![]() |
Quando estamos preocupados com algo, ou algo nos ocupa a mente, de repente, parece que só vemos isso à frente. Como se as coisas nos aparecessem propositadamente, mas não, como estamos muito preocupados ou focados em determinada coisa, reparamos nessas coisas que normalmente não darímaos tanto valor. E foi o que me aconteceu com a doença da minha mãe.
Há seis meses, quando partilhei no Bluesky excertos do texto "Cuidar dos pais nos faz pensar sobre finitude" de Cláudia Colluccino (Folha de São Paulo), legendei com "Tudo o que leio é sobre a minha mãe" e aqui deixo um excerto, mas acrescento também um artigo sobre o tabu da morte de Régis Debray publicado na mesma altura no jornal espanhol El País.
Como os textos estavam aqui nos rascunhos do blog e demorei tanto a decidir-me deixá-los aqui, vou agora acrescentar também mais dois artigos. Um sobre como é viver sabendo que se tem uma doença terminal, publicado em junho no jornal espanhol La Vanguardia, e, mais recentemente, um artigo sobre a felicidade tóxica e as "patrulhas do luto", publicado, tal como o primeiro, no Folha de São Paulo.
“O tabu que era o sexo agora é a morte”
Ele encarou a morte de frente uma vez. Foi em 1967, quando, após combater ao lado do Che Guevara, foi capturado e torturado. Passou quatro anos numa prisão na Bolívia e foi condenado à pena máxima. Relata esses momentos, quando pensava que seriam os últimos: “É curioso, porque primeiro entra-se em pânico, mas no fim, quando se acredita que chegou o momento, torna-se quase um espectador. Estava perante o pelotão e, na verdade, era uma simulação, mas eu não sabia. Há um momento em que tudo se torna leve. Resignamo-nos”, explica Régis Debray.
O filósofo (Paris, 84 anos) publicou há dois anos O Último Suspiro, uma obra a duas vozes em que, juntamente com Claude Grange, chefe de unidade de cuidados paliativos, aborda a importância do acompanhamento nos últimos momentos de vida. Foi nessa experiência que se inspirou o cineasta franco-grego Constantin Costa-Gavras, de 92 anos, para o seu último filme, com o mesmo título, estreado hoje em Espanha.
Um “trabalho corajoso” que aborda “o tabu deste século”, explica Debray na sua casa em Houdan, uma vila a 70 quilómetros de Paris, um templo cheio de livros classificados por género, rodeado de prados verdes e amarelos. “Não podemos aprender a morrer, claro que não. Podemos aprender a ver morrer, mas aprender a morrer é absurdo, quase cómico”, analisa.
Aos 84 anos, Debray refugia-se neste espaço após uma vida cheia de risco e épico: foi amigo de Fidel Castro e depois juntou-se ao Che Guevara para tentar expandir a revolução até à Bolívia. Embora não queira aprofundar muito esse episódio: “Na verdade, só estive prestes a morrer aquela vez.” “Temos de aceitar a ideia de que o homem é mortal. Por isso, no contexto dos cuidados paliativos, o problema é ver morrer”, aprofunda.
Contudo, nas visitas que fez a esses centros, para escrever O Último Suspiro, apercebeu-se de uma realidade: “Os médicos que lá trabalham não estão tristes. Não há nada de fúnebre nos centros paliativos, os profissionais de saúde estão bem-dispostos, isso surpreendeu-me”, salienta. Em França morrem por ano 600.000 pessoas e “existem apenas 200 centros paliativos. Fala-se em multiplicá-los, sim, mas há poucos voluntários”. As mulheres, diz, “são mais corajosas perante a morte, talvez por terem dado à luz e terem mais resistência à dor; creio que têm menos medo da morte”.
Em O Último Suspiro, a vida e a morte - ou a sua aproximação - reconciliam-se através de uma conversa: a que mantêm um médico responsável por um hospital de cuidados paliativos e um escritor, interpretados pelos atores Denis Podalydès e Kad Merad (Debray e Grange). No elenco participam também as atrizes Ángela Molina e Charlotte Rampling.
