domingo, 20 de agosto de 2023

Conversas Improváveis (76) - Negacionista da Bíblia



Intimidade Artificial - A Calamidade do Século

Nunca estamos 100% presentes com os nossos amigos, amantes ou familiares.


Este artigo foi publicado no jornal Folha de São de Paulo a 20 de Março de 2023.

"Esther Perel é psicoterapeuta. Nasceu na Bélgica, filha de sobreviventes do holocausto. Hoje é professora da universidade de Nova York e especialista em temas como solidão e relacionamentos contemporâneos, incluindo relações amorosas. 

Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes. Nossa atenção está sempre dividida entre as pessoas e o nosso telemóvel, redes sociais, notificações e assim por diante. Neste contexto não é possível ter intimidade real.


As redes sociais e o telemóvel funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Queremos as partes boas do convívio, que são do nosso interesse, mas evitamos ao máximo atritos, conversas desconfortáveis, o tédio etc. Sempre que algo desconfortável começa a materializar-se, partimos para o mundo confortável e controlado do telemóvel, que nos distrai do que é verdadeiramente humano.


Esta é a intimidade artificial. Estamos todos a viver coletivamente a experiência do rosto parado que o psicólogo Edward Tronick realizou nos anos 1970. Nele, uma mãe primeiro é gravada relacionando-se normalmente com seu bebé de 6 meses. Ela sorri, o bebé sorri de volta. Ela fala qualquer coisa e o bebé dá uma gargalhada. No segundo momento a mãe paralisa seu rosto. Olha fixamente para o bebé, sem expressar reação. O bebê então gargalha. A mãe permanece impassível. O bebé começa então a gritar. Nenhuma reação da mãe. O bebé então chora e grita desesperadamente, até que a mãe retoma suas reações normais e acolhe a criança.


No mundo atual somos todos simultaneamente a mãe e bebé. Como somos incapazes de dar atenção integral ao outro, estamos sempre em dívida emocional com os que nos rodeiam. Ao mesmo tempo, somos o bebé, sedentos por atenção. Nunca houve uma carência tão grande por escuta e acolhimento como a que viver coletivamente no mundo de hoje.


Esther nos conclama a nos rebelarmos contra a intimidade artificial. A exigir e a dar atenção total para aqueles com quem nos relacionamos. A darmos o difícil passo de aceitarmos o conflito e o atrito, parando assim de nos anestesiarmos parcialmente o tempo todo. Sem isso seremos obrigados a conviver com relações que julgamos “defeituosas” o tempo todo.


Uma investigação realizada nos EUA em 2019 apontou que 22% dos “millenials” têm hoje zero amigos; 25% dizem não ter conhecidos. Muitos têm um número de seguidores gigantesco, mas amigos mesmo, nenhum. Nas gerações anteriores só 9% afirmavam não ter amigos. E não é por acaso que ansiedade e depressão são um dos assuntos que hoje mais circulam nas redes sociais entre adolescentes e crianças. 


Na era da intimidade artificial, não são só as amizades que estão em risco, mas também as relações amorosas e familiares. Apertem os cintos para a sociedade da solidão, com consequências nefastas para todos os campos da vida humana.




sábado, 19 de agosto de 2023

Talvez Um Dia Me Encontre(s)


"Foi sem mais nem menos
Que me deu para abalar sem destino nenhum"

Acabava de sair de casa com a bicicleta na carroça e na rádio passava a "125 Azul" dos Trovante. E porque nós adequamos sempre as letras das músicas, os livros e as cenas dos filmes às nossas próprias vivências, naquele momento se calhar nenhuma outra música fazia tanto sentido. 

"Foi sem graça nem pensando na desgraça
Que eu entrei pelo calor
Sem pendura que a vida já me foi dura
P'ra insistir na companhia"

Porque o prometido é devido, o destino era aquele mesmo sítio, àquela mesma hora que nos encontramos pela primeira vez naquele feriado de Agosto. Depois destes anos todos, que se calhar nem foram tantos assim mas que parece que sim, tínhamos decidido reencontrarmo-nos como quem desenterra uma caixa do tempo. 

