alguém que a gente ama também nos faz refletir sobre a nossa própria vida, finitude, valores e sobre como queremos ser cuidados na nossa velhice".
“O tabu que era o sexo agora é a morte”
Ele encarou a morte de frente uma vez. Foi em 1967, quando, após combater ao lado do Che Guevara, foi capturado e torturado. Passou quatro anos numa prisão na Bolívia e foi condenado à pena máxima. Relata esses momentos, quando pensava que seriam os últimos: “É curioso, porque primeiro entra-se em pânico, mas no fim, quando se acredita que chegou o momento, torna-se quase um espectador. Estava perante o pelotão e, na verdade, era uma simulação, mas eu não sabia. Há um momento em que tudo se torna leve. Resignamo-nos”, explica Régis Debray.
O filósofo (Paris, 84 anos) publicou há dois anos O Último Suspiro, uma obra a duas vozes em que, juntamente com Claude Grange, chefe de unidade de cuidados paliativos, aborda a importância do acompanhamento nos últimos momentos de vida. Foi nessa experiência que se inspirou o cineasta franco-grego Constantin Costa-Gavras, de 92 anos, para o seu último filme, com o mesmo título, estreado hoje em Espanha.
Um “trabalho corajoso” que aborda “o tabu deste século”, explica Debray na sua casa em Houdan, uma vila a 70 quilómetros de Paris, um templo cheio de livros classificados por género, rodeado de prados verdes e amarelos. “Não podemos aprender a morrer, claro que não. Podemos aprender a ver morrer, mas aprender a morrer é absurdo, quase cómico”, analisa.
Aos 84 anos, Debray refugia-se neste espaço após uma vida cheia de risco e épico: foi amigo de Fidel Castro e depois juntou-se ao Che Guevara para tentar expandir a revolução até à Bolívia. Embora não queira aprofundar muito esse episódio: “Na verdade, só estive prestes a morrer aquela vez.” “Temos de aceitar a ideia de que o homem é mortal. Por isso, no contexto dos cuidados paliativos, o problema é ver morrer”, aprofunda.
Contudo, nas visitas que fez a esses centros, para escrever O Último Suspiro, apercebeu-se de uma realidade: “Os médicos que lá trabalham não estão tristes. Não há nada de fúnebre nos centros paliativos, os profissionais de saúde estão bem-dispostos, isso surpreendeu-me”, salienta. Em França morrem por ano 600.000 pessoas e “existem apenas 200 centros paliativos. Fala-se em multiplicá-los, sim, mas há poucos voluntários”. As mulheres, diz, “são mais corajosas perante a morte, talvez por terem dado à luz e terem mais resistência à dor; creio que têm menos medo da morte”.
Em O Último Suspiro, a vida e a morte - ou a sua aproximação - reconciliam-se através de uma conversa: a que mantêm um médico responsável por um hospital de cuidados paliativos e um escritor, interpretados pelos atores Denis Podalydès e Kad Merad (Debray e Grange). No elenco participam também as atrizes Ángela Molina e Charlotte Rampling.
“Queria fazer um filme mais divertido”, reconhece Debray, mas Costa-Gavras “preferiu fazer um filme não sobre a morte, mas sobre a prevenção, uma ode à vida. É muito corajoso num momento em que fazemos de tudo para apagar a morte, porque ele propõe o debate, não o evita, e faz um filme sobre um tema tabu”.
A morte é rejeitada, ocultada, negada e transformada em algo “quase clandestino”, assegura. “Durante o século XX o tabu era o sexo; no século XXI já não é tabu, e nisso Freud teve grande influência. Hoje é a morte, um tabu mais difícil de ultrapassar do que o do sexo.”
Embora tenha sido um firme defensor da laicidade em França - a separação entre Igreja e Estado (foi um dos primeiros membros do comité pela laicidade da República Francesa) - Debray analisou o papel da religião e da fé nos grupos sociais. Considera que o declínio do cristianismo influenciou muito este repúdio à ideia de morrer. “Antes era apenas uma etapa, não uma partida definitiva, mas o desaparecimento relativo da fé e da crença no paraíso, e sem a ideia de ressurreição, transformou-a cada vez mais num tabu.”
EUFEMISMOS
A prova disso, defende, é a forma como a cobrimos de eufemismos: hoje não se fala em morte, mas em fim de vida; o cancro é “uma longa doença”; um “velho” é um sénior; e a eutanásia é “uma ajuda para morrer”. “Tudo muito politicamente correto. Fazemos de tudo para evitar a morte física e moral, e há pudor em falar sobre ela”, denuncia.
