Este artigo foi publicado no jornal Folha de São de Paulo a 20 de Março de 2023.
"Esther Perel é psicoterapeuta. Nasceu na Bélgica, filha de sobreviventes do holocausto. Hoje é professora da universidade de Nova York e especialista em temas como solidão e relacionamentos contemporâneos, incluindo relações amorosas.
Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes. Nossa atenção está sempre dividida entre as pessoas e o nosso telemóvel, redes sociais, notificações e assim por diante. Neste contexto não é possível ter intimidade real.
As redes sociais e o telemóvel funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Queremos as partes boas do convívio, que são do nosso interesse, mas evitamos ao máximo atritos, conversas desconfortáveis, o tédio etc. Sempre que algo desconfortável começa a materializar-se, partimos para o mundo confortável e controlado do telemóvel, que nos distrai do que é verdadeiramente humano.
Esta é a intimidade artificial. Estamos todos a viver coletivamente a experiência do rosto parado que o psicólogo Edward Tronick realizou nos anos 1970. Nele, uma mãe primeiro é gravada relacionando-se normalmente com seu bebé de 6 meses. Ela sorri, o bebé sorri de volta. Ela fala qualquer coisa e o bebé dá uma gargalhada. No segundo momento a mãe paralisa seu rosto. Olha fixamente para o bebé, sem expressar reação. O bebê então gargalha. A mãe permanece impassível. O bebé começa então a gritar. Nenhuma reação da mãe. O bebé então chora e grita desesperadamente, até que a mãe retoma suas reações normais e acolhe a criança.
No mundo atual somos todos simultaneamente a mãe e bebé. Como somos incapazes de dar atenção integral ao outro, estamos sempre em dívida emocional com os que nos rodeiam. Ao mesmo tempo, somos o bebé, sedentos por atenção. Nunca houve uma carência tão grande por escuta e acolhimento como a que viver coletivamente no mundo de hoje.
Esther nos conclama a nos rebelarmos contra a intimidade artificial. A exigir e a dar atenção total para aqueles com quem nos relacionamos. A darmos o difícil passo de aceitarmos o conflito e o atrito, parando assim de nos anestesiarmos parcialmente o tempo todo. Sem isso seremos obrigados a conviver com relações que julgamos “defeituosas” o tempo todo.
Uma investigação realizada nos EUA em 2019 apontou que 22% dos “millenials” têm hoje zero amigos; 25% dizem não ter conhecidos. Muitos têm um número de seguidores gigantesco, mas amigos mesmo, nenhum. Nas gerações anteriores só 9% afirmavam não ter amigos. E não é por acaso que ansiedade e depressão são um dos assuntos que hoje mais circulam nas redes sociais entre adolescentes e crianças.
Na era da intimidade artificial, não são só as amizades que estão em risco, mas também as relações amorosas e familiares. Apertem os cintos para a sociedade da solidão, com consequências nefastas para todos os campos da vida humana.
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