"Viva o espaço que me fica pela frente e não me deixa recuar
Sem paredes, sem ter portas nem janelas
Nem muros para derrubar"

Depois de se terem acabado de conhecer num comboio e de terem passado um dia e uma noite a vaguear juntos, Jesse e Celine decidem reencontrar-se seis meses depois no mesmo exato local mas sem terem trocado qualquer contacto. Seis meses depois (e nove anos depois no cinema ficamos a saber) que Jesse esteve no local à hora marcada. Mas a Celine não apareceu. 

"Talvez um dia me encontre
Assim talvez me encontre"

E também tu não apareceste ao encontro que só tinha sido planeado na minha cabeça seis meses antes. Cheguei ao local e quase de imediato fui transportado no tempo para o tempo do primeiro encontro. E para aquela dolorosa despedida que, quem sabe, talvez esteja descrita nos 4008 e-mails nossos que tenho guardado. 

"Mas Deus leva os que ama
Só Deus tem os que mais ama"

Engoli em seco as recordações, voltei a ligar a carroça e desloquei-me um pouco mais para sul, E fui pedalar... 

domingo, 13 de agosto de 2023

O Amor Para Sempre é o Amor Impossível


"A 8 de março de 1933, o poeta Pedro Salinas escreveu uma carta manuscrita dirigida à sua amante, Katherine Whitmore, que constituiu um dos monumentos literários ao amor mais desconhecidos e melhores expressos, do século XX. Não é à toa que Salinas ficou conhecido, na geração de 27, como o “poeta do amor”; não é também à toa que os seus melhores trabalhos, que se acreditava serem dirigidos a Margarita Bonmatí, sua esposa, foram na verdade dirigidos a Whitmore, com quem viveu um amor apaixonado e febril durante 15 anos em que mal se viram.

“Eu continuo a falar, tenho que continuar a falar das tuas cartas. Elas possuem-me, estão presentes em mim, sou impedido pelo que me impede de pensar nelas. Vejo, entre sonhos, minhas linhas verdes, sobre o azul listrado em dois tons. (Aquela faixa azul que parece luz de verão filtrada por uma persiana)” é o início da carta.


Em 2002 foi publicado um livro surpreendente: Salinas's Correspondence with Whitmore: Letters to Katherine Whitmore. O epistolário secreto do grande poeta do amor. Surpreendente por vários motivos, desde logo porque Withmore sempre foi escrupulosamente discreto sobre o relacionamento (tão secreto que quase ninguém sabia, e quando Margarita Bonmatí, esposa do poeta soube, tentou o suicídio), e só permitiu a sua publicação quando ele morreu (foi cedido  à Universidade de Harvard em 1999 por instruções de Whitmore, que morreu 15 anos antes). Surpreendente também, porque naquelas cartas de Salinas há uma exibição absoluta da sua intimidade que é avassaladora. Referimo-nos ao autor de La voz a ti due (1933) e Razón de amor (1936), dois poemas universais escritos na febre dos seus sentimentos por Withmore; portanto, cartas particulares também escritas na época em que deixou essas obras.

Após a tentativa de suicídio da esposa de Salinas, Katherine Whitemore tentou romper o relacionamento. O casal Salinas-Bonmatí viveu nos Estados Unidos durante o exílio. Na verdade, eles viram-se sobretudo nos primeiros meses que ela passou em Madrid. Houve muito poucos encontros nos 13 anos seguintes, embora tenham deixado uma enorme correspondência. Foi um amor antes do amor, platónico e desenfreado, que, ao não se consumar, ajudou Salinas a escrever sobre ele de uma forma que ele não poderia ter escrito. A musa no seu melhor. "A vida realizada, a vida de facto e a vida desejada, a vida na esperança, são duas áreas diferentes, tragicamente separadas."