Também perdeu o seu lugar nos rituais, fruto dessa decadência da fé e, nessa tentativa de a apagar do mapa, “já não há cortejos fúnebres, como os que antes atravessavam as aldeias para que as pessoas se despedissem do falecido; o luto desapareceu, o espetáculo da morte está proibido, tornou-se algo clandestino e faz-se de tudo para que não se torne um problema. Tornou-se uma obscenidade”. Quase, denuncia, está a desaparecer o velório: antes velava-se os mortos em casa, e “hoje tornou-se algo incómodo”.
Nos dias que se seguiram à entrevista, Régis Debray teria de se submeter a uma intervenção, o que não o impede de pedir um cigarro à esposa. Passeia-se pela sala rodeado de livros enquanto reflete. A morte é um tabu, mas teremos menos medo da morte dos outros do que da nossa? “Também aí, cada vez a aceitamos menos. Antes podia tirar-se uma fotografia de alguém que tivesse falecido, agora está proibido.”
Recorda que uma das últimas fotos de falecidos célebres publicadas na imprensa foi a da cantora francesa Edith Piaf, que morreu a 10 de outubro de 1963. Foi no mesmo dia que o poeta Jean Cocteau, mas “ela ocupou as capas da imprensa e ele, as páginas interiores”. Este último “teve o azar de morrer no mesmo dia que uma figura tão popular como ela. Até para morrer é preciso escolher bem o dia”, reflete com ironia.
"Em novembro de 2023, Sílvia Socias (Barcelona, 1975) começou a perceber que algo não estava bem. Sentia dores numa perna e começou a andar mais devagar do que era habitual. Decidiu consultar um neurologista. Este foi o início de uma longa peregrinação por várias consultas médicas que terminou no início de 2024. O resultado? Esclerose lateral amiotrófica (ELA). Confessa que o diagnóstico provocou-lhe “um colapso brutal”. Mas com o tempo, conseguiu encarar a situação de outra forma. E tudo graças ao seu esforço, ao apoio da família e dos amigos, e ao acompanhamento da Fundació Catalana d’ELA Miquel Valls, cujo departamento de psicologia integra o programa de atenção integral a pessoas com doenças avançadas, promovido pela Fundação La Caixa.
Embora o diagnóstico só tenha sido confirmado no início de 2024, ela já suspeitava há bastante tempo que se tratava de algo grave. Ainda assim, mantinha a esperança de que pudesse haver alguma solução médica para o seu caso. “Mas quando pronunciaram a palavra ELA, foi um colapso total”, conta ao La Vanguardia. Nesse momento, diz, sabemos que temos um prazo de validade: “Dizem-te que estás a morrer”.
“Todos sabemos que um dia chegará a nossa hora - argumenta -, mas acreditamos que ainda falta muito. Tenho dois filhos, uma rapariga de 13 anos e um rapaz de 7. A primeira coisa em que se pensa é que não os veremos crescer, que também não poderemos envelhecer ao lado do nosso marido. Nesse momento, vivemos um luto muito grande”.
Com o passar do tempo, no entanto, conseguiu ultrapassar essa fase. “Percebemos que é preciso seguir em frente, que os meus filhos ainda têm a mãe, e que é preciso viver o momento, porque é um presente. É verdade, estou doente e a piorar progressivamente, mas tento ser positiva e fazer as coisas de que gosto”.
Admite que explicar a situação aos filhos foi muito difícil. À filha, a mais velha, conseguiu contar com mais detalhe. Já ao mais novo, não. “Só lhe disse que estou doente. Ele pergunta-me se vou morrer um dia. Digo que sim, mas que não será hoje nem amanhã”.
Eles - relata - foram testemunhas do seu agravamento. De caminhar, passou a usar muletas. Pouco tempo depois, cadeira de rodas. “No meu caso, a doença avança muito rapidamente”, lamenta. No entanto, ainda conserva algumas capacidades: “Ainda consigo mexer um pouco os braços, falo bem, consigo escrever alguma coisa, ler, embora esteja totalmente dependente”.