“Queria fazer um filme mais divertido”, reconhece Debray, mas Costa-Gavras “preferiu fazer um filme não sobre a morte, mas sobre a prevenção, uma ode à vida. É muito corajoso num momento em que fazemos de tudo para apagar a morte, porque ele propõe o debate, não o evita, e faz um filme sobre um tema tabu”.
A morte é rejeitada, ocultada, negada e transformada em algo “quase clandestino”, assegura. “Durante o século XX o tabu era o sexo; no século XXI já não é tabu, e nisso Freud teve grande influência. Hoje é a morte, um tabu mais difícil de ultrapassar do que o do sexo.”
Embora tenha sido um firme defensor da laicidade em França - a separação entre Igreja e Estado (foi um dos primeiros membros do comité pela laicidade da República Francesa) - Debray analisou o papel da religião e da fé nos grupos sociais. Considera que o declínio do cristianismo influenciou muito este repúdio à ideia de morrer. “Antes era apenas uma etapa, não uma partida definitiva, mas o desaparecimento relativo da fé e da crença no paraíso, e sem a ideia de ressurreição, transformou-a cada vez mais num tabu.”
EUFEMISMOS
A prova disso, defende, é a forma como a cobrimos de eufemismos: hoje não se fala em morte, mas em fim de vida; o cancro é “uma longa doença”; um “velho” é um sénior; e a eutanásia é “uma ajuda para morrer”. “Tudo muito politicamente correto. Fazemos de tudo para evitar a morte física e moral, e há pudor em falar sobre ela”, denuncia.
Também perdeu o seu lugar nos rituais, fruto dessa decadência da fé e, nessa tentativa de a apagar do mapa, “já não há cortejos fúnebres, como os que antes atravessavam as aldeias para que as pessoas se despedissem do falecido; o luto desapareceu, o espetáculo da morte está proibido, tornou-se algo clandestino e faz-se de tudo para que não se torne um problema. Tornou-se uma obscenidade”. Quase, denuncia, está a desaparecer o velório: antes velava-se os mortos em casa, e “hoje tornou-se algo incómodo”.
Nos dias que se seguiram à entrevista, Régis Debray teria de se submeter a uma intervenção, o que não o impede de pedir um cigarro à esposa. Passeia-se pela sala rodeado de livros enquanto reflete. A morte é um tabu, mas teremos menos medo da morte dos outros do que da nossa? “Também aí, cada vez a aceitamos menos. Antes podia tirar-se uma fotografia de alguém que tivesse falecido, agora está proibido.”
Recorda que uma das últimas fotos de falecidos célebres publicadas na imprensa foi a da cantora francesa Edith Piaf, que morreu a 10 de outubro de 1963. Foi no mesmo dia que o poeta Jean Cocteau, mas “ela ocupou as capas da imprensa e ele, as páginas interiores”. Este último “teve o azar de morrer no mesmo dia que uma figura tão popular como ela. Até para morrer é preciso escolher bem o dia”, reflete com ironia.
"Em novembro de 2023, Sílvia Socias (Barcelona, 1975) começou a perceber que algo não estava bem. Sentia dores numa perna e começou a andar mais devagar do que era habitual. Decidiu consultar um neurologista. Este foi o início de uma longa peregrinação por várias consultas médicas que terminou no início de 2024. O resultado? Esclerose lateral amiotrófica (ELA). Confessa que o diagnóstico provocou-lhe “um colapso brutal”. Mas com o tempo, conseguiu encarar a situação de outra forma. E tudo graças ao seu esforço, ao apoio da família e dos amigos, e ao acompanhamento da Fundació Catalana d’ELA Miquel Valls, cujo departamento de psicologia integra o programa de atenção integral a pessoas com doenças avançadas, promovido pela Fundação La Caixa.