Histórias de Amor 2 / Publicado no jornal El País a 9 de Agosto de 2023


Eu tendo a concordar que o único amor para sempre é o que não é vivido, é aquele que não possui, é o que quer mas mas que, por algum motivo não pode ter. É o amor que sobrevive à rotina, às toalhas pelo chão, às dores de cabeça, ao cansaço da lida doméstica... Mas também porque, como dizia Oscar Wilde: "Cada pessoa acaba por matar a coisa que ama". Mata-a, se calhar, quando sente que a tem completamente"...

terça-feira, 1 de agosto de 2023

A Falácia da Meritocracia e Porque Deixamos de Ler na Adolescência

"Aos 20 meses de idade, um bebé de uma família de alto nível cultural articula 200 palavras enquanto um bebé de uma família de baixo nível cultural articula 20. É ultrajante. Eles aprendem a ler tarde e, quando começam a usar a leitura para aprender, faltam palavras. Muitas vezes eles não gostam aprender. Muitos de nós descobrimos as nossas vocações na escola, mas se não formos capazes de entender, nunca nos vamos entusiasmar com nada".




Entrevista a um professor do ensino secundário sobre os jovens e a leitura a propósito do seu livro "(En) Plan Lector - Sobrevivir a la adolescencia sin dejar de leer", publicada este domingo no El País. Por um lado deixa bem evidente a falácia da meritocracia, por outro é assustador o que smartphones e redes sociais estão a dazer. Aqui ficam alguns excertos:

"Por que é que na adolescência deixamos de ler?
Os jovens estão mais focados em compartilhar experiências com os amigos. O telemóvel é um lazer muito mais acessível. Assistir a um vídeo de 30 segundos não custa nada, mas pegar num livro exige esforço, mesmo que a recompensa seja muito maior.

A concentração dos meus alunos caiu muito com os smartphones. Tocamos no telemóvel cerca de mil vezes por dia e nos conectamos cerca de 150 vezes. Com o telemóvel na mesa, ages como uma pessoa com um QI muito mais baixo. Muitas vezes as crianças que brilham academicamente praticam balet ou música, que exigem muita concentração. As crianças geralmente estão muito cientes de que não se lembram dos vídeos curtos que viram ou que ficam nervosas se não houver uma mudança na atividade. Assistem às séries a uma velocidade de 1,5x porque são incapazes de suportar o ritmo normal, e até mesmo a música é acelerada. Nenhum deles acabou de ouvir uma música, eles sempre clicam no botãozinho antes disso. Isso faz com que sua capacidade de atenção seja esmagada.

Por isso, é impossível que leiam um romance. 
Eles leem porque não têm escolha, mas depois gostam muito. Na minha escola, levamo-los à biblioteca uma vez por semana para ler. Eles não podem tirar o telemóvel ou fazer qualquer outra atividade. A maioria adora. O fundamental é uma boa seleção de textos e deixá-los com tempo para ler. A leitura seria o exercício perfeito para que as crianças se tornassem donas de sua capacidade de se concentrar novamente. É uma luta que vale a pena levantar nas escolas diante de tantos tablets. As redes sociais ganham dinheiro com sua fragmentação de atenção. Eu sempre digo às crianças que elas são o produto, caso contrário elas estariam a pagar pelas redes sociais. É falsa essa ideia de que as redes sociais são um novo meio de comunicação, são sim um meio de publicidade. Temos que nos interessar pelo mundo deles. E isso é muito difícil. Tenho 11 anos no ensino secundário e no início tinha as chaves para entender as crianças e agora custa-me muito. Porque antes eu via televisão e eles também. Mas agora não porque eles estão no Youtube, TikTok...

Insiste muito na falta de compreensão da leitura em todos os níveis... 
Se eu não tenho palavras para nomear algo isso não existe para mim. Aos 20 meses de idade, um bebé de uma família de alto nível cultural manuseia 200 palavras e de baixo nível cultural 20. É ultrajante. Eles aprendem a ler tarde e, quando começam a usar a leitura para aprender, faltam palavras. Muitas vezes eles não gostam aprender. Muitos de nós descobrimos as nossas vocações na escola, mas se não formos capazes de entender, nunca nos vamos empolgar com nada.

A afirmação de que a leitura melhora a empatia é surpreendente no livro. Todos nós que somos leitores achamos que experimentamos a sensação de nos colocarmos no lugar de uma pessoa que não tem nada a ver conosco no início. A literatura faz-te entender que, além dessas diferenças está o ser humano".