Afirma que a Fundació Catalana d’ELA Miquel Valls tem sido uma grande ajuda, tanto com a terapia individual como com o grupo de apoio, onde pessoas afetadas pela doença – que ontem teve o seu dia mundial – partilham as suas experiências. No início, estava relutante – “pensava que seria lembrar constantemente que estou doente”, diz – mas acabou por se revelar muito benéfico. “No grupo há pessoas muito positivas e com muita vontade de viver, e isso ajudou-me muito”.
A fundação procura incentivar e promover estes grupos. “Criar espaços onde possam interagir entre si é muitas vezes mais poderoso do que qualquer intervenção individual”, afirma Maria Dalmau, psicóloga da instituição.
“São pessoas que estão a viver a mesma situação e podem partilhar conselhos e experiências. Encontram conforto ao falar entre elas. Alguns doentes pensam: ‘Se alguém como eu consegue encontrar sentido na vida, eu também posso’”.
A entidade oferece apoio em todas as áreas: física, psicológica e social. “Ajudam-nos em cada fase da doença, que vai evoluindo. Ajudam com a tecnologia. Por exemplo, se precisares de um guindaste porque o teu marido já não te consegue levantar”, explica Sílvia. A fundação conta também com uma terapeuta ocupacional e ajuda a agilizar a documentação necessária.
Para os seus profissionais, como Maria Dalmau, não é fácil lidar com pessoas que sofrem de uma patologia sem cura. “Ver que o nosso trabalho pode melhorar a qualidade de vida delas é reconfortante”, aponta. “Vivemos situações difíceis, mas sentimo-nos gratificados com o cuidado que damos. Vemos que o nosso trabalho tem sentido”, acrescenta.
Sílvia lamenta não ter sentido qualquer melhoria após a entrada em vigor da lei contra a ELA, em 1 de novembro de 2024. “É contraditório: a doença evolui muito depressa, mas os processos são muito lentos. Desespera-te. Tens consciência de que os trâmites não acompanham a rápida progressão da patologia”, conclui.
segunda-feira, 10 de novembro de 2025
O Pernas de Alicate e o Max Cavalera do Ténis de Mesa
sexta-feira, 7 de novembro de 2025
O Mito das Gerações
Uma coisa que ouço frequentemente no trabalho é "porque a tua geração isto" ou "a tua geração aquilo". entre pessoas que distam dez anos de diferença! Mas faz algum sentido segmentar as pessoas desta forma? Isto tem algum fundo de verdade científica - os baby boomers são assim e a geração Z é assado - ou é uma coisa tão rigorosa quanto o horóscopo astrológico da revista sobre o que nos irá acontecer na próxima semana?
No fim de semana passado o jornal espanhol El País trazia uma reportagem muito interessante sobre o tema e aqui deixo o artigo traduzido para melhor elucidar quem por aqui passar:
"Todos começámos a pesquisar no Google a palavra millennial por volta de 2012 para descobrir se fazíamos parte do grupo. A designação surgiu pela primeira vez em 1991 no livro Generations, dos escritores e consultores norte-americanos Neil Howe e William Strauss, mas na altura não teve grande repercussão. Segundo o Google Trends, as pesquisas do termo começaram timidamente em 2005 e atingiram o pico máximo em 2013. Hoje os millennials são alvo de paródias na internet, mas na altura eram sociologicamente muito atraentes. Em menos de uma década foram destronados pelos zetas, que já são seguidos de perto pelos alfas, e que dentro de alguns anos serão substituídos pelos betas, bebés nascidos a partir de janeiro de 2025.
Antes dos millennials vieram os X e, muito antes, os boomers e a geração silenciosa. Fora do mundo académico, pouco se prestava atenção a estas classificações, mas desde que o tema entrou na cultura pop, sociólogos e demógrafos receiam que se esgotem todas as letras do alfabeto se continuar a moda de rotular uma nova coorte geracional aproximadamente a cada dez anos.
“O primeiro erro é acreditar que o X da geração X se refere à letra do alfabeto”, explica Oriol Bartomeus, politólogo e diretor do Institut de Ciències Polítiques i Socials (ICPS), ligado à Universidade Autónoma de Barcelona, acrescentando: “Na verdade, esse X representa uma incógnita. No seu livro Generation X (1991), Douglas Coupland descrevia uma geração sobre a qual se sabia pouco ou nada. A partir daí, continuar a nomear as gerações com as letras consecutivas do alfabeto foi uma tolice monumental”, diz o professor, que, em conversa telefónica, se confessa “muito anti-segmentação geracional”. Na sua carta, Cohen também ridicularizava o uso das letras e denunciava que o esquema geracional se tinha tornado “uma paródia”. “Aparentemente, com a geração Z chegámos ao fim do alfabeto — isto vai continuar eternamente?”, questionava.