Embora o diagnóstico só tenha sido confirmado no início de 2024, ela já suspeitava há bastante tempo que se tratava de algo grave. Ainda assim, mantinha a esperança de que pudesse haver alguma solução médica para o seu caso. “Mas quando pronunciaram a palavra ELA, foi um colapso total”, conta ao La Vanguardia. Nesse momento, diz, sabemos que temos um prazo de validade: “Dizem-te que estás a morrer”.
“Todos sabemos que um dia chegará a nossa hora - argumenta -, mas acreditamos que ainda falta muito. Tenho dois filhos, uma rapariga de 13 anos e um rapaz de 7. A primeira coisa em que se pensa é que não os veremos crescer, que também não poderemos envelhecer ao lado do nosso marido. Nesse momento, vivemos um luto muito grande”.
Com o passar do tempo, no entanto, conseguiu ultrapassar essa fase. “Percebemos que é preciso seguir em frente, que os meus filhos ainda têm a mãe, e que é preciso viver o momento, porque é um presente. É verdade, estou doente e a piorar progressivamente, mas tento ser positiva e fazer as coisas de que gosto”.
Admite que explicar a situação aos filhos foi muito difícil. À filha, a mais velha, conseguiu contar com mais detalhe. Já ao mais novo, não. “Só lhe disse que estou doente. Ele pergunta-me se vou morrer um dia. Digo que sim, mas que não será hoje nem amanhã”.
Eles - relata - foram testemunhas do seu agravamento. De caminhar, passou a usar muletas. Pouco tempo depois, cadeira de rodas. “No meu caso, a doença avança muito rapidamente”, lamenta. No entanto, ainda conserva algumas capacidades: “Ainda consigo mexer um pouco os braços, falo bem, consigo escrever alguma coisa, ler, embora esteja totalmente dependente”.
Afirma que a Fundació Catalana d’ELA Miquel Valls tem sido uma grande ajuda, tanto com a terapia individual como com o grupo de apoio, onde pessoas afetadas pela doença – que ontem teve o seu dia mundial – partilham as suas experiências. No início, estava relutante – “pensava que seria lembrar constantemente que estou doente”, diz – mas acabou por se revelar muito benéfico. “No grupo há pessoas muito positivas e com muita vontade de viver, e isso ajudou-me muito”.
A fundação procura incentivar e promover estes grupos. “Criar espaços onde possam interagir entre si é muitas vezes mais poderoso do que qualquer intervenção individual”, afirma Maria Dalmau, psicóloga da instituição.
“São pessoas que estão a viver a mesma situação e podem partilhar conselhos e experiências. Encontram conforto ao falar entre elas. Alguns doentes pensam: ‘Se alguém como eu consegue encontrar sentido na vida, eu também posso’”.
A entidade oferece apoio em todas as áreas: física, psicológica e social. “Ajudam-nos em cada fase da doença, que vai evoluindo. Ajudam com a tecnologia. Por exemplo, se precisares de um guindaste porque o teu marido já não te consegue levantar”, explica Sílvia. A fundação conta também com uma terapeuta ocupacional e ajuda a agilizar a documentação necessária.
Para os seus profissionais, como Maria Dalmau, não é fácil lidar com pessoas que sofrem de uma patologia sem cura. “Ver que o nosso trabalho pode melhorar a qualidade de vida delas é reconfortante”, aponta. “Vivemos situações difíceis, mas sentimo-nos gratificados com o cuidado que damos. Vemos que o nosso trabalho tem sentido”, acrescenta.
Sílvia lamenta não ter sentido qualquer melhoria após a entrada em vigor da lei contra a ELA, em 1 de novembro de 2024. “É contraditório: a doença evolui muito depressa, mas os processos são muito lentos. Desespera-te. Tens consciência de que os trâmites não acompanham a rápida progressão da patologia”, conclui.

Sem comentários:
Enviar um comentário