Em 2023, o prestigiado centro de investigação concluiu a sua reflexão. O seu presidente, Michael Dimock, publicou “as cinco coisas a ter em mente quando se ouve falar de geração Z, millennials, boomers e outras gerações”. São elas: “As categorias geracionais não têm definição científica”; “induzem a estereótipos e simplificações excessivas”; “as discussões sobre gerações tendem a acentuar as diferenças e não as semelhanças”; “as visões convencionais sobre gerações podem criar um viés a favor das classes altas”; e, finalmente, “as pessoas mudam com o tempo”.
Philip Cohen concordou, por correio eletrónico, com estas conclusões e com a promessa do Pew Research Center de que “o público não deve esperar que as novas investigações usem a lente geracional. Só falaremos de gerações quando isso acrescentar valor aos debates e dar significado às tendências sociais.” Para o professor da Universidade de Maryland, o debate está ultrapassado: “Já não é relevante; simplesmente não devemos usar essas estratificações porque não fazem sentido”, afirma de forma categórica.
Bartomeus admite que não há “unanimidade académica” quanto à definição das gerações e explica que há duas escolas principais: a que defende que há uma geração por década e a mais clássica, representada por Ortega y Gasset, que considera que há um salto geracional a cada 30 anos. Um modelo menos rígido define as gerações de acordo com os acontecimentos históricos e sociais que cada uma viveu. Como explica Bartomeus, autor de El peso del tiempo: relato del relevo generacional en España, “em Espanha haveria uma divisão natural em 1975 entre a geração pré e pós-democracia; na Europa de Leste, em 1989, com a geração pós-Muro de Berlim; e em quase todo o mundo ocidental, em 2008, com os nascidos após a crise financeira que destruiu o pacto social e fez ruir a armadilha da meritocracia”.
Entretanto, os zetas ganham força na internet, parodiam a “pausa millennial” (aqueles segundos de hesitação antes de gravar um vídeo, que denunciam quem não nasceu com uma câmara na mão) e popularizam o “ok boomer”. Agora, vivemos um amargo confronto de acusações: os zetas culpam os boomers pela sua precariedade económica. “É verdade que é a primeira geração do declínio, que está a assistir ao desmantelamento da classe média e sente que lhe roubaram a carteira - mas é enganador dizer que a responsabilidade é geracional”, contrapõe Bartomeus. Para os especialistas, o pior da hiperfragmentação etária é que alimenta uma guerra entre gerações e desvia a atenção de problemas estruturais como o preço da habitação ou os baixos salários, que afetam diretamente o nível de vida.
A teoria de Cohen é que as etiquetas cristalizam a experiência de milhões de pessoas muito diferentes. Haverá quem resista ao estereótipo, mas outros esforçar-se-ão por se encaixar nele e reforçar o sentimento de pertença a um grupo. Como explica por telefone Almudena Moreno, socióloga da Universidade de Valladolid, a internet é replicante e muita gente acaba por acreditar que, se pertence à geração X, é apática; se é millennial, é narcisista e adora tostas de abacate; e se é zeta, deve pagar com gosto seis euros por um café de especialidade. “Estas etiquetas não nascem da sociologia, mas sim das necessidades do marketing de fragmentar o mercado e levar as pessoas a consumir produtos conforme a idade”, reflete.
No seu livro de 2021 The Generation Myth, o politólogo Bobby Duffy sustenta que o mercado tem interesse em exagerar as diferenças geracionais para poder oferecer uma solução. Duffy, professor no King’s College de Londres, escreve por correio eletrónico que existem mais desigualdades dentro de uma mesma geração do que entre duas gerações distintas. O exemplo são os millennials que herdam e os que não herdam. Segundo um artigo da revista The Atlantic, quando a esperança de vida era mais curta, a divergência entre quem herdava e quem não herdava ocorria muito cedo e determinava o rumo de toda a vida — uns e outros raramente se cruzavam. Hoje, um fenómeno típico do século XXI é que dois amigos vivem de forma idêntica até à meia-idade; depois, um deles herda, os planos divergem e as vidas afastam-se. Ambos continuam a ser millennials, fãs de tostas de abacate, mas agora um é rico e o outro não. E essa distância, que não é geracional, parece intransponível.
PARA SABER MAIS:







